O PODER DAS
TREVAS
Iria mostrar a que veio. Lúcifer traçara um plano. O
homem não lhe interessava diretamente, tinha o passaporte garantido para o
Inferno. Pretendia atazaná-lo através dos parentes e nada mais fácil do que
se apoderar de Rita.
A primeira vez que ela o viu foi na varanda, no primeiro
degrau de pedra, usando a capa preta de avesso vermelho. Lábios finos,
sardônicos e sensuais; o sorriso maldoso; dentes pontiagudos e olhos
vermelhos como fogo. Uma espécie de turbante encobria os chifres. Os pés
fendidos eram dissimulados por babuchas vermelhas.
Foi com esse visual nada simpático que eles se
encontraram face a face. Ele queria assustar, conseguiu. Ela havia aberto a
porta da saleta. Parou repentinamente, com o pé ainda no ar. A imagem
terrifica a paralisou encostada no portal. Abriu a boca, sem conseguir
emitir som. Os olhos esbugalhados fitavam aquela figura. Em segundos o
pretinho começou a crescer... crescer... crescer... e a inchar. Ficou mais
alto do que uma paineira, mais ainda do que um coqueiro e desapareceu.
Pálida como um cadáver, ela voltou para dentro de casa. A mãe observou o
estado catatônico da filha. Algo estava errado. Segurou-a pela mão e
perguntou-lhe o que tinha acontecido. Ela não conseguia articular um som,
estava fora do ar.
— Você está sentindo alguma coisa?
Como não obteve resposta, deu-lhe um safanão, mas não
houve reação. Pegou-a no colo com força sobrenatural e levou-a para a
cozinha. Chamou as empregadas. Rápidas, esfregaram-lhe os pulsos e
bateram-lhe nas faces.
Lentamente, voltou a si. Quando se recuperou, com a voz
entrecortada por soluços, contou o que vira. Como se esperava ninguém
acreditou nela. Julgaram que fora uma ilusão, uma fantasia ou uma
alucinação, coisa de criança adolescente.
Decorreram alguns dias sem novidades. O pai, como
sempre, invocava o demo. A mulher admoestava:
— Para de xingar, homem! Olha que ele vem!
Às seis da tarde, dona Almira costumava rezar o Ângelus.
Aquele dia não foi diferente.
— O anjo do Senhor anunciou a Maria. Ela concebeu do
Espírito Santo...
Foi interrompida por um grito:
— Ah! Ele está lá na laranjeira me chamando. Mamãe me
acode!
— Eis aqui a Serva do Senhor, Ave-Maria...
— Ele está acenando para mim.
— Que é isto Ritinha? Quem está na árvore?
— É o que estava na varanda, o homem preto!
Dona Almira correu o ferrolho na porta e fechou a
janela. Ajoelhou-se em frente a um crucifixo e tentou continuar:
— Faça-se em mim segundo vossas palavras. Ave-Maria... E
o verbo se fez carne, e habitou entre nós. Ave-Maria... Rogai por nós, Santa
Mãe de Deus...
Foi impossível terminar.
A menina fora tomada, ria com escárnio da oração.
— Deixa desta chorumela, dona. Esta ladainha não vale
nada. Eu sou mais forte; quero levar a pequena.
Almira, mal teve tempo de abrir a porta, caiu desmaiada
entre as ombreiras. Os empregados corriam atarantados por todos os lados.
Ajoelhavam e gritavam por Jesus, Maria, José.
Chico Nico apareceu e custou a entender o que viu; era
uma bagunça. Levou a mulher para a cama, deixou-a aos cuidados dos outros
filhos e foi procurar Rita. Ela estava com as pernas escancaradas e o
vestido na cabeça. Irritado, desceu-lhe as vestes e levantou a mão para lhe
dar um tabefe. Força invisível jogou-o contra a parede, deixando-o
estonteado. Ela se escondeu debaixo da cama, emitindo sons que pareciam
rosnados de um cão.
Puseram-se de joelhos e principiaram a rezar:
— Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco,
bendita sois Vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre,
Jesus. / Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora
da nossa morte. Amém. //
— Padre-nosso que estais no Céu. Santificado seja o
vosso nome. Venha a nós o vosso reino. Seja feita a vossa vontade, assim na
Terra como no Céu. O pão nosso...
Uma saraivada de pedras atravessou a parede caindo na
cama e no piso. Tiveram que interromper as orações.
