TRAIÇÃO
Era um lugar não muito além da fazenda da Legalidade,
ermo, lúgubre e fantástico, que afugentava os que ali passavam. Sem exceção,
apressavam os passos, se benziam e só se sentiam seguros bem longe.
Situava-se numa das vertentes do morro da Fumaça, que era também assustador,
sempre coberto pela neblina. A região era muito montanhosa. Numa visão
aérea, notavam-se em sequência três elevações: o morro Alto, o da Picada e o
da Fumaça. Um vôo mais audacioso delineava a serra da Saudade. Dando asas à
imaginação, os morros formavam as três corcovas de um animal mitológico cujo
rabo, imenso, tinha na ponta a fazenda citada. O pescoço, tão grande quanto
a cauda, podia ser dividido em três partes: a primeira descia pelo morro da
Fumaça; a segunda repousava num altiplano correspondendo à bacia do rio
Verde que, por sua vez, era formado por dois outros; o Pardo e o Preto. A
terceira fração do pescoço ascendia pelos flancos da serra da Saudade onde,
no topo, estava a cabeça do monstro. Granítica, imensa, com o olho ciclópico,
ocupava o cume da montanha. Entre os dentes erodidos, gastos pelo tempo, um
afoito poderia se aventurar, pela boca descomunal, e encontrar pequena
passagem numa cárie disfarçada pelas sarças e espinheiros. Ultrapassada esta
barreira, iniciava-se uma caminhada em declive pelas pedras lisas, lodosas e
escorregadias, por um canal ligeiramente iluminado que bem poderia ser a
garganta do basilisco, lendário.
Prosseguindo a viagem para o interior, o explorador
chegaria a um anfiteatro semi-esférico de grande altura. Da abóbada
escorriam, por tempos imemoriais, gotículas de água cristalina. Por milhões
de anos formaram não só belíssimas estalactites, como também respingavam nas
rochas do piso tornando-o abaulado. Isto só foi possível porque das
entranhas da montanha afloravam olhos d’água diluindo ou amaciando a rocha,
transformando-a numa banheira natural, na qual se podia mergulhar para um
banho reparador. O líquido, que escoava pela borda mais desgastada,
desaparecia nas pequenas fendas. Reaparecia do outro lado do penhasco,
enriquecido de novas fontes, e se despencava em belíssimo véu de noiva.
Corria a lenda de que a mina era milagrosa, a água era
santa. Há tempos ali vivera e morrera um eremita. Deus, para recompensá-lo
pela vida ascética e intenso fervor religioso, tornara a nascente
miraculosa. O anacoreta, na verdade, fora um ser especial, um iluminado.
Falava com os “espíritos”. Doutrinava as pessoas más e perversas; ouvia com
humildade os ensinamentos dos bons. O bom velho curava os doentes pela
imposição das mãos e orações. Alimentava-se de frutos silvestres. Jamais o
viram dormindo e, além disso, tinha excelente relacionamento com os animais
selvagens, os quais protegia dos caçadores.
Difícil, quase impossível era chegar àquela fonte. Não
havia estrada. O peregrino teria que percorrer uma trilha tão estreita que
mal dava para pôr o pé. Armadilhas de todos os tipos dificultavam a
caminhada: buracos sem fundo, um deles tinha o significativo nome de Boca do
Inferno; ladeiras íngremes, despenhadeiros repentinos, camuflados pela
vegetação, e principalmente jararacas venenosas presentes em todos os
lugares: atrás das pedras, dos paus podres, às vezes, simplesmente
enroladas, esquentando-se ao sol da manhã.
Com a morte do ermitão, tão misteriosa como fora a vida,
(correu por muito tempo o boato de que fora assassinado por um caçador,
irritado com a proteção que dava aos bichos) os romeiros foram rareando até
que cessaram. A picada sinuosa desapareceu; a mata retomou o que era dela.
Retornando ao réptil mítico, isto é às montanhas, ao
longo do corpo e nas extremidades das oito pernas espraiavam os sítios,
povoados e fazendas, entre elas as da Cachoeira, Santana, São Mateus,
Grão-Mogol, França, Taquaral, Arrependidos, Monte Verde e outras. A mais
velha, bela e maior era a fazenda Jurema; e o dono, Chico Nico, o mais
temido.
Apesar da distância entre as propriedades, ocorriam
brigas constantes por divisas, por dê-cá-aquela-palha, cometiam-se
assassinatos.
