Eu
conheci muito bem Geraldo Ambrozino. Quem se lembra dele?
Tinha sido guarda-freio da Estrada de Ferro Central do
Brasil (EFCB). Infelizmente, sofreu um acidente de trabalho
e ficou sem as duas pernas. Eu o conheci já sem as pernas,
quando morava ao lado da caixa d’água, onde os maquinistas
enchem o tanque de suas locomotivas sedentas. Geraldo, para
minimizar os problemas de locomoção, construíra um carrinho
onde se postava e que era puxado por dois bodes (ou seria
um?); e assim rodava pelo arraial de Chapéu D’Uvas, à
vontade. Ele também gostava de tomar umas e outras, talvez
para esquecer problemas, sei não. Quem mora na casa é que
sabe onde está a goteira. O homem tinha acessos de cólera
quando se embebedava e dava cacetadas nos móveis da casa.
Por causa de sua deficiência física, ele não podia correr
atrás dos meninos e eles fugiam para não apanhar. Fora
disso, Geraldo era boa pessoa. Eu tinha receio dele; pensava
que, em momento de fúria, podia pegar do chicote e bater em
mim como fazia nos bodes. Nos filhos nunca o vi bater, isto
não. Minha amizade com Geraldo surgiu da leitura. Ele
gostava de ler. Era um bom modo de sonhar e fugir da
realidade. Eu gostava de ler, também; e assim, tínhamos
cumplicidade. Lembro-me de que ele uma vez me emprestou um
livro chamado Pérolas esparsas, de uma editora
protestante. Fixei na memória o titulo do conto
Guardai-vos dos adivinhos. Estória de um maquinista que
parou o trem, justo na hora de cair num rio, cuja ponte
tinha sido levada pela enchente. O condutor parou porque uma
mosca agitava-se no farol da máquina, sem cessar e ele
pensando ser um aviso do céu, puxou os freios antes do
abismo. Geraldo me emprestou o livro e outros, bem como
almanaques Capivarol, Saúde da mulher e
contos da Carochinha. Eu sempre fui amigo de
leitores: Sô Cândido, o feitor, Valinho, Rio Novo e outros.
Pois bem, certa feita caminhava pela estrada que margeava a
ferrovia, na altura da casa de dona Inacinha, quando ouvi
gritaria. Um trem que manobrava em linha auxiliar, por ali,
reduziu a velocidade lentamente. Corri em direção ao povo
que corria. Cheguei bem a tempo de ver Geraldo que, apesar
da deficiência se arrastava velozmente sob cerca de arame
farpado, que separava a estrada de chão da estrada de ferro,
passar sobre dormentes e trilhos abraçar o companheiro que
acabava de ter o mesmo destino dele: ter as pernas cortadas
por um vagão. Aliás, isto acontecia com frequência, porque
guarda-freio tem que se meter entre vagões em movimento e
proceder a certos ajustes, para desengatar um vagão do
outro. Eu, moleque de uns doze anos, estava petrificado de
terror. Geraldo queria se jogar debaixo de outra composição
que passava na linha principal, bem devagarzinho. Gardina e
dona Isaura gritavam “Jesus, meu Deus!” Os demais
participantes do trágico evento e lembro de os dois Teodoros
(ferreiros e armeiros), Pedro Pião, José Lourenço, entre
outros, contiveram o gesto insano de Geraldo. O maquinista
entendeu o tumulto e deu cinco apitos abafados, tristonhos,
em código Morse, traduzindo dor de todos.
Socorristas ajudaram a retirar o ferido e Geraldo para fora
dos trilhos e postos à beira da ferrovia. Isto se deu na
minha frente com meu coração latejando. Improvisaram padiola
e levaram o ferido para estação. Lá, seu Valinho, o Agente,
chefe da Estação, solicitou a Mimi, o radiotelegrafista, que
passasse mensagem a Juiz de Fora pedindo instruções.
Mandaram que pusessem acidentado na primeira composição que
passasse. Como era mais ou menos duas da tarde, o rápido
ainda estava para chegar. O rápido, R1, não parava em
Chapéu, mas o caso era excepcional e determinaram a Rio
Novo, o guarda-chave, que sinalizasse para o trem parar.
Isso foi feito e o Rápido estacionou. Abriram o vagão dos
correios, estenderam lençóis e deitaram o infeliz
manobreiro. E eu assisti a tudo horrorizado com aquela cena,
ao lado da plataforma. A quantidade de sangue que jorrava,
ensopava os lençóis. O trem partiu rápido como o próprio
nome, para Juiz de Fora levando o infeliz guarda-freio para
Santa Casa. Tarde demais, ele morreu no caminho, exangue.
Desde então, falavam que em certas noites, o guarda-freio
reaparecia no local do acidente e se punha a lamentar e a
procurar suas pernas. Tudo folclore, mas eu acreditava
piamente. Claro que evitava passar por aquele lugar à noite.