Os sucessos da fazenda Jurema se espalharam por léguas.
A parentada se reuniu para fazer novenas, orações e benzeduras. Nada
resolvia o caso. Chico Nico, com os nervos à flor da pele, se desesperava. A
produção caía, os serviços estavam paralisados, gastava as economias
alimentando parentes, afins e amigos. A casa parecia uma pensão.
Um preto-velho, mandingueiro, soube do caso e, como se
considerava muito poderoso resolveu oferecer os préstimos à família, na
esperança de derrotar o torto e se encher de glória. Ele era famoso, tinha
olho-gordo. Ao passar perto de uma colônia de vespas, foi por elas
envolvido; não se aborreceu. Pegou a caixa de marimbondos com a mão direita
e com a esquerda ordenou: — "Vai embora, bichinho! Vai!" — Eles partiram em
nuvem densa, sem molestar o feiticeiro.
Outras provas o negro deu de que era digno de respeito.
Passou por barbatões de uma boiada recémchegada do sertão e não foi
molestado por eles. Sequer foi detectado pelos boiadeiros. Ultrapassou um
carro de bois, carregado de milho, rechinando triste e continuamente pelo
atrito entre o eixo do rodeiro e os chumaços presos contra os cocões,
rodando dolente, aos eias do carreiro e do candeeiro. Tampouco foi visto,
parecia ser invisível. O mais sensacional feito se deu na chegada: o
rezador, ao se aproximar do cercado, viu uma jararacuçu enrolada ao pé do
esteio da porteira. Firmou o olhar no réptil que em segundos agitou-se,
desenrolou-se e tentou, em vão, fugir. Força hipnótica a reteve. Coleava,
enrolava, e não saía do lugar. Em minutos, foi reduzindo os movimentos até
que cessaram completamente. O curimbeiro pegou a cobra com uma forquilha e a
dependurou na cerca. Estava morta. Quando entrou no estábulo, além das vacas
e outros animais estava a matilha de cães ferozes. Eles tiveram dois tipos
de reação: uns puseram os rabos entre as pernas e fugiram ganindo para o
mato; outros vieram lamber, alegremente, os pés descalços do viajante. Tudo
testemunhado pelos moradores, maravilhados com aqueles feitos
extraordinários.
Em casa, depois das apresentações, o homem se ofereceu
para pôr uma mesa, modo como denominava o trabalho, para tirar o encosto. A
família, em desespero, concordou com a benzeção.
Imaculadamente limpo, todo de branco, ele entrou no
quarto, com uma trouxa e começou. Abriu uma velha e ensebada Bíblia,
pendurou um quadro de São Jorge, encheu um copo d'água, distribuiu sobre a
superfície uma chave de aço virgem, estrela-do-mar, cavalo-marinho, oratório
com a imagem de São Miguel, cachimbo, fumo de rolo, incenso, cuia e uma
garrafa de cachaça. Desenhou, no chão, um pentáculo e, em cada ponta,
acendeu uma vela de cor diferente. Espalhou, cuidadosamente, pólvora em
círculo, envolvendo o pentagrama. Queimou, levantando densa cortina de
fumaça.
Encheu o cachimbo com fumo desfiado, acendeu-o, tirou
algumas baforadas e soprou em direção aos quatro-cantos, recitando ensalmos
e, a seguir, iniciou um monótono e ineficaz conjuro:
Eu, como criatura de Deus, feita a Sua semelhança e
remida com seu santíssimo sangue, vos ponho preceito, Demônio, para que
cessem os vossos delírios, para que esta menina não seja jamais por vós
atormentada com vossas fúrias infernais. Pois o nome do Senhor é forte e
poderoso, por quem vos cito e notifico que vos ausenteis deste lugar.
Fazia reverências diante do gongá. Em seguida, curvou o
corpo para o lado direito, num semi-arco e começou a bater, ritmado o pé
direito, acompanhando de palmas. Depois mudou de posição para o lado
esquerdo, repetindo toques e aplausos.
O ambiente começou a mudar: sombras, ruídos e distorções
nos móveis. O frio aumentou sensivelmente. Mestre Joaquim, sem parar, encheu
o coité de aguardente e tomou-a de um só gole.