O sítio das Abóboras confrontava com a grande fazenda
Jurema, por azar de Jove. Uns poucos metros eram constituídos por uma lagoa
rasa o suficiente para separar o gado e outros semoventes de cada um dos
donos, mas deu origem a um poço de ódio.
Ocorrera grande período de seca. O charco fora
diminuindo, secando, até se transformar numa minúscula aguada. Os animais, à
medida que o verão esticava, iam avançando pelo brejo afora, à procura do
capim verde que brotava pela umidade remanescente. Acabaram por se misturar
e o prejuízo maior ficou com o pequeno sitiante. As reclamações foram se
intensificando, avolumando e as relações azedando.
Vizinhos e amigos tentaram, sem sucesso, amenizar o
mal-estar. Chico Nico, o mandachuva, poderoso e rico, recusou dialogar e
mandou fazer por conta e risco uma cerca ao longo do terreno litigioso e,
enquanto durou o estio, cessaram os recados desaforados.
Quando vieram as chuvas, o sitieiro observou que a lagoa
recomposta ficara quase totalmente incorporada às terras da Jurema. Pediu a
Chico Nico para derrubar a sebe ou colocá-la na posição correta. Não recebeu
resposta, nem observou ação no sentido de atendê-lo. Furioso, resolveu fazer
a mudança pessoalmente. Quando chegou ao local, notou que, do outro lado,
havia alguém armado. Não se acovardou e avançou resoluto em direção ao
tapume. Ouviu um tiro de advertência dado pelo vigia. Retrocedeu, pegou a
espingarda e atirou, ferindo, levemente, o oponente. Novo estampido e sentiu
a bala passar de raspão na testa. Os duelistas recuaram para uma distância
prudente, sempre trocando chumbo, até o esgotamento da munição. Só assim
abandonaram a luta.
Novamente, amigos comuns tentaram mediar uma
reaproximação, sendo repelidos pelos dois lados em conflito, principalmente
pelo fazendeirão. Desistiram convencidos de que no fim aquilo redundaria em
morte.
As coisas estavam neste pé quando, em um sábado, Jove
recebeu a visita surpresa do inimigo que lhe estendeu a mão e o induziu à
reconciliação. Afirmou que não valia a pena brigar por um pequeníssimo
espelho d’água. Propôs esquecer tudo sem rancor ou mágoa.
Conversa vai, conversa vem, foi tão envolvente, tão
persuasivo e astucioso que convenceu o outro de que era sincero. A serpente,
no éden, não teria sido mais esperta. Por fim, convidou o ex-desafeto a
almoçar um frango com quiabo no dia seguinte. Ainda que ressabiado, Jove não
tinha como recusar e, um tanto aborrecido, aceitou.
Na véspera da viagem à Jurema teve uma longa e dolorosa
noite. O sono agitado, pesadelos e sobressaltos. Revirou na cama, brigou com
o cobertor e com o travesseiro. Gemidos e lamentos... Os galos cantaram
urna, duas e mais vezes, anunciando a madrugadinha. Sonhou que caminhava por
um túnel, escuro, apavorante, que se fechava, afunilava. Esbarrava em
coisas; o negrume o envolvia como um polvo massacrava e asfixiava.
Curvou-se, ajoelhou-se, por fim se arrastou. Os pulmões pareciam explodir e
o coração aos pulos. Desespero, agonia. Súbito, ao longe, um ponto de luz.
Quis prosseguir, não pôde. Estava entalado. Acordou suando frio.
Levantou-se, lavou o rosto e enquanto se penteava, tentou espantar a
estranha visão. Gostaria de decifrá-la, porém, não tinha o dom da vidência.
Alta madrugada, antes de sair, sua filha acordou e
tentou persuadi-lo a ficar quieto em casa, pois tinha também sonhado que ele
morreria. E trocaram este diálogo:
“Pai fica, eu estou com medo...”
“Deixa disto, minha filha. É só um passeio”.
“Eu sonhei...”
“Filhinha, tudo está certo, se papai não voltar vocês
estarão protegidas. Tenho dinheiro em casa e na viagem que fizemos a
Congonhas o Campo, para o jubileu, eu comprei muitas roupas para vocês.
Tenho muita mercadoria estocada no paiol, muitas galinhas no terreiro. Vacas
no pasto e animais...”
Parecia premonição de um fatídico encontro.
