por Asséde Paiva
(rosarense), bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos.

 
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MALHAÇÃO DO JUDAS EM PAULA LIMA
  

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Foi há muito tempo. Deu-se quando eu tinha cinco ou seis anos, no máximo. Meu pai, que residia em Rosário de Minas, entrou em desavença com outro morador da família dos Quirinos e para que não corresse sangue, mudou-se para Paula Lima. Nos primeiros 30 dias, moramos em casa alugada de Alberto (Bebeto) Leite. A casa estava abandonada havia muitos anos e cheia de bichos/insetos daninhos, que nos infectara me causaram a morte de quatro dos meus irmãos em pouco mais de um mês. Mudamos novamente para uma casa ao lado da igreja de Paula Lima e foi lá que vi pela vez primeira a festa de malhação do Judas, que se realiza no sábado da Aleluia. Depois,meu pai traumatizado pela perda de três filhos, mudou-se outra vez, agora para Chapéu D’Uvas, onde residimos 12 anos, mas não nos desligamos de Paula Lima,aonde eu ia passear frequentemente e ficava dias na casa de meu amigo Didinho, filho de seu Nenzinho. Aos 12 anos participei ativamente da festa de malhação do Judas que passo a descrever adiante. Essa festa marcou-me profundamente, porque jamais vira algo semelhante em Rosário, ou em Chapéu D’Uvas. Vou tentar contar um pouco do que vi, se bem que há muitas lacunas em minha memória, e os arquivos mentais estão se deteriorando rápido.

Após a missa, fomos ao adro assistir à queima do Judas, na praça. O Judas era recheado de trapos, estopas, palhas de milho, serragem, papéis etc., e bombinhas, muitas bombinhas. O pobre palhaço ficava dependurado numa estaca, ostentando chapéu velho,charuto de pólvora enfiado na boca, e calçado com sapato velhíssimo, porque os bons sapatos eram para uso do pessoal do lugar. Ele esperava que se cumprisse seu destino. No entorno do Judas ficavam seus pertences. Pertences que eram furtados à noite, em todas as casas, e muitos seriam devolvidos aos donos logo após a queima; antes, porém, haveria a leitura do testamento, em quadras poéticas,de pobres rimas, que tratamos de reconstituir, conforme formos lembrando.

Parênteses sobre a colheita noturna que fazíamos para Judas: Nós, os meninos,os rapazes e senhores, à noite formávamos grupos para visitar as casas e retirar aquilo que se convencionava chamar de “os bens do Judas”. Na noite em que subtraíamos as coisas, um dos companheiros deveria fazer macarronada, porque ninguém é de ferro. Lembro-me de que o incumbido da tarefa foi Leônidas –– um grande centroavante do Aymoré FC de Chapéu D’Uvas. Pois bem, nosso cozinheiro Leônidas, Deus o tenha, usou toucinho rançoso e, apesar de nossa fome, alguns de nós eu, inclusive, rejeitaram a gororoba.Os que comeram, já haviam forrado o estômago com álcool.Os meninos ficaram nas bebidas tipo limonada e soda. Os adultos tomavam cachaça, vinho e conhaque. E fecho parênteses.

Parece que esta manifestação folclórica está acabando, o que é pena, mas soube que em Chapéu D’Uvas permanece assim: ... até hoje roubam as prendas uma noite antes da queima fazem a galinhada e no dia seguinte falam de quem é isto e aquilo, brincam bastante e queimam o boneco, claro que sabem para quem devolver tudo depois”.  

Voltando ao nosso Judas, informamos que o ato de queimá-lo não tinha nenhuma outra conotação que não a religiosa: o fogo purifica. Nada de esoterismo, misticismo ou política; era só brincadeira mesmo. Esse mau elemento esperava sua hora, sua vez, porque vendera Jesus e por isso iria pagar. Não me lembro de quem foi o testamenteiro; sei que ele tinha boa dicção e suas palavras soaram com clareza.

Voltando ao caso Paula Lima: o testamenteiro primeiramente vai a Judas, retira um rolo de papel amarfanhado do seu bolso, desenrola-o aos poucos enquanto faz um introito:

É meio-dia, minha gente, estamos reunidos aqui para dar simbolicamente o devido castigo a este indivíduo que há dois mil anos traiu Nosso Senhor Jesus Cristo,por trinta dinheiros e o entregou aos romanos para ser crucificado. Acabou criando o famoso beijo de Judas. Sabemos que se arrependeu e quis devolver os trinta dinheiros.Não podendo fazê-lo, enforcou-se. Agora, quer doar tudo que tem aos ilustres aqui presentes. Eis seu testamento para o qual peço muita atenção e que ninguém banque o esperto de pegar bens alheios... pois, se o fizer, irá encontrá-lo no quinto dos infernos.

Senhoras e Senhores, vou começar! E, para quem sabe ler, um pingo é letra...nas entrelinhas há muita verdade embutida.