Subitamente, um sopro gelado apagou todas as velas, o
quarto ficou numa penumbra em face do excesso de fumaça. Em um canto brilhou
luz fosforescente. Imediatamente, o macumbeiro retirou da trouxa algo
parecido com uma tíbia de defunto, levantou-a sobre a cabeça e foi sacudido
por convulsões, contrações e tremores. Começou a girar numa velocidade
crescente; rodopiando... rodopiando, até perder o equilíbrio e estatelar no
chão, com estrondo. Tentou levantar, não conseguiu. Algo o obrigava a se
manter de quatro: um ser disforme que se confundia com as sombras. O
macumbeiro insistiu mais três vezes em se pôr de pé. Começou, então, a
retroceder ou a ser empurrado de costas em direção à porta. Quando transpôs
o umbral, a mesa, a trouxa, os santos, a parafernália e ele foram jogados,
com violência, para a sala contígua. Líquidos, cacos e detritos
esparramaram-se por todos os lados.
O aterrado pai-de-santo só conseguiu se erguer auxiliado
por outras pessoas. Meio grogue articulou:
— Não estou bem, preciso repousar. Tentarei, outra vez,
à meia-noite.
Puseram-no na cama, onde ficou arriado, sem se mexer e
sem forças para piscar, talvez até em coma.
Pouco antes da hora aprazada, foram buscá-lo. Apesar de
todos os apelos e arrancos, não conseguiram acordá-lo. Deixaram-no trancado,
para que ninguém o molestasse.
Naquela noite, um nevoeiro espesso cobriu a região.
Desapareceu a fazenda, árvores, animais, plantações. Não se via um palmo
diante do nariz.
Bem de madrugada, pai Joaquim saiu da letargia. Custou a
se reorientar. Tudo estava tão confuso. A cerração pesada, branco-leitosa,
quase palpável. Estirou a mão no sentido horizontal, detectou pelos e calor;
forçando a vista, descobriu que estava deitado no estábulo, entre os
bezerros.
— Como vim parar aqui? — se interrogou. Recordou-se da
aventura, ou melhor, da desventura. Deu um pulo. Estava de pé. Sacudiu o
esterco de boi, benzeu-se. Com extrema cautela passou entre as reses. Pulou
a cerca, achou a estrada... correu, disparou... e nunca mais foi visto.
Assim terminou a empresa daquele feiticeiro que ousou
enfrentar o tinhoso e se deu mal.
CRIME E CASTIGO
Do inescrupuloso vigário (Afonso) começara com o caso,
carta. O garoto, que se esgueirara entre ele e o batente, vira, atônito, o
entrevero do padre com o diabo, com a derrota preliminar daquele que, ao
ouvir as invectivas, se fizera rubro de vergonha. Logo se recompôs, fez o
sinal-da-cruz, como uma bênção em direção à menina e pronunciou as
palavras-chave:
—
Vade retro,
Satana!
O tal não se dignou a obedecer. Emitiu gases, deu uma
gaitada. Fez a menina virar de costas, levantar o vestido e mostrar o
traseiro.
— Tragam meus paramentos — solicitou o padre, traquinas.
Buscaram a caixa de folhas-de-flandres, na sala. Abriu-a
e pegou, rápido, a galheta com água benta e aspergiu a garota.
— Está me machucando, pare de jogar esta água suja.
Rita, ou melhor, a coisa que a incorporava, se encolheu
no canto e tapou o rosto com as mãos. Ao mesmo tempo, a tranqueira abriu com
barulho. Vacas leiteiras e crias, que tinham sido apartadas, se misturaram.
Correria para separá-las. Ninguém abrira a porteira. Todos sabiam que era
arte do tição.
O prelado aproveitou a confusão e se retirou do quarto.
Após conferenciar com Chico Nico, informou que jejuaria por alguns dias,
para ganhar forças antes de terçar armas com o maldito. Solicitou e obteve
um local amplo, totalmente isolado e nele se instalou, com recomendação
expressa para não o incomodarem. Queria ficar isolado no período de
abstinência. Pediu para o menino Antônio atendê-lo quando chamasse. Foi
obedecido.
Nos três primeiros dias, cumpriu à risca todos os
preceitos. Levantava as cinco, oficiava a missa, no que o garoto
diligenciava para ajudá-lo. Ele não entendia o ritual da Santa Missa,
principalmente aquelas palavras em latim; entretanto ajudava compenetrado e
com boa vontade. Passava o missal da direita para a esquerda e vice-versa,
punha vinho no cálice, fazia e desfazia o altar, arranjava e guardava as
vestes litúrgicas.