Quem não tem medo de fantasma, alma penada etc.? Nunca mais
vi Geraldo Ambrozino, que pelo muito que sofreu, pela
atenção que me deu, espero esteja junto a Deus... Aí vem
outra estória (que se liga a esta), das quais fui
coadjuvante/participante privilegiado.
Meus pais moravam do outro lado da linha, num sítio anexo à
fazenda Sesmaria, onde tiravam leite, faziam queijinhos e
coisas da roça. Queijo nos lembra da vaca, que o leite nos
dá. Daí, eu peço licença para contar um caso do poder da
mente:
Um fazendeiro de nome Anísio nos
cedeu uma vaca de nome Figurona. Tinha este nome porque era
branca, altiva; grandes chifres, encurvados como parênteses
e fazia presença. Só que ela perdera a primeira cria e
estava 'segundando', quando Anísio Vieira nos pediu para
esgotá-la, isto se fosse possível, porque ela não permitia
que ninguém se aproximasse. Meu pai aceitou a incumbência e
levou-a ao curral. Eu era o adolescente que auxiliava o
retireiro, i. é, amarava as patas da vaca, com cordas de
crina, jungia bezerros na pata dianteira e dava a caçamba
para o retireiro. Tentei amarar Figurona. Quem dera! Ela
saltou e saltou. Passei as cordas ao meu pai, que conseguiu
amarrá-la com firmeza. Mas quando tento tirar o leite, ela
danou a pular e a escoicear e remexer quadris e pernas, até
que se soltou. Meu pai passou-lhe o parão e me deu pra
segurar. Em seguida, pegou a vara de ferrão pela ponta e
deitou o malho na figurona. Ela berrava, mugia, babava e a
cacetada descia, fazendo riscas no couro de Figurona. Por
fim, a soltamos quase morta de tanta bordoada que levou. No
dia seguinte e nos outros, ela se deixava amarrar, mas não
descia leite algum; quando muito, meio litro e olhe lá. Um
dia, meu pai viajou e não tinha quem tirasse o leite das
vacas. Nós morávamos à beira do caminho que ia pra fazenda
do Cafundão. Minha mãe pôs-se à janela esperando o leiteiro
do Cafundão, que passava por lá em direção à estação para
mandar o leite para a cooperativa de Benfica. Esqueci o nome
do leiteiro, mas não do seu feito. Quando ele passou, minha
mãe o interrompeu, pedindo que ele ordenhasse nossas dez ou
doze vaquinhas. O pessoal da roça é solidário e bondoso. Ele
prontamente acedeu e se dirigiu ao curral onde vacas e
bezerros mugiam, esperando a ordenha que se fazia tardar.
Pois bem, para encurtar esta estória, o retireiro chamou de
pronto, Figurona. Incrível! Ela atendeu. Nem a amarrou,
jogou as cordas aos seus pés, que quietinha ficou. Ele
pôs-se de cócoras, pegou a caçamba e ‘serenou’. Digo
serenou, porque o leite descia facilmente do mojo
intumescido, da vaca ‘brava’ pra caçamba. Em minutos, o
úbere estava murcho e o balde de dez litros, cheio. Espuma
derramava pelas bordas da vasilha. Que poder extraordinário
tinha aquele leiteiro... ele tinha poder supranormal. Foi um
momento mágico que não se repetiu na minha vida, e nunca
mais Figurona deu tamanha quantidade de leite com quem quer
que fosse.
E volto ao caso principal: Como a quantidade de queijos era
pouca, vendíamos ao pessoal local, principalmente para
Geraldo Norberto. O resto do estoque nós levávamos ao nosso
tio, Sebastião Leite, em Francisco Bernardino, que os
revendia no armazém de secos e molhados. As sextas-feiras,
minha mãe acondicionava os queijos, dúzias de ovos e doces
caseiros, em uma mala enorme e meu pai os levava. Acontece
que um dia ele viajou, e como não tinha outra pessoa em casa
para levar tais mercadorias, a tarefa foi delegada a minha
pessoa. Aliás, gostei, pois, assim seria possível dar uma
esticada a Juiz de Fora, passear na rua Halfeld, comprar
gibis, assistir a um filme; enfim, usufruir a cidade.
Entreguei os queijos ao tio, em Bernardino, dei uma desculpa
qualquer e peguei o ônibus da Viação Diana. Fui direto à rua
Halfeld. Já disse que gostava de livros, visitei a casa
Zappa e, bem no fim da rua Halfeld entrei na charutaria
Campos, que vendia além de charutos: cigarros, cachimbos,
chocolates, livros, jornais e revistas. Era ótima para meus
desejos. Manuseei livros e não podia comprá-los, porque eram
caros demais para mim, mas os alisei com carinho.
Entretanto, vi a um canto livros pequenos, certamente
resumos de romances maiores, não eram livros de bolso, na
verdade, eram quase do tamanho de um maço de cigarros.