Ele saiu de casa, atravessou o terreiro, o estábulo e
foi para o pasto à procura da Dourada, a besta de estimação. Subiu o morro
em forma de meia-laranja. Sabia que a encontraria no topo. De fato, lá
estava com outros animais. Aproximou-se e passou um cipó-imbé sobre o
cangote da mula. Preparou um barbicacho, montou-a
em pêlo. Desceram devagar para o cercado. Ele sempre
deprimido e pensativo. Amarrou-a no tronco, bateu as sementes de
capim-gordura que lhe grudaram nas pernas da calça, buscou, no depósito, a
tesoura, a raspadeira e a escova para a limpeza preliminar da besta. Com a
primeira, aparou-lhe as crinas; com a segunda, retirou os carrapichos e
carrapatos; com a terceira alisou os pêlos. Lento e com muito carinho. Feita
a preparação, pegou, no paiol, algumas espigas de milho, descascou-as,
quebrou-as em pedaços e alimentou o nobre animal. Vagaroso em todos os atos,
como se atormentado por lúgubres devaneios. Profundos vincos sulcavam-lhe a
testa. A preocupação daquele pesadelo. O que significava?... pressentimento
e medo. Pensou em se armar. Desistiu. Não ficaria bem numa visita de
cortesia.
Subiu a escada da estrebaria. Pegou o baixeiro, a manta
e o cabresto. Jogou os dois primeiros sobre o dorso da mula, procurando
ajeitá-los de modo que ficassem bem divididos ao longo da coluna vertebral.
Trocou o cipó pelo cabresto. Retornou à selaria, apanhou o arreio, preso a
um gancho fixo na trava do teto, aí demorou um poço alisando o gancho.
Trouxe o arreio e jogou-o sobre ela, na altura da garupa, para facilitar a
colocação do rabicho. Principiou, em câmara lenta, o ritual do arreamento.
Com as mãos, levantou um pouco a sela, ajustando a suadeira sobre a manta.
Afivelou o peitoral e a cilha. Passou o látego pela argola da barrigueira;
arrochou fortemente. O animal reclamou, levantando a pata esquerda, quase
batendo a ponta do casco no abdômen. Ele entendeu o recado. Afrouxou um
pouco a cincha e acariciou-lhe a tábua do pescoço, pedindo desculpas. Pegou
a cabeçada, colocou-lhe o bocal, procurando não machucar a língua e os
dentes; verificou e acertou a barbela na camba; passou-lhe as rédeas pela
cabeça e ao longo do pescoço, prendendo-as no santo-antônio (cabeça do
arreio). Afastou-se, deu uma olhada crítica na montaria. Achou os estribos
muito curtos, mediu-os pela distância entre o pulso e a axila. Aumentou dois
furos nos loros.
Nada mais havia a fazer. Dourada, corretamente ajaezada
podia viajar. Deu um suspiro. Não teve pressa, estava dopado, sonâmbulo.
Reexaminou tudo: ferraduras, cravos e cascos. Trançou-lhe um nó no rabo para
melhor aparência. Inconscientemente, retardou o máximo.
Apanhou o relho, dependurado num prego; viu o pelego,
entretanto optou pelo coxinilho, tinto de preto, para melhor contraste com a
cor do arreio. Agora sim, estava pronto. Novamente, o coração confrangeu.
Algo inexprimível o retinha. Desfez a laçada do cabresto, caminhou em
direção a casa.
Veio de cabeça baixa onde a mulher já o esperava com uma
xícara de café bem quente. Tomou-o em silêncio e devagar. Nunca demorou
tanto para beber um simples cafezinho. Deu-lhe adeus, cutucou as ilhargas dá
besta com os calcanhares e partiu sem palavras, pois tinha um nó na
garganta. Algo estava errado, muito errado.
Estrelas ainda luziam no céu.
Dourada, ignorando o drama do dono, marchava faceira,
abanando o rabo de encontro às ancas: direita, esquerda... Passou pela
covanca, chegou à raiz da serra. A lua fora mandada embora para as sombras.
O sol derramava luz e calor nos rios, planícies, montes e grotões. Somente
ele sentia arrepios até na alma...
Extraordinariamente quente seria aquele dia.
Conduzia a mula a passo e assim subiu o morro da Fumaça.
No cume eles estavam empapados de suor. O sol, que brilhava como um disco de
fogo desapareceu atrás de nuvens negras. Alguns trovões prediziam o
temporal. Após ligeiro trecho plano, começou a descida, quando sentiu os
primeiros pingos da chuva na testa. Secou-a com o dorso da mão e estugou a
besta, cutucando-a levemente nos flancos. Não usava esporas. Longe viu a
cortina de chuva que unia o céu e a terra e que vinha em sua direção.