—
Dominus
vobiscum — orava o oficiante.
—
Et cum spiritu
tuo — respondia o garoto, como papagaio.
No quarto dia, o reverendo não aguentou a fome e pediu a
Toninho para trazer, à sorrelfa, alguns pedaços de carne, acompanhados de um
pouquinho de arroz e salada. Daí em diante, o jejum foi uma palhaçada.
Empanturrava-se todos os dias às escondidas. No duro, estava com medo de
enfrentar o sarnento. Dava tratos à bola para achar uma saída honrosa, sem
desagradar a família.
O padre pilantra tinha segundas intenções em relação ao
afilhado. Desde a viagem vinha alimentando pensamentos escusos. Começou por
conquistar-lhe a confiança. Falava sobre o desejo dos jovens, procurava dar
sentido dúbio às palavras, utilizava sofismas, evidenciava que as atrações
sexuais atendiam a sentimentos naturais, mesmo entre pessoas do mesmo sexo.
Procurava valorizar a convivência harmoniosa entre homens. Passava,
distraidamente, a mão no rapazinho. Quando julgou que ele estava doutrinado,
pretextou estar com dores e pediu que o massageasse. Teve uma ereção, tentou
agarrá-lo. O garoto se desvencilhou, correu para o quarto e trancou a porta
com a taramela. Estava desconcertado, furioso, colérico. As pessoas em que
confiava eram tão desprezíveis. Primeiro o tio, agora o padrinho. Procurou,
inutilmente, entender os motivos; de ingênuo nada tinha, conhecia alguns
segredos, por isso se revoltou com as artes do vigário. Embora precoce, não
maliciava tudo e nem conhecia a extensão da maldade humana. Sentimentos
conflitantes fervilhavam no cérebro. Raiva, perdão, ódio. O que fazer?
Denunciar, calar, ignorar ou silenciar?
“Deus do céu! Cometera algum pecado?”
O sacerdote, no dia seguinte, deu por encerrado o jejum
falso e se dispôs a enfrentar o rabudo para acabar logo a tarefa. Muniu-se
de um crucifixo, hóstia consagrada, água benta e entrou no quarto da
endemoninhada. Foi recebido por uma catapulta de injúrias, excrementos,
pedras e outros objetos.
— Miserável, desavergonhado, serás meu ajudante no
inferno! Sujo, patife, imundo! Tu não prestas! Como tens coragem de ser
padre? És meu companheiro! Fora!...
Não pôde reagir. Afastou-se balbuciando palavras
incoerentes, algo como o pai-da-mentira. Pediu um cavalo arreado e partiu
como um raio. Mais um derrotado.
Não voltou ao presbitério nem a lugar algum... Muito
tempo depois fora visto errante pelas estradas, montes e várzeas, em diálogo
permanente com as sombras. Babava como um cão danado; a saliva escorria
pêlos cantos da boca, empapava a camisa que ficava suja e pegajosa, com um
aspecto repugnante. Um dia foi apanhado furtando linguiças dependuradas no
varal sobre o fogão de lenha em uma casa. Internaram-no em hospício, onde
teve que se haver com os demais doentes mentais. À noite tinha sonhos,
pesadelos e visões. No paroxismo da loucura, apontava para os cantos
gritando: — É ele, é ele, que veio me buscar! — Ficou agressivo, louco
furioso; atacava todos com dentadas e resistia violentamente aos
enfermeiros. Vestiram-lhe uma camisa-de-força e o jogaram no isolamento,
onde urrava, gemia e investia contra as paredes. Aplicavam-lhe,
rotineiramente, doses maciças de sedativos e eletrochoques. Quando as
lamentações e os gritos se tornavam insuportáveis, um brutamonte entrava na
cela e lhe dava uma sessão de pancadas.
Sem comida, sem tratamento adequado, sozinho, abandonado
por todos foi definhando cada vez mais. No final da vida, teve um lampejo de
razão e pediu um confessor, para lhe dar o perdão dos pecados. Isto também
lhe foi negado, porque um louco não tem o que dizer e assim, ele morreu
chafurdado nas próprias imundícies, após longa agonia e sofrimentos atrozes.
Eis o fim do clérigo abominável e corrompido, que semeou
ventos e colheu tempestade.
