Dizem psicólogos e outros estudiosos da mente
humana, que esquecemos as coisas boas que nos acontecem vida
afora e lembramos só dos traumas pessoais. Deve ser verdade,
porque maus eventos são registrados a ferro e fogo em nosso
cérebro, os bons se vão como neblina de outono.
Trago em minha memória acontecimento infernal que se deu
quando ainda tinha doze ou treze anos. Morava em Chapéu
D’Uvas, (casa da foto), na insegurança da minha
adolescência, quando chegou meu tio Jovelino (Jove),
com uma boiada do sertão de Divino de Ubá.
Com ele veio seu cachorro, Lobo, que tomava
conta ferozmente de sua alimária. Ai de quem chegasse
perto... E se meu tio dissesse “Inimigo aí!” Lobo pulava no
atrevido e o mordia implacavelmente. Por isso, ninguém
ousava aproximar da mula, onde quer que ela
estivesse amarrada ou solta,mesmo porque a besta (ver foto
dos três) era ensinada. Podia ser liberada do cabresto, que
permanecia quieta, até que meu tio a cavalgasse outra vez.
|
Pois bem, tio Jove vendeu a boiada ao dono da
fazenda Sesmaria, próxima de minha casa e ficou um ou dois
dias. Ele empreitou, com seu Zequinha, para amansar umas dez
mulas. O tio era famoso amansador e ferrador de burro bravo.
Ele era petulengro no idioma romani ou dos ciganos.
Meu tio buscou os animais e dispôs a partir para sua terra.
Ele deixaria, por ora, as bestas no sítio do Azevedo,
arrendado ao meu pai. O velho Minga, meu pai, pediu a meu
tio Jove que levasse também até o referido sítio, algumas
vacas e bezerrinhos. Indicou-me para ajudá-lo nesta
travessia. O cachorro Lobo ficaria em casa, porque a partir
de Benfica, meu tio pegaria ônibus até Juiz de Fora e de lá
o trem da RMV, ramal Leopoldina.
Em manhã de sol quente sem nuvens, saímos para cumprir
jornada de uns oito quilômetros. Assim que atravessássemos o
arraial Lobo voltaria com o ajudante. Tudo bem até que
cruzamos a linha férrea. Continuamos a caminhada pela
estrada que margeava a ferrovia. Para nossa desgraça, a
locomotiva de um trem de carga bebia água, para encarar a
serra da Mantiqueira, na caixa d'água (veja foto). Quando
estávamos na altura da igreja de são José, a máquina saciou
sua sede, e o ajudante ou foguista retirou a imensa
mangueira do tender e jogou-a de volta ao seu cabide. O
maquinista avisou da partida, puxando a corda do apito:
Piauííííííí. E acelerou. À primeira golfada de vapor, nossos
animais apavoraram e deram meia-volta. Correria, gritos,
assovios, cachorros latindo. Disparada em sentido contrário
ao que queríamos. Esporeei meu cavalo e voltei também,
tentando contê-los. Não consegui, eles eram tão mais velozes
do que o meu. Volte Ferrute, volte! Clamava meu tio. Não
obedeci, havia magnetismo no ar. Moradores às janelas não
entendiam o que se passava.. Meu Deus! E o trem acelerando
mais e mais. Era a corrida da morte. Que poderia acontecer?
Deus me salvou, porque meu arreio desapertou e foi parar no
pescoço de meu cavalo. Virou o arreio e despenquei para o
chão, onde fiquei estonteado, estatelado, pertinho da casa
de dona Liquinha, que correu para me ajudar. Meu cavalo
seguiu escoiceando ao vento e se livrando da arriata.
Animais e trem porfiavam na velocidade em direção ao
pontilhão. Depois o trem parou, com o limpa-trilhos sujo de
sangue, à borda da ponte. Um silêncio atroz me envolveu.
Caminhamos... Todos os animais morreram, exceto um que
perdeu um casco e ficou sangrando entre pedras e águas, lá
embaixo. Eu, patético, observava o horror que provoquei com
meu açodamento. Nunca mais esqueci este desastre, que foi
considerado um acidente, mas no fundo do coração carrego a
culpa. Se não tivesse tentado deter a cavalgada, talvez
todos escapassem, pois na minha ânsia de salvá-los provoquei
mortes.
Lobo não morreu; meu tio viajou de trem, e lobo ficou
amarrado a noite inteira. E uivou e uivou. No dia seguinte,
logo que foi solto, desapareceu, e dias depois após mais de
cem quilômetros, voltou a sua casa em Divino de Ubá (hoje
Divinésia).
O burro, que perdeu um dos cascos, não morreu. Tratei-o com
imenso carinho dois anos e meio. Ele definhava, pouco a
pouco. Um dia, papai levou-o a uma grota e o matou, para
desespero de minha mãe que tanto implorou que não fizessse
assim. Dizem que a morte deste animal traz atraso de vida,
parece que é verdade. Papai nunca mais ‘aprumou’ na vida,
mas isto é outra estória. Eu hoje me pergunto: Por que o
maquinista não parou? Por que acelerou? Não teria visto? Era
um imbecil competindo com seu cavalo de aço? Não sei, não
sei!
Papai queria processar a EFCB, mas foi desaconselhado, pois,
não havia possibilidade de ganhar a causa.
Obrigado por não me culpar, ninguém me culpou, mas minha
consciência, sim.
Não me lamentem, nem tenham pena de mim. Estava escrito:
Maktub.
|