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Recordar é Viver!

por Asséde Paiva
(rosarense), bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos.

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Rio Paraibuna
O rio Paraibuna costeando Chapéu D’Uvas. Foto pinçada da internet

Eu, Rio Paraibuna, dou meu testemunho, peço respeito e passagem. Nascido no alto da Mantiqueira, a 1200m de altitude, num lugar entre arbustos densos e pedregulhos, na garganta profunda da montanha, no município de Antônio Carlos. Não pensem que nasci grande, desde logo. Vim das profundezas abissais, do ventre da Terra e, no inicio, na forma de vapor muito quente. Então, o vapor esfriou ao chegar à crosta terrestre e condensou. Como vocês dizem, eu brotei. Era simples olho d’água e logo ensopei, enlameei aquela gruta, lá na borda do campo. Depois, vieram gotas de sereno; as chuvas copiosas no alto da serra. Adquiri forças, desci montanha abaixo, parando aqui e acolá, para superar obstáculos, seja uma pedra, um buraco ou uma loca. Às vezes fazendo barulhinho tipo glu-glu,estranho, suave, gostoso entre ramos,folhas, galhos caídos e entre arenitos. Serra abaixo, entre árvores, neblina e arbustos, crio quedas d’água aqui e ali. Forjo lagos, lagoas, poços, açudes, piscinas naturais, onde vivem os peixes, e os bichos vêm dessedentar. Rodeio os troncos e sigo o meu destino, que é o de todos os rios, pois, as águas vão pro mar. Fui batizado com o nome de Paraibuna que, em tupi, significa o rio das águas escuras. Do planalto para a planície, em terras baixas, sou mais calmo, faço minha calha. Esqueci-me de dizer que sou velho, velhíssimo, mesmo. Conheci estas terras em épocas diferentes. No princípio, eram florestas de um lado e de outro das margens. Índios caixinoás viviam perto, livres, pacíficos, caçando, pescando, vivendo até que foram exterminados. Depois, vieram os bandeirantes, desbravadores; garimpeiros, faiscadores, sesmeiros, fazendeiros e seus escravos. Assisti à construção do caminho novo; vi o alferes, Tiradentes, prender e enforcar os assaltantes que infestavam a Mantiqueira; conheci pechelingueiros e capangueiros, nos descaminhos de diamantes e de ouro; soube de mortes pelo vil metal e por pedras preciosas. Vi comboieiros levando escravos para as lavras; vi tropeiros contrabandeando ouro em pó, nos santos de pau oco; vi a estrada de ferro chegar e passar seus trilhos sobre minhas águas mansas ou turbulentas. Mais tarde, após corrida do ouro, vieram os mateiros e seus machados; derrubaram tudo, "limparam" as florestas para fazer pastos e plantações e... ai de mim! Hoje, apenas umedeço capim, nas beiradas, para pastagem e sirvo de bebedouro. Antes, nos bons tempos, extravasava minhas águas todos os anos e fertilizava as terras planas. Acabou o tempo de grandes inundações, que dava medo aos atrevidos. Não há chuva, pois tiraram a mata ciliar. Corro, mansamente, na caixa original. Digo que amo os peixes; eles são meus companheiros, dou-lhes alimento e sobrevivência. Sem mim, morrem, não sabem respirar fora d'água. Ao longo de meu caminho tudo acontece; recebo córregos tributários, entre eles: Tabuões, Estiva, Espírito Santo,Três Pontes etc. Meus principais afluentes são os rios Peixe, Preto e o Cágado e muitos outros menores. Sobrevivo com eles, graças a eles. Na verdade,os riachos estão muito poluídos, principalmente em Juiz de Fora. Esgoto de metro em metro;entulhos de obra, plásticos, madeiras, pneus, árvores etc. Banho nove cidades: a primeira é Antônio Carlos, onde está minha nascente, a última, na vazante, é Chiador. Depois que desço a serra e caminho mais de vinte quilômetros, o homem estancou minhas águas e disse ser uma represa (as obras duraram incríveis 40 anos), para normalizar minha vazão, ou débito. O culpado de minhas enchentes é o próprio homem que, devastou árvores, mangues, açudes e causa assoreamento. No meu suave caminhar, o dito bípede racional, achou que eu era muito sinuoso e fez a tal retificação que me deixou mais rápido, dizendo ser o progresso e defesa da cidade a exigir tal feito. Nem sei se foi boa escolha, o certo que passei a correr, ninguém precisa me apressar. Sem florestas, sem ramagem lateral, sem remansos piscosos, vou emagrecendo, afinando, quase rastejando. Minha lâmina d’água bem menor, bem menos do que era. Outrora, rio grande, hoje pequenino e pra não desaparecer na seca, liberam a água retida na barragem de Chapéu D’Uvas, que citei. Ah! os percalços da vida de um rio maltratado... a viagem continua, conheço bem meu caminho, eu fi-lo há milhões de anos. Passo nas terras da fazenda Sesmaria, entre jabuticabeiras, onde existia a grande fazenda, hoje só monturos indicam os pilares principais. Adiante, em águas calmas, em inflexão de anzol, eu dividia terras do sítio Chalé e as