DIABRURAS
Na fazenda Jurema só aumentavam porque o torto estava
cada vez mais furioso. Depois do episódio do padre desregrado e degradado, o
demo fazia os maiores esforços para enlouquecer a família. Levitava Rita
que, de frente para a parede, subia para o teto, mansamente. Nesta hora, a
voz fraquinha do anjo da guarda pedia:
“Tragam o menino para me ajudar.” Toninho era iluminado,
era puro, segurava a mãozinha dela, enquanto rezava:
Santo anjo do
Senhor, meu zeloso guardador, a ti me confiou a piedade divina. Sempre me
rege e guarda, governa e ilumina. Amém.
Ela descia vagarosamente e desfalecia na cama. Por um
dia ou noite não dava sinal de vida.
Toninho começou a se tornar imprescindível junto à
Ritinha. Por ela tomou grande afeição e sofria por vê-la passar por tamanha
provação pelas forças do mal. Ele não entendia como aquilo podia acontecer
com ela; tão boazinha. Onde estavam os poderes de tantas orações, antífonas,
salmos e apelos aos santos protetores?
Chico Nico não mais entrava no quarto da filha. Tinha
receio das verdades e dos palavrões, como também das agressões da entidade
que habitava aquele corpo.
Acontecia de a coisa se desincorporar para aprontar umas
e outras. Soltava os porcos que se espalhavam pela várzea, dando o maior
trabalho para juntá-los; punha o moinho a moer pedra; espantava as vacas na
hora da ordenha; misturava fezes de animais na comida; promovia aportes que
atravessavam telhados e paredes sem quebrar telhas ou fazer buracos; às
vezes chorava a noite inteira. Era uma calamidade. Quando reincorporava em
Ritinha, fazia caretas, gestos obscenos, subia pelas paredes, vomitava
matérias fétidas. Atirava o que tinha na mão, nos outros. Só o rapazinho
tinha o dom de acalmá-la.
As pessoas que ousavam entrar no quarto eram vítimas de
brincadeiras infames e ouviam verdades indiscretas. O tal se deliciava em
desvendar segredos íntimos. Amantes foram desmascarados, beatas
vilipendiadas, enfim tudo acontecia e se podia esperar do príncipe infernal.
A avó da menina um dia resolveu visitá-la. Católica
praticante talvez pudesse ser de alguma valia. Antes que ela saísse de casa
o capeta pressentiu e ameaçou:
“Lá vem a velha coroca, da fazenda Cachoeira, com aquela
corda de tento e de sabugo de milho” referindo-se ao rosário. “Não adianta,
aquelas continhas não me tiram.”
Dona Umbelina, a avó, chegou, rezou, cantou hinos,
jaculatórias e responsórios. Sofreu o tempo todo com as zombarias do diabo.
Perdeu a paciência com uma gozação mais forte e bateu com o rosário na
possessa.
“Pare de me bater, velha caduca. Ai... ai... aiiiiiiii!”
Arrebentou o biurá, e as lágrimas-de-nossa-senhora se espalharam pela cama e
por todos os lados.
Os assistentes, de cabelo em pé, escafederam-se.
A situação estava por demais fora de controle, trágica.
Impossível continuar a pantomina. Muitos adoeciam.
Chico Nico tomou uma resolução: chamar o padre santo que
morava na casa paroquial, anexa à igreja matriz de uma grande cidade. Um
exorcista de fama e grande poder. Chamava Simeão Hauck. Ele recebeu o
fazendeiro com carinho e pediu que relatasse o que se passava.
Sem muitos rodeios, contou-lhe toda a história,
inclusive a demanda com o frade. Foi uma catarse, uma confissão, um grito de
socorro.
Simeão deu os seguintes conselhos: o homem deveria
observar rigoroso jejum, distribuir esmolas, pacificar inimigos e
adversários; parar os xingamentos, cessar as perseguições, adotar um sistema
de vida piedoso e desculpar-se com o padre injuriado, de joelhos, se ele
assim o exigisse. Prometeu examinar o pedido e, se necessário, iria até à
fazenda. Por enquanto, faria orações à distância.
O fazendeiro arrependido cumpriu os mandamentos: mudou
dramaticamente o comportamento. Confessou e comungou, o que não fazia há
muitos anos; perdoou alguns inadimplentes; renegociou hipotecas de outros,
promoveu a paz com o frei Gálio, humilhando-se publicamente e pedindo perdão
pelas ameaças; jurou nunca mais se exceder em bebidas; deixou substancial
ajuda, em dinheiro, para os pobres da freguesia. Doravante se dispôs a ser
um homem caridoso e de bons costumes. Também pudera, com anos tendo o diabo
como inquilino!
