Foi há muito
tempo. Deu-se quando eu tinha cinco ou seis anos, no máximo. Meu
pai, que residia em Rosário de Minas, entrou em desavença com outro
morador da família dos Quirinos e para que não corresse sangue,
mudou-se para Paula Lima. Nos primeiros 30 dias, moramos em casa
alugada de Alberto (Bebeto) Leite. A casa estava abandonada havia
muitos anos e cheia de bichos/insetos daninhos, que nos infectara me
causaram a morte de quatro dos meus irmãos em pouco mais de um mês.
Mudamos novamente para uma casa ao lado da igreja de Paula Lima e
foi lá que vi pela vez primeira a festa de malhação do Judas, que se
realiza no sábado da Aleluia. Depois,meu pai traumatizado pela perda
de três filhos, mudou-se outra vez, agora para Chapéu D’Uvas, onde
residimos 12 anos, mas não nos desligamos de Paula Lima,aonde eu ia
passear frequentemente e ficava dias na casa de meu amigo Didinho,
filho de seu Nenzinho. Aos 12 anos participei ativamente da festa de
malhação do Judas que passo a descrever adiante. Essa festa
marcou-me profundamente, porque jamais vira algo semelhante em
Rosário, ou em Chapéu D’Uvas. Vou tentar contar um pouco do que vi,
se bem que há muitas lacunas em minha memória, e os arquivos mentais
estão se deteriorando rápido.
Após a missa,
fomos ao adro assistir à queima do Judas, na praça. O Judas era
recheado de trapos, estopas, palhas de milho, serragem, papéis etc.,
e bombinhas, muitas bombinhas. O pobre palhaço ficava dependurado
numa estaca, ostentando chapéu velho,charuto de pólvora enfiado na
boca, e calçado com sapato velhíssimo, porque os bons sapatos eram
para uso do pessoal do lugar. Ele esperava que se cumprisse seu
destino. No entorno do Judas ficavam seus pertences. Pertences que
eram furtados à noite, em todas as casas, e muitos seriam devolvidos
aos donos logo após a queima; antes, porém, haveria a leitura do
testamento, em quadras poéticas,de pobres rimas, que tratamos de
reconstituir, conforme formos lembrando.
Parênteses sobre
a colheita noturna que fazíamos para Judas: Nós, os meninos,os
rapazes e senhores, à noite formávamos grupos para visitar as casas
e retirar aquilo que se convencionava chamar de “os bens do Judas”.
Na noite em que subtraíamos as coisas, um dos companheiros deveria
fazer macarronada, porque ninguém é de ferro. Lembro-me de que o
incumbido da tarefa foi Leônidas –– um grande centroavante do Aymoré
FC de Chapéu D’Uvas. Pois bem, nosso cozinheiro Leônidas, Deus o
tenha, usou toucinho rançoso e, apesar de nossa fome, alguns de nós
eu, inclusive, rejeitaram a gororoba.Os que comeram, já haviam
forrado o estômago com álcool.Os meninos ficaram nas bebidas tipo
limonada e soda. Os adultos tomavam cachaça, vinho e conhaque. E
fecho parênteses.
Parece que esta
manifestação folclórica está acabando, o que é pena, mas soube que
em Chapéu D’Uvas permanece assim: ... “até hoje roubam as
prendas uma noite antes da queima fazem a galinhada e no dia
seguinte falam de quem é isto e aquilo, brincam bastante e queimam o
boneco, claro que sabem para quem devolver tudo depois”.
Voltando ao nosso Judas,
informamos que o ato de queimá-lo não tinha nenhuma outra conotação
que não a religiosa: o fogo purifica. Nada de esoterismo, misticismo
ou política; era só brincadeira mesmo. Esse mau elemento esperava
sua hora, sua vez, porque vendera Jesus e por isso iria pagar. Não
me lembro de quem foi o testamenteiro; sei que ele tinha boa dicção
e suas palavras soaram com clareza.
Voltando ao caso Paula Lima: o
testamenteiro primeiramente vai a Judas, retira um rolo de papel
amarfanhado do seu bolso, desenrola-o aos poucos enquanto faz um
introito:
É meio-dia, minha gente,
estamos reunidos aqui para dar simbolicamente o devido castigo a
este indivíduo que há dois mil anos traiu Nosso Senhor Jesus
Cristo,por trinta dinheiros e o entregou aos romanos para ser
crucificado. Acabou criando o famoso beijo de Judas. Sabemos que se
arrependeu e quis devolver os trinta dinheiros.Não podendo fazê-lo,
enforcou-se. Agora, quer doar tudo que tem aos ilustres aqui
presentes. Eis seu testamento para o qual peço muita atenção e que
ninguém banque o esperto de pegar bens alheios... pois, se o fizer,
irá encontrá-lo no quinto dos infernos.
Senhoras e Senhores, vou
começar! E, para quem sabe ler, um pingo é letra...nas entrelinhas
há muita verdade embutida.