de José Ferreira/Orzelina; passava por figueira, onde o casal joão-de-barro comemorava mais uma casinha: ki-ki-ki, Cristo! A seguir, brigava com pedras no pontilhão de Chapéu D’Uvas. Debaixo de um bambuzal, conta a lenda que era morada do caboclo-d'água. Mais à frente, sob marianeiras, havia em tempos idos cardume de piabas. Nada disto existe mais; é passado, não muito distante pelos meus parâmetros milenares. Onde está o menino com sua vara de pescar? Tenho saudade dele.Estou divagando, variando; foi há anos, talvez cinquenta ou sessenta. Hoje, quase não há peixes no meu caminho; rarosmandise piaus, poucos lambaris, traíras e cascudos. Sim, estou me acabando, minhas águas turvas estão espantando os peixes, provocando-lhes doenças. Eu bramia sob o pontilhão de Chapéu, agora, acabou, estou mansinho, o que se passou? Até as iaras foram embora. Dizem que elas hipnotizavam os que passavam no pontilhão da estrada de ferro, fazendo-os se jogarem na água. Eu vi muitos acidentes inenarráveis. Vi o arraial em grande progresso, veio a decadência.Chapéu D’Uvas, como eu, é sombra do passado. Antes havia a movimentada prainha de Chapéu, onde centenas usufruíam minhas águas, para suportarem melhor o calor do verão. Acabou tudo...Vá lá, veja como estou humilde, tristonho, pedindo licença às pedras e pilastras que sustentam o pontilhão. Meu bramir já era; a prainha já era. Fim...Onde estão as brancas areias? Estou em crise existencial; afinal, sou rio, ribeirão ou riacho? Quem me viu e quem me vê... Onde as saracuras, narcejas e piriás. Sumiram as pombas-juritis,inhambus e jacus.Não se ouve mais o piar do macuco, os guinchos do porco-do-mato e o esturro da esquiva onça-pintada... E as lontras, pacas, e preás? Sapos,outrora, coaxavam (meu pai foi rei? foi, não foi, foi! pagou! não pagou!), não mais discordam entre si, não há brejos, nem lagoas. O que vejo, meu Deus!? Em Juiz de fora, sob a ponte de Manoel Honório, um morto, vivos levando,barco/alimento... Urubus não são maus (faxineiros da natureza),são provas do grande desastre que o homem causou, jogando imundices em mim me fazendo esgoto a céu aberto, destino de seus dejetos. Degradaram-me...Nos velhos tempos as crianças, os jovens e adultos podiam pescar e nadar em minhas águas sadias, até bebê-las, sem medo de apanhar doença grave (alguém se habilita a dar um mergulho, hoje?). Garça põe galocha para não se contaminar, enquanto cata os vermes. Estou pleno de metais pesados:cádmio, chumbo, zinco, engrossado por efluentes líquidos e sólidos, vindos de esgotos e córregos solitários.Resíduos, borras, sucatas, sofás, colchões, engradados aparecem por todos os lados. Meu leito é de morte, minhas emanações são miasmáticas. Sumiram as lavadeiras do Botanagua; o povo de Juiz de Fora, um dia me deu um grande abraço...“Precisamos salvar o Paraibuna!” Mas foi só, nada mais aconteceu. Fizeram planos, sim, não ações efetivas, continuadas, consistentes.Em Juiz de Fora, o povo diz que me ama, mas me trata como se me odiasse. Acreditem! Passaram-se mais de setenta anos desde que inundei a cidade. Fizeram grande estardalhaço contra mim,pela cheia, que eles,os habitantes, provocaram ao invadirem as terras baixas. Claro! nas chuvas,transbordo minhas águas nas várzeas, por que não? Elas são minhas, como as do bairro Benfica e outras. Imaginem a ousadia: num bairro chamado Ponte Preta fincaram casinholas na minha calha...quando aumentei meu volume, levei-as de roldão. Os ignorantes,não sabem que sou essencial. Lembro-mede que eu era tão profundo, que até obtiveram licença para explorar o transporte fluvial[1].Após quilômetros,ora curvando preguiçosamente por aí, ora em longa reta artificial e depois de levar a sujeira de Juiz de Fora,ontem, hoje... sinto-me sufocado,poluído,impaciente. Enfrento corredeira milenar, redireciono minhas águas para a usina elétrica. Forneço energia para a cidade; aliás, dizem que sou a fonte da primeira usina hidroelétrica da América do Sul. Passando a usina histórica,bato num granito aqui,noutro ali e outro. Ao chocalhar nas pedras, há mistérios:cresço, desapareço em crateras, espumo, dou volteios, roncos ameaçadores, decanto a ganga,ganho oxigênio, após saponificar a gordura e recomeço mais limpo. Vou passando por Matias, Simão Pereira, Levi Gasparian, muitas outras cidades e, finalmente, Três Rios,onde me jogo amorosamente, prazerosamente no colo do grande amigo, o rio Paraíba do Sul. Só, então,perco meu nome, após cento e sessenta e seis quilômetros sofrendo e apanhando dos viventes. Oh, insensatos! Fiquem sabendo, escrevam, meditem, abracem-me novamente... por favor, ajam, antes que seja tarde demais! Sou vida; se eu morrer, vocês lamentarão e vão sofrer e morrer também. Continuarei a caminhar, pois sei contornar os obstáculos, no eterno fluir do tempo.