Teria Deus tocado aquele coração de pedra? Seja, mas a
inexorável, a inescapável lei de causa e efeito, a justiça infalível seria
feita. A misericórdia divina é infinita. Ela daria ao espírito daquele homem
tantas ocasiões quantas fossem necessárias para se remir os pecados.
Na fazenda, continuava a confusão como dantes. O
capa-preta aprontava poucas e boas como se estivesse revoltado com a súbita
religiosidade do fazendeiro. O inferno o esperava. Não aceitaria, sem luta,
a perda da presa.
Ritinha não se levantava, exceto quando possuída, tomada
pela entidade. Então assumia a força de dez homens.
Ninguém podia detê-la. Relinchava e latia, tal como os
animais. Quebrava imagens sagradas e como sempre levitava. Aí chamavam o
menino. Ele entoava a oração de sempre e a repunha na cama.
Toninho, sem o saber, amava Rita. Este amor foi bom para
ele, que jogou para o subconsciente os traumas dos abusos do padre e de um
tio. Gostava de ficar no quarto dela tanto quanto lhe permitiam para
ajudá-la nos transes difíceis.
Ao soar da meia-noite, o trevoso se apossou dela e
iniciou uma cantilena com voz soturna e plena de deboche:
“Garoto, há muito tempo venho lhe seguindo os passos.
Assisti o seu nascimento, na verdade, acompanhei-o na barriga da mãe. Fiz o
possível para complicar a gravidez, pretendia matá-lo. Não consegui, havia
disposições superiores mais fortes do que a minha vontade. Tive que ceder,
porém designei um auxiliar para espioná-lo sem cessar. Verrine tem
correspondido e me mantém a par de tudo. Dificulta sua vida, mata as
esperanças, procura lhe dar "bons" momentos de tristeza, enfim nós o
prejudicamos sempre e temos planos mais detestáveis. Seria melhor
negociarmos. Quer ser dos meus? Está confuso? Curioso? Quer meu nome? Por
ora, saiba que sou aquele que manda: o chefe. Duvida do meu poder? Respondo
com uma descrição. Eu moro pertinho da fazenda da Legalidade. Do outro lado
está a fazenda Cachoeira, da avó desta menina. A velha beata vive rezando.
Não adianta, sou insensível às orações; por via das dúvidas, não me envolvo
com ela. Não tenho medo nem do papa, alguns deles são meus hóspedes. Entre
as fazendas passa a estradinha, quase uma trilha. Paralelo, segue um riacho
que, na divisa, faz uma curva e transforma-se numa corredeira. Um pouco
antes, há uma ponte. Tiveram a boa idéia de cobri-la para proteger barrotes
e pranchões do sol e da chuva. Muito bom... é na ponte coberta que estou
quando não aqui. Eu me divirto assustando viajantes, cavaleiros, tropeiros e
provocando estouros de boiada. O que acontece de ruim lá é minha obra.
Vamos, agora ao importante: você tem me atrapalhado muito. Vamos negociar?”
— Como? Sou apenas um menino. Pelo que ouvi, me persegue
desde que nasci. O que quer aqui?
— Você sabe o que o pai dela disse quando soube da
gravidez? Ficou muito zangado e falou sem rodeios: "A minha parte, eu a dou
para o capeta".
— Ah, meu Deus! — exclamou o menino horrorizado.
— Tenho meus direitos, vim reivindicá-los.
— É mentira! — contestou, veementemente, Toninho.
— Que seja! não tenho compromisso com a verdade. Acho
bom você ir embora.
— Vá você ou pare de tentar os outros.
— Vamos entrar num acordo, não conto seus segredos.
— Seja quem for não faço tratos. Deixe-a em paz.
— Parece uma velha teimosa. Sei dos seus pecados com o
tio e com o padrinho, de batina.
— Abusaram de mim. Não tenho culpa.
— Olha aqui, ela me pertence, o pai já é meu.
— Ela é de Deus como um anjo puro.
— Fedelho, se eu quiser faço você voar pela janela.
O garoto apelou para a fórmula:
Vade
retro...
