Eu, Rio Paraibuna, dou meu testemunho,
peço respeito e passagem. Nascido no alto da Mantiqueira, a
1200m de altitude, num lugar entre arbustos densos e
pedregulhos, na garganta profunda da montanha, no município de
Antônio Carlos. Não pensem que nasci grande, desde logo. Vim das
profundezas abissais, do ventre da Terra e, no inicio, na forma
de vapor muito quente. Então, o vapor esfriou ao chegar à crosta
terrestre e condensou. Como vocês dizem, eu brotei. Era simples
olho d’água e logo ensopei, enlameei aquela gruta, lá na borda
do campo. Depois, vieram gotas de sereno; as chuvas copiosas no
alto da serra. Adquiri forças, desci montanha abaixo, parando
aqui e acolá, para superar obstáculos, seja uma pedra, um buraco
ou uma loca. Às vezes fazendo barulhinho tipo
glu-glu,estranho, suave, gostoso entre ramos,folhas,
galhos caídos e entre arenitos. Serra abaixo, entre árvores,
neblina e arbustos, crio quedas d’água aqui e ali. Forjo lagos,
lagoas, poços, açudes, piscinas naturais, onde vivem os peixes,
e os bichos vêm dessedentar. Rodeio os troncos e sigo o meu
destino, que é o de todos os rios, pois, as águas vão pro mar.
Fui batizado com o nome de Paraibuna que, em tupi, significa o
rio das águas escuras. Do planalto para a planície, em terras
baixas, sou mais calmo, faço minha calha. Esqueci-me de dizer
que sou velho, velhíssimo, mesmo. Conheci estas terras em épocas
diferentes. No princípio, eram florestas de um lado e de outro
das margens. Índios caixinoás viviam perto, livres, pacíficos,
caçando, pescando, vivendo até que foram exterminados. Depois,
vieram os bandeirantes, desbravadores; garimpeiros, faiscadores,
sesmeiros, fazendeiros e seus escravos. Assisti à construção do
caminho novo; vi o alferes, Tiradentes, prender e enforcar os
assaltantes que infestavam a Mantiqueira; conheci
pechelingueiros e capangueiros, nos descaminhos de diamantes e
de ouro; soube de mortes pelo vil metal e por pedras preciosas.
Vi comboieiros levando escravos para as lavras; vi tropeiros
contrabandeando ouro em pó, nos santos de pau oco; vi a estrada
de ferro chegar e passar seus trilhos sobre minhas águas mansas
ou turbulentas. Mais tarde, após corrida do ouro, vieram os
mateiros e seus machados; derrubaram tudo, "limparam" as
florestas para fazer pastos e plantações e... ai de mim! Hoje,
apenas umedeço capim, nas beiradas, para pastagem e sirvo de
bebedouro. Antes, nos bons tempos, extravasava minhas águas
todos os anos e fertilizava as terras planas. Acabou o tempo de
grandes inundações, que dava medo aos atrevidos. Não há chuva,
pois tiraram a mata ciliar. Corro, mansamente, na caixa
original. Digo que amo os peixes; eles são meus companheiros,
dou-lhes alimento e sobrevivência. Sem mim, morrem, não sabem
respirar fora d'água. Ao longo de meu caminho tudo acontece;
recebo córregos tributários, entre eles: Tabuões, Estiva,
Espírito Santo,Três Pontes etc. Meus principais afluentes são os
rios Peixe, Preto e o Cágado e muitos outros menores. Sobrevivo
com eles, graças a eles. Na verdade,os riachos estão muito
poluídos, principalmente em Juiz de Fora. Esgoto de metro em
metro;entulhos de obra, plásticos, madeiras, pneus, árvores etc.
Banho nove cidades: a primeira é Antônio Carlos, onde está minha
nascente, a última, na vazante, é Chiador. Depois que desço a
serra e caminho mais de vinte quilômetros, o homem estancou
minhas águas e disse ser uma represa (as obras duraram incríveis
40 anos), para normalizar minha vazão, ou débito. O culpado de
minhas enchentes é o próprio homem que, devastou árvores,
mangues, açudes e causa assoreamento. No meu suave caminhar, o
dito bípede racional, achou que eu era muito sinuoso e fez a tal
retificação que me deixou mais rápido, dizendo ser o progresso e
defesa da cidade a exigir tal feito. Nem sei se foi boa escolha,
o certo que passei a correr, ninguém precisa me apressar. Sem
florestas, sem ramagem lateral, sem remansos piscosos, vou
emagrecendo, afinando, quase rastejando. Minha lâmina d’água bem
menor, bem menos do que era. Outrora, rio grande, hoje pequenino
e pra não desaparecer na seca, liberam a água retida na barragem
de Chapéu D’Uvas, que citei. Ah! os percalços da vida de um rio
maltratado... a viagem continua, conheço bem meu caminho, eu
fi-lo há milhões de anos. Passo nas terras da fazenda Sesmaria,
entre jabuticabeiras, onde existia a grande fazenda, hoje só
monturos indicam os pilares principais. Adiante, em águas
calmas, em inflexão de anzol, eu dividia terras do sítio Chalé e
as de José Ferreira/Orzelina; passava por figueira, onde o casal
joão-de-barro comemorava mais uma casinha:
ki-ki-ki, Cristo! A seguir, brigava com pedras no pontilhão
de Chapéu D’Uvas. Debaixo de um bambuzal, conta a lenda que era
morada do caboclo-d'água. Mais à frente, sob marianeiras, havia
em tempos idos cardume de piabas. Nada disto existe mais; é
passado, não muito distante pelos meus parâmetros milenares.