Aqui eu deixo recado /A todos os homens de bem / Cuidem da minha limpeza / Ou vão pro scheol também / E salvem todos os rios / Que os anjos digam amém.

O autor e Alcione em Chapéu D'Uvas, 1975

[1]Em 20/1/1914, Abel Montreuil demonstrou que o rio Paraibuna era navegável, inaugurando um serviço de transportes de passageiros por lancha a motor entre Benfica e parte da rua Halfeld. Na época, o rio era sinuoso mais estreito e com maior volume d’água. O ancoradouro era nos fundos da fazenda de Maria Eugênia (avó do empreendedor). A primeira viagem foi realizada da rua Halfeld (partida 11horas; retorno 16horas),em direção a Benfica. (Adapt. de Vanderlei Tomaz, in página de memória <benficanet.com>)

Foto de Jorge Vicente, 10/2006, na ponte ferroviária, em Chapéu D'Uvas. "Quedê"a prainha e o rio Paraibuna?!
 Acredite se quiser!
Prainha, in Chapéu D'Uvas, nos idos de 1974, onde as mocinhas louçãs apanhavam lambaris com guarda-sol.
 
Texto publicado no Benficanet em 31/10/2012
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Comentários:

Asséde Paiva - Volta Redonda - RJ - 26/11/12
Hamilton aguarde a continuação de rio Paraibuna.

Hamilton Manoel de Oliveira - S. J. Tadeu - Juiz de Fora - MG - 26/11/2012
Mais uma vês, venho aqui para agradecer pela, pela excelente narrativa, sobre nossa história. Sou o Hamilton, um dos filhos do guarda chave Rio Novo e Jovina. Nasci e cresci em Chapéu D'Uvas, e com essa narrativa me vejo criança novamente usufruindo do nosso Rio Paraibuna. Quanta saudade. Abraços.

Milton Porto (Miltinho) - Nova Era - Juiz de Fora - MG - 14/11/12
Realmente bate uma grande saudade, ótimos tempos da prainha... pena que o homem de hoje, que já foi de ontem, não está valorizando o que Deus nos deu sem custo algum... era só preservar.

Miguel Ribeiro Gomide - Santa Helena - Juiz de Fora - MG -  06/11/2012

Além de seu estilo escorreito convidativo à leitura, o escritor Asséde Paiva, nas entrelinhas do texto, ao leitor ensina geografia, sociologia e ambientalismo, advertindo também sobre os riscos pela falta de cuidados com a natureza. Transmite aos leitores, a saudade do seu Chapéu D'Uvas do passado, com sua vida própria comunitária. A matéria está ilustrada com diversas fotos comparativas, ambientando o leitor ao texto. Parabéns Dr. Asséde Paiva. Lendo-o, recordo nossa visita à sua histórica terra natal, Rosário de Minas.

Antonio Pedro - Jd. Tiradentes - Volta Redonda - RJ - 02/11/2012
Que triste! Estamos aperfeiçoando nossa capacidade de destruir. Sorte termos alguém com a capacidade e sensibilidade do Sr. Asséde para nos despertar de nossa indiferença. Parabéns Asséde!

Helena de Paula - Praia Grande - SP -31/10/2012
Para mim foi como entrar no túnel do tempo... Brinquei tanto nesta prainha! Adorava passar minhas férias escolares em Chapéu D'Uvas. Pegávamos o trem em Mariano Procópio, era maravilhoso o encontro com os primos. Que saudades me deu... Um beijo!
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