A estrada, sinuosa, flanqueava o morro; formava, em
longa curva descendente, uma ferradura, fendida e retorcida por um
ferrabrás; parte do rompão ficava no topo e a outra a cem metros abaixo.
Ainda estava no início e já avistava o final do caminho, lá embaixo. Naquele
ponto, na dobra escondida pela elevação, estava a porteira e bem perto dela
um barraco abandonado.
A obra rústica fora executada por mateiros quando
pretendiam derrubar uma pequena mata. Por discordarem quanto ao preço da
empreitada, desistiram. O casebre ficara, porque esqueceram de demoli-lo.
Dentro da velha palhoça, Pedro Sertanejo, o cafuzo, o
esperava em tocaia. Pela réstia da
janela, viu a vítima que se aproximava a galope. Empunhou o trabuco,
engatilhou-o, entreabriu a porta e aguardou impassível. Com a mão direita
pegou um pedaço de fumo de rolo no bolso, levou-o à boca, tirou uma lasca e
pôs-se a mascá-lo para se liberar da ansiedade. Não queria errar, não podia.
O cavaleiro descia rápido. Pretendia se esconder da
chuva no rancho. Na porteira saltou, desamarrou o cabresto da cabeça do
arreio e se dirigiu ao rancho. O aguaceiro desabou. Estendeu a mão para
abrir a porta.
À queima-roupa o capanga puxou o gatilho. O projétil
atravessou o peito do infeliz acima do coração. Ele se voltou sobre os
calcanhares, tentou montar, chegou a pôr o pé no estribo e se segurou na
borraina, porém, a mula assustada pelo estampido, negaceou. Indefeso, pelas
costas, recebeu mais dois balaços na cabeça; caiu fulminado. Antes de
mergulhar na inconsciência da morte, descobriu quão ingênuo fora em
acreditar na boa-fé de Chico Nico.
O enigma do sonho fora desvendado.
Feito o serviço, o sicário saiu; olhou sem qualquer
remorso para o corpo inanimado, cujo sangue se misturava com a chuva numa
poça avermelhada pelo chão; deu uma cusparada e partiu para relatar o feito
ao chefe.
É notável que naquele instante de muita chuva e de céu
escuro, nuvens se abriram e exatamente sobre o corpo moribundo, brilhou um
raio de luz. Viria buscar uma alma?
Desde então aquele lugar foi denominado Capão da Traição
e considerado maldito. Os que lá passavam altas horas da noite acreditavam
ver o vulto de um homem ensanguentado tentando, desesperadamente, montar.
A viúva, em memória, mandara fincar um cruzeiro no
local. Chico Nico era mesmo impossível. Cismou que o madeiro estava no seu
terreno e que era uma provocação, empilhou lenha em volta e botou fogo. Algo
inexplicável aconteceu: tudo queimou, exceto a cruz. Os crentes encararam o
fato como um aviso, o castigo.
Este fim trágico influenciou negativamente Antônio,
porque era afilhado de Jove e era muito dependente dele. Quando soube do
evento, passou três dias sem comer e dormir, só chorava. Voltou a se
alimentar sob ameaça dos pais de apanhar uma surra.
Antônio, além dos fantasmas de doenças incuráveis ficou
encucado com a morte violenta do tio-padrinho e começou a tomar tiros em
sonhos.
A VIAGEM
Singular fato aconteceu quando Toninho completou doze
anos. Ele mudaria completamente sua vida. Na data do aniversário chegou um
mensageiro da fazenda Jurema e entregou uma carta ao senhor Lisandro. Nela,
o remetente pedia que se contatasse o sacerdote, residente não muito
distante deles, num povoado denominado Rosário.
O ministro de Deus, em questão, era padrinho de um outro
irmão de Antônio. O cura chamava-se Afonso.
Bom vivant e valentão, nele
habitavam outros vícios que não o recomendavam como guia das almas.
Acreditava mais num revólver do que no poder das orações. Ciente do pedido
aceitou-o, pois não queria incorrer na ira do requisitante.
O pai de Toninho aproveitou para mandá-lo estudar, com
professor particular, na fazenda Jurema, como usual naqueles tempos.
Solicitou e conseguiu que o compadre levasse Antônio com ele. Eles tinham,
inclusive, laços de parentesco.
No dia seguinte, encilharam um sendeiro pachorrento,
manso e partiram. O garoto ia à garupa.
A viagem teria transcorrido monótona se não fossem três
incidentes dignos de nota: o primeiro se deu com o menino que, cansado pela
longa caminhada, cochilou e escorregou do cavalo. Só não caiu por ter sido
socorrido a tempo pelo clérigo que, pressentindo, levou a mão rapidamente
para trás e o segurou.