1
Sei que errei muito
arrependido estou
deixo aqui a relação
de tudo que me sobrou

2
Faço doação das coisas
para o pobre e para o fisco
para criança e velho
para mulher e pro bispo

3
Para o padre Nelson Dutra
que reza missa em minutos
deixo pra ele o missal
vela, conhaque e charutos

4
Para nosso marceneiro
Sebastiãozinho Belo
deixo pra ele o serrote
formão, martelo e cutelo

5
Para Totonho Silva
da Fazenda da estrada
devolvo o carrinho de mão
bezerro e vaca malhada

6
Seu Joaquim Minga
do armazém da chegada
deixo pra ele um porco
e besta bem arreada

7
Para o pessoal do beco
que é pobre por natureza
deixo pra eles a bênção
vão melhorar com certeza

8
Para o amigo Leônidas
jogador de futebol
deixo pra ele a navalha
será barbeiro de escol

9
Para João Minga
boiadeiro arrojado
deixo pra ele o cachorro
enxada, foice e machado

10
Para dona Laerte
professora de valor
quero deixar pra si
caneta e apagador

11
Ao italiano Anibal
chamado Zacarrão
eu vou deixar para ele
o auto e um caminhão

12
Pro Henrique Dias
português trabalhador
vou deixar pra ele
carroçaria de valor

13
Pro Agnelo Lopes
que levanta muito cedo
vou deixar aqui pra ele
o sítio do Azevedo

14
Pra seu Nenzinho irado
zangado mas do bem
vou deixar só pra ele
a sanfona e um vintém

15
Para Pedro Pião
seleiro e sapateiro
vou deixar pra ele
arreio muito maneiro

16
Para nosso José Chagas
pintor chocarreiro
quero deixar para ele
a fama de cachaceiro
17
Para o Jolita escrivão
que faz nossos registros
vou deixar para ele
sala cheia de livros

18
E pro Vicente Hauck
gosta de truco jogar
vou deixar pra ele
um baralho pra ganhar

19
Para o encrenqueiro Baú
Que se lava sem a bucha
vou deixar pra ele
faca, espeto e garrucha

20
Ao valente João da Negra
que tem o pé muito grande
euvou deixar pra ele
bilhete pra casa-grande

21
Seu Jerônimo Abreu
Lá do capim gordura
deixo família enorme
para tratar com ternura

22
Zé Júlio matreiro homem
vende noventa por cem
eu digo para ele recado
cuida da alma também

23
Ao nosso Zé-neném
de bobo não tem nada
vou deixar na sua prole
uma filha muito amada

24
Seu Prudente Dias
com cavanhaque aparado
vou deixar que ele viva
100 anos mais um bocado

25
O Alencar delegado
com Pinduca auxiliar
deixo xadrez e chicote
para prender e malhar

26
Ao Dembá mentiroso
deixo conselho também
para de mentir homem
a verdade é que convém

27
Ao Salomão usurário
empresta e não quer doar
fique com trinta moedas
e vamos ver que vai dar

28
Joaquim Leite pão-duro
mão de vaca não dá nem oi
eu vou deixar pra ele
de sabugo carro de boi

29
Agostinho Minga jovem
da casa fugiu pra guerra
euquero dizer pra ele
o bom cabrito não berra

30
Ao João enfermeiro
genro de Chico Manoel
eu vou deixar pra ele
agulha, pinça e pincel

31
Ao Jovelino Minga
que tem jeito de guerreiro
eu vou deixar pra ele
a mula e cão perdigueiro
32
O Zé Formigueiro
mata saúva inimiga
quero deixar pra ele
um fole e formicida

33
Aos Lopes em geral
lavradores mateiros
eu vou deixar pra eles
fornos de carvoeiros

34
Ao Joaquim Spineli
Pedreiro e carpinteiro
o Judas deixa pra ele
caixa de ferramenteiro

35

Para o fofo tio Lenca
chegado a um traguinho
o Judas deixa pra ele
dois dedos de caninha

36

Pro ferreiro Teodoro
bom no martelo e bigorna
deixo pra ele carvão
e vento pra sua forja

37
Pro sô Arlindo Lulu
da Boa-Vista dono
vou deixar pra ele
o cachimbo de cambono

38
Pro Oswaldo sanfoneiro
pai de moça bonita
vou deixar pra elas
dois vestidos de chita

39
Zé Domingo boa praça
descalço assim assim
vou deixar pra ele
sandália e borzeguin

40
Pro coronel João Mendes
sogro de Zé Vieira
Vou deixar pra eles dois
só um pé de bananeira

41
Ô Manuel Sabino
homem de maior alegria
Vou deixar pra você
garrafa de pinga vazia
42
Ao Zé Luís valeteiro
que bebe como gambá
deixo um barril de vinho
para beber e bambá

43
Romeu Terra dentista
homem de projeção
eu quero deixar pra ele
dentadura e boticão

44
Seu Flausino subdelegado
que tem enorme bravura
ele vai herdar de mim
cachimbo e rapadura

45
Agora meu testamento
lido e achado conforme
deixo beijo para todos
e um abraçaço enorme

46
Pedindo salva de palmas
Encerro meu testamento
queimo aqui e no inferno
pro meu eterno tormento

O testamenteiro se volta para a multidão e informa:

O testamento de Judas
tem carimbos pra dedéu

firma reconhecida
por são Pedro lá no céu
não há juiz que absolva
este renegado réu
vamos terminar a função
acendendo o fogaréu

O fogueteiro José Chagas vai a Judas, derrama um pouco de querosene, acende o charuto de pólvora, bem como pavio no pé do indigitado e o fogo se alastra. A garotada apanha varas de bambu, pega varas de marmelo, e surra o corpo em chamas.

Queima de Judas em Juiz de Fora, Brasil(1909)

Texto publicado no Benficanet em 26/09/2014

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