Em seu livro 'O EU profundo e os outros EUS',
Fernando Pessoa considera que nossa existência é composta por diferenciados
'Eus'. Eu
não chamo de personalidades, pois o EU real impera sobre os outros. À
semelhança das personagens interpretadas pelos artistas, temos em nós
nuances extraídas do ser integral. As personas teatrais vivem uma temporada,
mas prevalece o artista que as interpreta. Também na vida, algumas das
nossas facetas são passageiras, enquanto outras nos acompanham por toda
existência, mas prevalecendo a nossa personalidade; o ‘SER’ principal. Para
alguns é um universo complexo de seres que habitam nossa mente e nosso
coração, cada um com formas, histórias, ideologias, princípios e
temperamentos próprios ou distintos.
Não podemos pensar que há uma série de indivíduos se movimentando
dentro de nós, pois isso não existe. Somos seres pensantes, portadores de
uma personalidade inerente, ativa e central. A partir dela, temos conosco
outras que também atuam, às vezes de forma intensa. Não somos vários
indivíduos habitando um mesmo corpo. Somos nós mesmos, apenas um ser humano,
mas algumas vezes, com aptidões tão fortes e extremosas, que quase criam
vida própria. Mas não podemos ser classificados como portadores de múltiplas
personalidades.
Alguns exemplos para ilustrar: Uma pessoa trabalha em determinada
profissão e ama o que faz. Seja a vivência no trabalho, em família, com
amigos, nos divertimentos e outros aspectos, há naturais alterações, pois em
certas situações somos mais extrovertidos e em outras somos mais
introspectivos. Em local de oração, com certeza buscamos a interiorização e
concentração naquele objetivo. Diferente disso, se vamos a uma festa, mesmo
sendo mais centrados, o ambiente contribui para a exteriorização, de acordo
com o acontecimento. Entre amigos, nos sentimos mais felizes, livres,
tranquilos. Com quem não comunga aptidões e princípios já não nos sentimos
tão livres, leves e soltos. Essas e outras mudanças comportamentais fazem
parte da nossa rotina. Ninguém é sempre igualzinho em todas as
circunstâncias que vivencia diariamente.
Contudo, há os fatores determinantes dos múltiplos
'EUS', tornando as
alterações do 'EU' central mais destacadas. São as aptidões diversificadas,
os gostos, sonhos, sensações, atitudes, pensamentos e sentimentos
diferenciados. Às vezes surgem como máscaras, usadas como mecanismo de
defesa diante do que não tem coragem de enfrentar. Nem falamos de questões
psíquicas estudadas pela ciência, pois nosso objetivo é enfocar os universos
existenciais paralelos que existem e pulsam em nós, mas sem alterar nossa
saúde física e mental. E embora diferindo apenas nos graus de intensidade,
sendo alguns mais ou menos multifacetados e com histórico bem peculiar, não
se enquadram na área médica. Referimo-nos às diferentes ideias que às vezes
nos surgem.
Podemos gostar do verde, mas também do azul, do amarelo, etc. Podemos
ser extremamente fortes diante de certas ocorrências e bem frágeis diante de
outras. Podemos ser riso e tristeza, energia e suavidade, calma e agitação,
alternados no cotidiano. E tudo isso sem deixarmos de ser a mesma pessoa,
pois cada aspecto tem seus fatores determinantes, mas são parte do EU maior,
ou seja, nossa essência. E como ser integral, apenas cedemos espaço para
muitos outros gostos, várias atividades e diversos interesses, mas jamais
podemos permitir que algum dos outros EUS domine o EU que somos de verdade.
Nossa vida não pode ser um eterno baile carnavalesco, onde podemos
nos mascarar para fugirmos da realidade. Também não podemos vivenciar
personagens teatrais e fazer deles nossa rotina existencial. E jamais termos
a equivocada pretensão de que podemos agir como personagens de filmes e
livros. Os cineastas e escritores em geral dão-lhes vida e até aventuram-se
com eles por caminhos muitas vezes inusitados, mas limitam-lhes quando
necessário e lhes dão um caminho de acordo com a situação idealizada. Na
vida real, se tentarmos alegar que determinada ação não foi nossa e sim de
algum ''EU'', com certeza incorremos em equívoco ou abuso, pois tudo ocorre a
partir do EU real. E a vida nos responde. A justiça dos homens e a sabedoria
de Deus fazem cumprir as leis.
Nosso objetivo com este artigo é, justamente,
advertir, evitando assim que alguém pense que a fantasia pode se sobrepor à
realidade. Vamos refletir bem sobre isso! Tomemos cuidado para não sermos
injustos com os outros e com nossa própria essência. A coerência deve ser
nossa companheira, agindo com coração e razão. Respondemos pelo que
plantamos, pelo que realizamos, pelo que criamos. E nossos atos, pensamentos
e sentimentos demonstram exatamente quem somos na íntegra...