Sentindo-se fatigado, tanto quanto o garoto, resolveu
pedir pousada na fazenda do avô (o papai Neneca, assim chamado), pelo lado
materno, do menino: um fazendeiro que vivia do passado. Ficara pobre pelo
excesso de bondade. Não sabia dizer não e fora muito explorado por isso. A
estância era parada obrigatória de tropeiros, viajantes, mascates e
boiadeiros, em trânsito de uma cidade para outra. Lá pernoitavam, comiam e
partiam sem nada pagar. No tempo das águas, quando as estradas se tornavam
intransitáveis, ficavam semanas vivendo à custa do “papai”, Neca. Utilizavam
suas coisas, pertences, animais, comiam, dormiam e sumiam. Ele foi vendendo
partes das terras e do gado, para saldar dívidas. Ficou sem dinheiro, sem
amigos e, felizmente, sem os parasitas.
Certa feita estavam roubando porcos do bom homem. Numa
noite, ouviram-se latidos dos cães e gritos dos suínos. Um dos filhos do
senhor Manoel, metido a valente, apanhou o mosquetão na parede e foi para a
varanda. O velho correu para a janela e gritou: “Foge, ladrão, senão Nenego
te mata”. Por aí se vê quão bondoso era o fazendeiro.
Foram recebidos pelo avô, que os levou direto à cozinha
onde a avó Teresa mexia um delicioso angu para comerem com leite, como
costume na roça.
Todos se arranjaram em torno de umas brasas postas no
centro, sobre o piso de chão batido da cozinha e, enquanto comiam, contavam
estórias, cantavam lérias, relembravam episódios e combinavam tarefas para o
dia seguinte.
Toninho tinha um tio na faixa dos vinte e sete anos.
Eles se identificaram neste papo informal e, quando foram dormir, combinaram
ficar na mesma cama. De madrugada, o garoto acordou com uma sensação
esquisita. Abriu os olhos e viu que o tio estava grudado nele e que algo ia
e vinha entre as pernas. Perguntou assustado:
— O que está fazendo, tio?
Apanhado de surpresa, ele se afastou e respondeu,
simulando irritação, que o garoto estivera sonhando. Mentira, o descarado
estava abusando sexualmente do sobrinho.
Indeciso sobre que atitude tomar, Toninho resolveu não
reclamar e dormiu novamente. O insólito ato jamais foi esquecido e ele
desenvolveu um intenso e definitivo desprezo pelo parente.
No dia seguinte, seguiram a jornada logo após o
café-com-leite da manhã, acompanhado de broa, biscoito de polvilho, queijo,
cobu (broa de fubá) e outros quitutes.
Toninho recebeu do tio um presente, em dinheiro, que
assim esperava comprar o silêncio e a conivência do rapaz. Vã tentativa, a
ojeriza era definitiva.
Avô Neca, antes da partida, deu um aviso ao pároco sobre
os grandes obstáculos que o esperavam na fazenda Jurema. Lá, seguramente,
belzebu dominava. Expulsá-lo não seria fácil.
O terceiro fato notável ocorreu próximo do término da
viagem, na descida do morro da Fumaça, onde havia a cava e nela a cancela
difícil de abrir, porque era contra a direção que iam. O prelado se curvou
sobre a montaria para alcançar o cabeçote. A seguir, puxou as rédeas de modo
a provocar o recuo do animal. Um pássaro, provavelmente um mocho, alçou vôo,
do braço horizontal da cruz que ficava acima do caminho. A ave passou
rasante sobre o cavalo que, assustado com o pio estridente e o rufiar das
asas, upou. Afonso, estabanado, puxou violentamente o bridão, fazendo o
rocim tresandar. Ele escorregou e empinou. Foram os três para o chão. O
garoto caiu para trás, mas sem se machucar; o padre teve pior sorte, pois
ficou com a perna presa entre o chão e o arnês. Infelizmente, sofreu uma
luxação no tornozelo, forçando-o a um grito doloroso.
O pangaré e o cavaleiro se levantaram. O garoto rápido
segurou os freios. O de sotaina, claudicando, com fortes dores, montou e
encostou o animal num barranco para facilitar o menino subir. Por precaução,
seguiram bem devagar.
— Padrinho! Me conta a estória daquela cruz...