Onde está o menino com sua vara de pescar? Tenho saudade
dele.Estou divagando, variando; foi há anos, talvez cinquenta ou
sessenta. Hoje, quase não há peixes no meu caminho; rarosmandise
piaus, poucos lambaris, traíras e cascudos. Sim, estou me
acabando, minhas águas turvas estão espantando os peixes,
provocando-lhes doenças. Eu bramia sob o pontilhão de Chapéu,
agora, acabou, estou mansinho, o que se passou? Até as iaras
foram embora. Dizem que elas hipnotizavam os que passavam no
pontilhão da estrada de ferro, fazendo-os se jogarem na água. Eu
vi muitos acidentes inenarráveis. Vi o arraial em grande
progresso, veio a decadência.Chapéu D’Uvas, como eu, é sombra do
passado. Antes havia a movimentada prainha de Chapéu, onde
centenas usufruíam minhas águas, para suportarem melhor o calor
do verão. Acabou tudo...Vá lá, veja como estou humilde,
tristonho, pedindo licença às pedras e pilastras que sustentam o
pontilhão. Meu bramir já era; a prainha já era. Fim...Onde estão
as brancas areias? Estou em crise existencial; afinal, sou rio,
ribeirão ou riacho? Quem me viu e quem me vê... Onde as
saracuras, narcejas e piriás. Sumiram as pombas-juritis,inhambus
e jacus.Não se ouve mais o piar do macuco, os guinchos do
porco-do-mato e o esturro da esquiva onça-pintada... E as
lontras, pacas, e preás? Sapos,outrora, coaxavam (meu
pai foi rei? foi, não
foi, foi! pagou! não pagou!), não
mais discordam entre si, não há brejos, nem lagoas. O que vejo,
meu Deus!? Em Juiz de fora, sob a ponte de Manoel Honório,
um morto, vivos levando,barco/alimento... Urubus não são maus
(faxineiros da natureza),são provas do grande desastre que o
homem causou, jogando imundices em mim me fazendo esgoto a céu
aberto, destino de seus dejetos. Degradaram-me...Nos velhos
tempos as crianças, os jovens e adultos podiam pescar e nadar em
minhas águas sadias, até bebê-las, sem medo de apanhar doença
grave (alguém se habilita a dar um mergulho, hoje?). Garça põe
galocha para não se contaminar, enquanto cata os vermes. Estou
pleno de metais pesados:cádmio, chumbo, zinco, engrossado por
efluentes líquidos e sólidos, vindos de esgotos e córregos
solitários.Resíduos, borras, sucatas, sofás, colchões,
engradados aparecem por todos os lados. Meu leito é de morte,
minhas emanações são miasmáticas. Sumiram as lavadeiras do
Botanagua; o povo de Juiz de Fora, um dia me deu um grande
abraço...“Precisamos salvar o Paraibuna!” Mas foi só, nada mais
aconteceu. Fizeram planos, sim, não ações efetivas, continuadas,
consistentes.Em Juiz de Fora, o povo diz que me ama, mas me
trata como se me odiasse. Acreditem! Passaram-se mais de setenta
anos desde que inundei a cidade. Fizeram grande estardalhaço
contra mim,pela cheia, que eles,os habitantes, provocaram ao
invadirem as terras baixas. Claro! nas chuvas,transbordo minhas
águas nas várzeas, por que não? Elas são minhas, como as do
bairro Benfica e outras. Imaginem a ousadia: num bairro chamado
Ponte Preta fincaram casinholas na minha calha...quando aumentei
meu volume, levei-as de roldão. Os ignorantes,não sabem que sou
essencial. Lembro-mede que eu era tão profundo, que até
obtiveram licença para explorar o transporte
fluvial[1].Após
quilômetros,ora curvando preguiçosamente por aí, ora em longa
reta artificial e depois de levar a sujeira de Juiz de
Fora,ontem, hoje... sinto-me sufocado,poluído,impaciente.
Enfrento corredeira milenar, redireciono minhas águas para a
usina elétrica. Forneço energia para a cidade; aliás, dizem que
sou a fonte da primeira usina hidroelétrica da América do Sul.
Passando a usina histórica,bato num granito aqui,noutro ali e
outro. Ao chocalhar nas pedras, há mistérios:cresço, desapareço
em crateras, espumo, dou volteios, roncos ameaçadores, decanto a
ganga,ganho oxigênio, após saponificar a gordura e recomeço mais
limpo. Vou passando por Matias, Simão Pereira, Levi Gasparian,
muitas outras cidades e, finalmente, Três Rios,onde me jogo
amorosamente, prazerosamente no colo do grande amigo, o rio
Paraíba do Sul. Só, então,perco meu nome, após cento e sessenta
e seis quilômetros sofrendo e apanhando dos viventes. Oh,
insensatos! Fiquem sabendo, escrevam, meditem, abracem-me
novamente... por favor, ajam, antes que seja tarde demais! Sou
vida; se eu morrer, vocês lamentarão e vão sofrer e morrer
também. Continuarei a caminhar, pois sei contornar os
obstáculos, no eterno fluir do tempo.
Aqui eu deixo recado /A todos os homens de bem / Cuidem da minha
limpeza / Ou vão pro scheol também / E salvem todos os rios /
Que os anjos digam amém.
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