A vida: uma fenda de luz que a morte, como um zíper, torna a
fechar fulminantemente.
Asséde Paiva.
Era em 29/1/1962
Candido Ferreira Barroso (Candinho), meu
conterrâneo eu o conheci muito bem. Éramos amigos e mineiros.
Antes de virmos para Volta Redonda, nós morávamos em localidades
próximas, isto é, a mais ou menos sete quilômetros de distância:
eu, em Paula Lima; ele, em Ewbank da Câmara, bairros/distritos
de Juiz de Fora. Ambos mudamos para Volta Redonda em busca de
emprego seguro e cuidar do nosso futuro, pois pensávamos em
melhorar de vida e ajudar nossos respectivos pais, que ficaram
em Minas Gerais. Tive mais sorte e logo fui admitido na
Companhia Siderúrgica Nacional – CSN. Naquele tempo, nos idos de
1955, empregar-se na siderúrgica era nosso sonho de consumo. A
CSN pagava um dos melhores salários do Brasil, perdendo apenas
para o Banco do Brasil. Hoje, chegando aos 73 anos, a CSN não é
antiga; ela tem história: matriz de técnica; foi a maior
siderúrgica integrada da América Latina; empresa de ampla visão
social etc., e a doce Pittsburgh Fluminense.
Pois bem, eu empregado há quase um ano, e Candinho
ainda lutava para garantir um lugar ao sol. Ele era fraco em
português e aritmética, condição única que empresa exigia para
admissão ao seu quadro de pessoal, como servente. Cheguei a dar
alguma orientação a ele sobre as quatro operações, e como
escrever uma carta-bilhete solicitando emprego.
De vez em quando,
batíamos papo na venda do Juju, onde ele fazia hora, enquanto o
emprego que tanto queria não acontecia.
Candinho era charmoso, tinha boa aparência, muito
simpático e comunicativo.
...E o tempo corria e um dia, da janela da minha
casa, assisti a um colóquio entre ele e bela moreninha de
cabelos cacheados. Não havia excessos, só "amasso” carinhosos,
nada inconvenientes. Como não sou fiscal de costumes, deixava os
amantes inebriarem-se a gosto. Ah, o amor!
Brinquei certa feita, com Candinho sobre seu
namoro, ele me disse estar apaixonado pela menina e pretendia
noivar breve e se casar, assim que amealhasse algum dinheiro.
Meses se passaram, e Candinho finalmente “fichou”
na CSN, precisamente no Departamento de Aciaria – DAC, onde se
transformava, por processo físico-químico, o ferro-gusa
liquefeito, em aço carbono, de grande uso na indústria pesada.
Vez por outra, nós cruzávamos: ele vindo do turno de zero hora,
e eu indo fazer compras no armazém do Dinho. Morávamos na mesma
Rua 208. Eu trabalhava no Departamento Industrial de Vendas –
DIV. Trocávamos rápidos cumprimentos e seguíamos a vida.
Pois bem, Candinho não completou um ano de casa...
Em nosso costumeiro ir e vir, ele me falou que no
seu turno (zero as oito) ia tirar uma “pestana”, pois o carro
misturador/transferidor de gusa líquido na sua área estava em
reparo geral. Assim, ele podia descansar enquanto o pessoal do
Departamento de Refratário – DRE trabalhava. Candinho pretendia
viajar a sua terra natal no dia seguinte, para buscar papéis
úteis pro casório futuro. E parecia muito feliz.
Estava escrito que algo muito grave ia
acontecer...
Ele
sonhava as quatro e quinze da madrugada nevoenta e fria.
E foi seu último dia de sono... no Planeta Azul.
Quatro horas da manhã... O Auxiliar de Enfermagem
Ettore Dalboni da Cunha, lotado no Departamento de Segurança Industrial
– DSI olhou para o relógio na parede e deduziu que em menos de quatro
horas findaria seu turno de zero hora, e iria para casa descansar,
embora aquela noite não fora cansativa: alguns curativos, injeções,
medidas de pressão ou de temperatura e “conversa fiada” com os atentos
operários que o procuravam. Assim, resolveu entender um colchonete para
repousar os ossos. Nem chegou a deitar, porque a boca do inferno
explodiu: língua de fogo destruiu o telhado; a cadeira da enfermaria
caiu, a mesa virou, papéis voaram e vidros estilhaçados para todos os
lados. Gritaria e pedidos de socorro; um pandemônio. Ettore pôs-se de pé
e logo chegaram feridos: uns andando; outros, carregados. Ele fazia o
possível a fim de minimizar o sofrimento geral. Para alguns
traumatizados mentalmente, ele dava copo d’água, com açúcar, mentindo,
caridosamente, que ministrava poderoso medicamento.
Mas o que acontecera?
O serviço de reparo do misturador terminara e
iniciara-se a rotina normal. Um operador de ponte-rolante desceu enorme
dupla de ganchos, presos em viga transversal, para pegar a panela cheia
de gusa líquido, pesando quase setenta toneladas e levá-la ao forno
Siemens Martim, onde se operava a transformação do gusa em aço, mediante
adição dos ingredientes redutores: carvão, manganês, calcário, oxigênio,
dolomita etc. Aconteceu uma desgraça: um dos ganchos da ponte-rolante
ficou mal posicionado no munhão da panela e, assim foi alçado, mas
despencou de uma altura de trinta metros. Embaixo, havia uma poça
d’água, e o gusa liquefeito caiu sobre ela, acarretando enorme explosão:
ferro, fogo, metais e vapor para todos os lados. Instantaneamente,
morreram 12 empregados carbonizados, que viraram pequenas massas negras,
informes. Alguns só reconhecidos pelas arcadas dentárias e pela análise
dos cartões de ponto.
Entre os desaparecidos, nosso conterrâneo Candinho.
E aqui termina a história trágica do amigo;
entretanto, ele deixou sua herança genética, pois enamorados e
apressados comeram a cereja do bolo da festa de casamento antes da hora,
e sete meses depois nasceu o filho de Candinho e Geralda.
A morte não é nada,
Eu somente passei para o outro lado do caminho.
Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês, continuarei sendo.
Me deem o nome que vocês sempre me deram.
Falem comigo o que vocês sempre fizeram.
Vocês continuam vivendo no mundo das criaturas, eu estou vivendo no
mundo Criador.
Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir daquilo que nos
fazia rir juntos.
Rezem, sorriam, pensem em mim, rezem por mim.
Que meu nome seja pronunciado como sempre foi, sem ênfase de nenhum
tipo, sem nenhum traço de sombra ou de tristeza.
A vida significa tudo que ela sempre significou.
O fio não foi cortado. Por que eu estaria fora de seus pensamentos agora
que estou apenas fora de suas vidas?
Eu não estou longe, apenas do outro lado do caminho...
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