CHICO NICO
Voltava para a fazenda Jurema montado no alazão
castanho. Estava pensativo, deixando o animal regular o passo. Taciturno,
desprezava a si próprio, reavaliava seus atos. Tinha sido um grande patife,
merecia o que estava passando. Não lembrava uma ação boa, nada de que
pudesse se orgulhar. Alheio ao derredor, não via as belezas da paisagem, os
pássaros retornando aos ninhos, o sol se escondendo no horizonte, as nuvens
refletindo as luzes douradas. O entardecer era lindo. Uma pomba-trocal piou
no bosque, as saracuras gritavam à beira da lagoa. Algumas aves noturnas,
assustadas, davam vôos sobre a cabeça do cavaleiro. Ao passar na orla da
floresta, centenas de urubus revoaram da copa de um frondoso ingazeiro. O
bater das asas deu um tom triste àquela caminhada. O ambiente mudou de uma
hora para outra: o ar ficou denso, quase palpável, os crocitares, pios,
grasnados, chirriados e os vôos cessaram. Tudo que indicava presença de vida
silenciou.
Cobras... Não sabia por que, começou a pensar nelas,
abundavam naquela região: corais, urutus, surucucus, jararacas e outras.
Tinha, também, muçurana, que comia as venenosas. Víboras eram encontradas em
todos os lugares: debaixo da cama, sob os travesseiros, na bica do moinho,
no alpendre, no paiol em lugares inimagináveis. De repente uma cascavel
bateu com o chocalho à beira da estrada, o animal assustou, empinou e depois
murchou as orelhas, repuxou as narinas, corcoveou e empinou. O cavaleiro
soltou a praga predileta: Com seiscentos mil diabos! Arrependeu-se, não
queria falar mais palavrão.
Alguns minutos mais, a tarde cederia à noite, o sol
daria lugar à lua-cheia. Chico Nico pareceu acordar dos sombrios
pressentimentos. Descia o morro da Fumaça, os olhos fixaram no tronco
decepado de uma antiga figueira. Diziam que o demônio gostava daquela
árvore, que tinha o talo queimado, preto, muito feio, com dois ramos mais
grossos abertos em forma de V, apontando para o Céu, como se clamasse por
vingança contra o fogo que devorou seus galhos e folhas. Um raio caíra nela
há alguns anos.
Aquele cascavel era diferente, algo assombroso
aconteceu: a víbora deslocou-se para trás da gameleira e um moleque,
pretinho, pernas finas, pés largos, surgiu por detrás, segurou o ginete pelo
focinho e disparou com ele. Chico Nico caiu em estupor, perdeu o poder sobre
a alimária que só obedecia ao negrinho. Saíram da estrada e desceram em
desembestado galope. O animal tropeçava, levantava, planava e deslizava
sobre as touceiras de capim. Para trás ficavam os rastos daquela corrida
desatinada. Nada interrompia a cavalgada satânica: galhos esgarçados,
pequenos arbustos arrancados com raízes, espinheiros curvados e retorcidos.
Sobre as pedras, as ferraduras tiravam fagulhas, como se pretos velhos
estivessem tentando acender as bingas para tirar um trago nos cachimbos ou
cigarros de palha. Ao passar por casebres de colonos ou de agregados, estes
punham as cabeças para fora das toscas janelas e as retiravam rapidamente,
persignando-se com terror. Seguiram morro abaixo, quase em linha reta para a
fazenda, sem respeitar buracos, cercas, vales e matas, como se estivessem
voando a alguns palmos do chão. A viagem agônica durou pouco tempo; porém,
para o fazendeiro, foi infinitamente longa.
Chegaram ao curral; o cavalo estancou como se estivesse
diante de um muro invisível e difícil de transpor. Pelas ventas escorria
sangue que se misturava com a espuma da boca e transformava em uma baba
sanguinolenta, cujo filete descia ao chão. O corpo do pobre animal estava
molhado de suor. Teve um tremor violentíssimo, derreou-se, caiu de prancha
com um baque surdo, arrebentado de tanto esforço.
O crioulinho desapareceu misteriosamente, apenas um
assobio finíssimo feriu o ouvido de todos, causando arrepios de temor nos
que o ouviram. O mal não estava mais ali, por enquanto.
Chico Nico deu acordo de si e se levantou da sela. De
fato, estava sentado ridiculamente no cavalo morto. Como um zumbi subiu a
escada e entrou cambaleante. Rita, sua filha, estava no quarto. Ele passou
direto, mas ela segurou-o peia mão e disse quase sussurrando:
— Papai, hoje ele não veio...
Olhou para a filha estranhamente e seguiu adiante. Na
sala estava a mulher.