Uma grande explosão sacudiu todos os móveis, a fazenda
tremeu nos alicerces. Um cheiro nauseabundo se fez sentir. Aporta se abriu
com violência, um bicho preto, vindo não se sabe de onde, pulou na sala, a
seguir na janela e mergulhou na escuridão.
Donde se explica que as fórmulas cabalísticas não valem
por si mesmas; dependem da pureza do coração de quem as pronuncia. E Toninho
era puro, apesar de tudo...
O garoto saiu gritando. Algumas pessoas acudiram. Ele
contou tudo e alertou que o acontecimento se dera logo após as doze
badaladas da meia-noite. Ficaram olhando para ele um tempão, por fim, disse
dona Umbelina:
— Estranho, não ouvimos nada. O velho relógio há muito
não marca horas, sequer tem corda.
Nos momentos de lucidez, Ritinha conversava com Toninho
e lhe perguntava como se portava quando estava fora de si. Ele contava
amenizando, suavizando, minimizando aquelas partes mais chocantes,
grosseiras e imundas. Por exemplo, não citava que ela levantava a saia na
presença de pessoas, que ria e debochava das imagens dos santos e que as
esfregava no corpo simulando intenso prazer, que vomitava matérias fétidas e
repugnantes e outros pormenores indecorosos.
Entre aqueles jovens se desenvolvia uma grande simpatia.
Ela, muito frágil, dependente e muito carinhosa; ele, por sua vez, só
faltava adivinhar os pensamentos dela.
— Quando eu sarar— dizia— vamos passear pelos campos,
assistir às festas nos povoados; papai, certamente dará um baile e
dançaremos muito.
Ele suspirava e sonhava com este porvir, embora não
acreditasse convictamente que ela se curaria algum dia. Estava tão doentinha
que ele temia o pior.
Tarde da noite, todos haviam se retirado para os
respectivos quartos, somente os dois estavam acordados, conversando
trivialidades. Ele aproveitou para ler uma poesia que havia descoberto entre
as folhas do livro de tombo:
"Pergunta pras estrelas
se de noite me vêem chorar.
Pergunta se não procuro
a solidão pra te amar.”
“Pergunta pro manso rio
se o pranto meu não vê correr.
Pergunta pra todo mundo
se não é fundo meu padecer."
Um tropel de cavaleiros se fez ouvir e interrompeu
aquele momento de ternura.
— Será que é o papai que está chegando?
Não era. Os viajantes pareciam muitos. Desceram dos
cavalos que relinchavam e pisoteavam a lama: plac, plac, plac. Os cavaleiros
subiram a escadaria de pedra batendo as esporas contra elas, conversavam e
insultavam uns e outros, sem cerimônia. Acessaram a ante-sala. O alarido dos
cães e o ruído dos recém-vindos zoavam pela casa. Atravessaram vários
cômodos e foram parar na cozinha. Utilizaram panelas, frigideiras, pratos e
talheres. Fritaram e cozinharam alimentos, falando em voz alta. Depois de
saciados, quebraram pratos, atiraram facas e garfos na cristaleira,
derrubaram mesas, cadeiras e foram embora. No dia seguinte, não havia sinal
dos visitantes. Nenhum prato quebrado, nenhuma faca, garfo ou colher fora do
lugar, nem mesa, nem bancos removidos, nem vidros quebrados, nem restos de
comida. Ninguém, exceto os dois, observara algo insólito. Toninho,
preocupado, achava que também estava ficando doido.
O
novo Chico
Nico, recémconvertido, depois de
confabular com a mulher, convocou todos os parentes e visitantes para
rezarem uma novena, pedindo a proteção de Nossa Senhora. Aqueles que lá
estavam, só por curiosidade ou para a farra, foram gentilmente convidados a
partir, ficando apenas os realmente interessados na solução do problema.
O pai reentrou no quarto da filha. Ela estava quieta,
aparentemente normal. Só os olhos opacos denunciavam a presença do impuro.
O terço do santo rosário em louvor do divino Jesus foi a
primeira tentativa séria para expulsar o mal. Chico Nico puxou:
— Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso
Senhor, dos nossos inimigos.
A garotinha repetiu com trejeitos irônicos e, fazendo os
gestos ao contrário, ou seja, de baixo para cima e da direita para a
esquerda.
Ninguém se atemorizou. Continuaram:
— Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
A coisa escarneceu:
— Buuu!... merda. Ra, rá, rá.