Assim, gostei do titulo Castelo de Epstein de
Alexandre Dumas. Sou ou era vidrado em contos e romances de
Dumas e como o preço era acessível, comprei Castelo de
Epstein. Voltei à estação para embarcar para minha
casa. Por motivo de descarrilamento perto de Matias Barbosa,
o trem atrasou três horas e chegou à noitinha. Era o Misto,
seja muitos vagões de carga e um ou dois de passageiros.
Embarquei na segunda classe, porque o dinheiro era muito
curto. O trem, após a bandeirada do condutor, partiu
resfolegando, dando um ou dois apitos de advertência. Antes
de cair em sonolência, ouvi da máquina de meu trem o
cantarolar: cerejeiras do Japão, bem baixinhas rente ao
chão uuuiííííííí, piuííííí. Mais ou menos na altura de
Benfica, houve freada brusca. Acordei, decidi abrir a malona
e degustar um pouco o livrinho que comprara. Quando leio me
abstraio do meio ambiente, não sinto frio ou calor; não ouço
nada, não tenho fome, enfim, viajo na fantasia, entro no
enredo, sou ‘tomado’ pela estória. E aconteceu... Quando o
trem deu uma parada, pensei: “cheguei” segurei a mala,
rapidamente pulei na plataforma ou passarela. Parece que o
maquinista só esperava meu desembarque para arrancar. Quando
o trem desaparecia numa curva vi... Vi que descera na
estação errada: em Dias Tavares, a quinze quilômetros de
Chapéu D’Uvas. Que vacilo! No jargão de hoje, diriam que
paguei o maior mico: antológico mico. Eu, estarrecido pela
minha alienação; é o que acontece com quem recebe o ‘caboclo
ledor’. Fiquei pensando, parafusando alguns minutos o que
haveria de fazer. Não conhecia ninguém naquele arraial. A
noite era um breu e havia medo no ar. Decidi e comecei a
caminhar na beira da linha para minha casa. Chegaria, sem
dúvida, mas ia demorar. “Era só acompanhar os trilhos”.
Porém, logo, logo vi que a tarefa não seria fácil, pois,
cachorros vira-latas saíam dos casebres à beira linha e com
infernais latidos, buscavam me morder. Felizmente, tinha o
malão e ele era minha defesa. Meu coração pulsava
descompassado. Caminhei e caminhei. Quando cheguei à casa do
feitor da linha, já bem longe do arraial estava cansado e
desanimado. Na verdade, com muito, muito medo. Assim, com
maior vergonha, pedi pousada, que me foi negada. Mas o
feitor disse que eu podia esperar o rondante, no galpão dos
materiais e ferramentas. O rondante devia chegar em torno de
dez horas da noite. Sentei-me no local indicado e esperei
uma, duas, três ou mais horas. O rondante enfim, chegou.
Para quem não sabe, rondante é o empregado da ferrovia que
caminha entre estações. Assim, um saía de Chapéu ia até à
metade do caminho, em direção Dias Tavares. Quando
encontrava o colega trocavam um bastão, prova de que
cumpriram o dever, o ir e vir. No dia seguinte, repetiam a
mesma operação. Agora, com um companheiro, recuperei a
coragem e reiniciei a viagem, aliás, não tinha opção. Ele, o
rondante, era boa gente e me levou a casa de parentes, onde
tomamos café de garapa ‘com formiga’ e eu tentei
desesperadamente engoli-la, tomando grandes goles, mas não
consegui. Segreguei-a a um canto da boca e a cuspi para
fora, quando saímos para recomeçar o trajeto. Após sete e
meio quilômetros encontramos seu contraparte, que vinha de
Chapéu D’Uvas. Cumprimentaram-se, acenderam cigarros de
palha utilizando binga — isqueiro rudimentar; reclamaram do
frio e da noite escura e partiram; cada qual, pro seu
destino. Eu continuei a viagem com o novo rondante, agora
meu conhecido, do arraial. Esqueci seu nome acho que se
chamava Antônio ou Geraldo. Por volta de uma hora da manhã
chegamos a Chapéu. Aí, para meu azar, meu companheiro
resolveu passar na sua casa, antes de seguir para Ewbank da
Câmara. Tive que terminar o trecho que faltava sozinho.
Seria fácil, se eu não tivesse que passar perto daquele
local onde se dera o acidente do guarda-freio. Meus pés
pesavam como chumbo e meus passos eram lentos. Quando me
aproximei da caixa d’água, escutei gemidos, meu cabelo
arrepiou e o coração tuc-tuc-tuc-tuc... e fui
chegando, arrastando. Já pertinho, um pássaro alçou voo...
Era uma coruja ululando, soluçando: venho de coruche.
Desabalei e cheguei com a língua de fora a casa. Ainda assim
e apesar do susto tomei uma espinafração de minha mãe que,
com toda razão, estava desesperada com minha ausência ou
atraso. E nunca mais enfrentei aquela caixa d’água fora de
hora.
"Yo no creo en fantasmas pero que los hay... los hay". ...
Eu não creio em fantasmas, mas que existem, existem.
FINIS
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