Dona Almira era alta, magra, cabelos grisalhos, nariz
aquilino cheio de cravos. Tinha um olhar cansado, triste e bondoso. Encarou
o marido, interrogando-o silenciosamente. Ele falou: — O padre virá.
A mulher não ficou totalmente satisfeita, notara-lhe a
mortal palidez, acompanhou-o ao quarto do casal.
— Graças a Deus — disse ela. — Um padre é nossa última
esperança, não aguento mais, aqui é um caos. Você ficou uma semana fora, os
problemas duplicaram. Como foi a viagem? — E sem esperar resposta: — A
menina não está nada bem, não dorme direito e, quando o faz, se levanta como
uma sonâmbula e tenta sair de casa, fala com voz diferente e, como sempre,
vê coisas. Hoje nada aconteceu, felizmente...
— Eu sei por que: ele estava comigo... —Apagou.
Nos contrafortes da serra da Saudade com as serras da
Bocaina e de Ibitipoca, no centro de um triângulo formado pelos povoados de
Santa Bárbara, Pirapitinga e Humaitá, sobre um platô, estava a antiga e
imponente fazenda Jurema. Para construí-la tiveram que desbastar uma pequena
nesga de floresta coberta de palmeiras, onde se viam lindos buritis,
carandaís, brejaúbas, indaiás e outras. Quando da inauguração, pensaram em
vários nomes, como palmital, cocais, coqueiros. Por fim optaram por Buriti;
mais tarde, o atual dono a rebatizara Jurema.
É possível que alguns nomes propiciem focos e
concentrações de energias misteriosas. Parece que a palavra Jurema é um dos
casos de atração negativa. Trata-se de uma planta usada pelos indígenas como
poderoso meio de feitiços, sortes, encantamentos e de invocação das forças
da mata. Provoca sonhos e visões terríveis e é indispensável em sessões de
catimbó e de pajelança. Chico Nico era chegado a este tipo de trabalho
mágico. Apesar da troca de nome, os mais velhos teimavam
em chamá-la Buriti.
A fazenda era velha, muito velha; diziam que tinha mais de duzentos anos; um
exagero, talvez cento e cinquenta; mais de cem, certamente. Construída
totalmente sobre pedra, resistira às intempéries e ao vandalismo do homem.
Os pilares, de blocos retangulares de cantaria, com oitenta centímetros de
comprimento por trinta centímetros de largura e mesma dimensão na altura,
bem nivelados, ajustados, esquadriados, uns sobre os outros, dispensavam
qualquer tipo de argamassa para soldá-los. Sobre as colunas pétreas
repousavam os barrotes e vigas de aroeira ou de peroba, com quarenta
centímetros de largura e altura, e de comprimentos variáveis. Todos travados
entre si constituíam um conjunto sólido e durável. Sobre esta base,
elevaram-se colunas, algumas de madeira de lei, outras de pedra, aprumadas e
travadas. As paredes foram emboçadas com massa de adobe e pintadas de ocre
suave, as janelas envidraçadas, corriam em forma de guilhotina; as
venezianas abriam-se para dentro. O gradeamento que suportava o telhado
colonial era uma obra de arte de bons carpinteiros e marceneiros. A madeira,
ajustada e presa com cavilhas do mesmo material, armava uma gaiola que
suportava qualquer forro e telhado, sem perigo de desabar. As tesouras,
caibros, ripas, terças, cumeeiras, etc. eram de peúna, candeia, canela e
canjerona. As janelas, portas, assoalho, móveis em geral, feitos de madeira
maciça, compunham um conjunto harmonioso e longevo. As várias dependências
enormes. A antiga senzala, de lanço corrido, ocupava grande parte do piso
inferior; a cozinha, certamente, dominava um terço da área total do piso
superior.
Entrava-se na fazenda pelo porão, quando a cavalo. Lá
deixavam o animal para ser cuidado. Subia-se por uma escadaria de pedra até
uma espécie de ante-sala, onde se guardavam os chapéus, capas, bengalas,
esporas e guarda-chuvas. De lá acessavam a um salão, ou ao varandão.
O alpendre tinha a mesma dimensão de um lado da casa:
mais ou menos quarenta metros. Por ele entrava o pessoal que vinha a pé. Na
sala dourada, a maior, com 150m2, acontecia as grandes recepções,
bailes, saraus e casamentos. Não existia capela. Dez quartos, cinco salas,
dois escritórios, sala de banhos, despensa e outras dependências completavam
o segundo andar. A frente da enorme fazenda era orientada para o lado sul.