— No primeiro mistério, contemplamos como a virgem Maria
foi saudada pelo anjo e lhe foi anunciado que havia de conceber e dar à luz
a Cristo, nosso Redentor.
— Padre-nosso que estais nos
céus. Santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino. Seja feita a
vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai
hoje. E perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos
devedores. E não nos deixeis cair em tentação. Mas
livrai-nos do mal. Amém.
O ser diabólico repetiu tudo ao contrário, com intenção
de causar a maior confusão, o que conseguiu, mas sem esmorecer a fé
religiosa do pessoal.
Os crentes continuaram:
— Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Assim
como era no princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos.
Amém.
Após o padre-nosso e a glória ao pai, rezaram por dez
vezes a ave-maria, correspondendo às meditações dos cinco mistérios,
suportando, imperturbáveis, as gozações.
Às vezes oravam em latim:
Gloria Pater
et Filio et Spiritni Sancto.
— Eu sei latim: —
Per omnia
saecula saeculorum. Debochava o demo.
A coisa ironizava, contorcia-se na cama e vociferava:
— Cambada de patifes, prostitutas. Saiam do quarto.
Deflorador e explorador de mulheres, esse Chico Nico vagabundo, filho de
escravo, assassino. Miseráveis, piedosos de fachada à noite vão gozar nos
braços das amantes. Todos têm encontro marcado comigo.
E o pessoal firme:
— Salve, Rainha,
Mãe de misericórdia, vida doçura esperança nossa salve; a vós bradamos os
degredados filhos de Eva; a vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de
lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses olhos misericordiosos a nós
volvei; e, depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, ó clemente, ó piedosa,
ó doce sempre virgem Maria. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus, para que
sejamos dignos das promessas de Cristo.
— São Miguel
Arcanjo, protegei-nos no combate. Cobri-nos com vosso escudo contra os
embustes e ciladas do Demônio. Subjugai-o, Deus. Instantemente Vos pedimos,
e vós, Príncipe da milícia celeste, pelo divino poder, precipitai no Inferno
Satanás ou outros espíritos malignos que andam pelo mundo para perder as
almas. Amém.
A possessa começou a jogar imagens, velas, ícones,
travesseiros, roupas, o que estava próximo sobre o grupo. Contudo, eles
continuavam impávidos. Então ela começou a levitar lentamente. Primeiro,
ficou inteiramente retesada na posição horizontal sobre a cama. Depois, em
contínua inclinação em relação ao piso e à parede, até ficar totalmente na
vertical. Sem apoiar em nada, subiu em direção ao forro.
— O menino! o menino! — A voz fraquinha do anjo da
guarda, clamava perto da garotinha.
Toninho correu. Segurou-lhe a mãozinha pálida e fria.
Devagar, puxou-a para baixo. O corpo obedeceu, pouco depois repousava
exangue no leito.
O orador recitou a oração de encerramento, após o quinto
mistério:
— Ó meu Jesus
perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o céu
e socorrei, principalmente, aquelas que mais precisarem.
Findo o terço, observaram que ela parecia mais calma.
Animados, resolveram cantar o Credo.
— Creio em Deus Padre,
todo-poderoso. / Criador do Céu e da Terra. / E em Jesus Cristo
um só seu Filho / Nosso Senhor, o qual foi concebido / Do Espírito Santo,
nasceu de Maria Virgem, / Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi
crucificado, / Morto e sepultado, desceu aos infernos. / Ao terceiro dia
ressurgiu dos mortos. / Subiu ao Céu (bis). / Está sentado à mão direita de
Deus Padre, / todo-poderoso; / Donde há de vir julgar os vivos e os mortos.
/ Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, / Na comunhão dos
santos, na remissão dos pecados, / Na ressurreição da carne, na vida eterna.
Amém.
A garota deu um berro horroroso e pôs todos a correr,
exceto Toninho, que pernoitou no local. Felizmente, o demo não aprontou mais
traquinagens naquela noite e puderam dormir bem.
Dia após dia, continuaram a rezar. Lúcifer não dava
tréguas. Mal começavam o terço, principiavam as confusões, os desafios, os
palavrões.
As reações dela, cada vez mais fracas, entristeciam a
todos. Possivelmente Satanás também enfraquecia ou, quem sabe, quisesse
demonstrar que não largaria facilmente a presa. A grande batalha estava para
iniciar, o padre santo viria.
Aguarde em breve, continuação...