Do mesmo lado, ficava o terreiro e o gigantesco curral, calçado de pedras,
ligeiramente inclinado. Após eles, vinha a planície. Mais longe, linhas
cinzentas indicavam a fumaça de algumas chaminés das casas mais altas de um
lugarejo.
No lado leste, uma linda cachoeira despencava num açude
profundo, com eterna névoa sobre ele, decorrente da evaporação das águas.
Também se podia observar parte da floresta que recobria a serra.
Aproveitando a queda d'água, instalaram o moinho para moagem do milho, o
engenho de cana e o alambique para a fabricação de cachaça, rapadura e
açúcar preto. O paiol, a queijeira, a selaria e o forno ficavam na parte
norte. Finalmente, a oeste, cultivavam hortaliças e árvores frutíferas,
sendo colhidas verduras e frutas das mais variadas espécies o ano inteiro.
Por todos os lados se chegava à herdade. Algumas
estradas eram íngremes, outras mais planas, dependendo da direção escolhida.
Como muitas outras esta fazenda fora construída por
escravos, e nela centenas pereceram. Chico Nico, o atual proprietário, a
obtivera por herança. Por ser imensamente rico, possuía muitos empregados;
mais de cem. Afirmavam que, no tempo da escravidão, tivera mil ou mais.
Ainda produzia quase tudo: café, arroz, feijão, farinha, milho, além de
muitos outros produtos. Centenas de cabeças de gado, cavalos, ovelhas e aves
domésticas propiciavam muita abundância. Diziam que naquela casa só se
comprava sal.
Chico Nico era um barão, até adquirira a patente de
coronel da Guarda Nacional. Considerava-se o rei daquelas paragens; o senhor
da vida e da morte dos familiares e dos empregados. Não admitia contestação
dos seus mandamentos, não temia Deus, nem ao Demônio. Invocava
constantemente os nomes do excomungado e gostava da expressão:
Com seiscentos mil diabos.
O divertimento preferido era o estupro. Nenhuma donzela,
filha de colonos ou de vizinhos, escapava de ser "iniciada" por ele.
Intitulava-se inaugurador das virgens. Caso fosse enganado por alguma
candidata, virava bicho e punia o antecessor com castração ou morte. De vez
em quando sumia algum colono, a razão era a fuga para não morrer. Mandava e
desmandava. Considerava-se superior ao delegado, escrivão e juiz de paz. A
riqueza não era produto só do trabalho, diziam que teria recebido muito
dinheiro falso de Portugal, em fundos duplos de garrafas cheias de vinho,
importadas. Emprestava dinheiro a juros extorsivos, mediante a hipoteca de
terras. Na data do vencimento, executava judicialmente os inadimplentes e
tomava os bens imóveis. Useiro e vezeiro na tocaia, fez desaparecer muito
vizinho recalcitrante. Dono de mil alqueires de terra e queria mais sim,
porque tinha ambição insaciável. Lamentavelmente, era coiteiro: a fazenda, o
refúgio de assassinos, ladrões, assaltantes e fugitivos da pior espécie.
Com sessenta anos de idade, parecia ter mais de setenta.
Estava velho cm face dos excessos que cometera: mulheres, bebidas e jogo.
Neste último, ganhava sempre; um trapaceiro refinado.
Este é o retrato duro e sem retoques, do fazendeiro.
Mulher e filhos só diziam “sim, senhor”. O velho não tinha qualquer
consideração com os parentes. Conviviam com ele, mas preferiam vê-lo pelas
costas. Sentiam-se aliviados quando o viam partir para alguma viagem e
pediam a Deus que demorasse bastante.
Autoritário, mandão e egoísta eram os adjetivos menos
fortes com que lhe brindavam. Na ocasião de eleições, os candidatos do
oficial da Guarda Nacional seriam eleitos. Depois, para qualquer decisão,
iriam lhe pedir a bênção. Certa vez o delegado desobedeceu a sua ordem para
soltar um preso. Agiu rápido, removeu a autoridade, soltou o prisioneiro e
demoliu a cadeia.
As estórias das arbitrariedades de Chico Nico eram sem
fim. Ele bem que queria ser endeusado, na verdade, merecia a visita do
tinhoso. Aliás, diziam que tinha um famaliá preso na garrafa; um cramulhão.
Há muitos anos plantava egoísmo, ódio, maldade,
assassinatos, trapaças, misérias e dores; agora estava colhendo a
tempestade.
Aguarde em breve, continuação...