Era em noite fria do mês de maio
de... Há quase setenta anos. Tempos de atraso. Sim, de atraso. Imaginem
amigos e amigas que o asfalto terminava em Benfica,
bairro de Juiz de Fora. A estrada para Belo Horizonte (BH) era
macadamizada e demorava-se até 12 horas de JF a BH. E no arraial de
Paula Lima, onde se deu a estória, havia só um automóvel; ônibus não era
ônibus, era perua ou jardineira. Estou falando assim para posicionar os
leitores no tempo e espaço.O autor destas mal traçadas linhas morava
então em Chapéu D’Uvas, outro lugarejo distante de Paula Lima mais ou
menos sete quilômetros. Deu-se, como se dizia em maio, "mês de Maria", o
fato de que um menino recém-saído das calças curtas, já usando calças
compridas, devidamente autorizado pelo pai, foi assistir ao encerramento
da festa de Nossa Senhora de Conceição. Nosso 'herói' ficou até o fim,
quando queimaram os últimos fogos soltaram-se as últimas bombas e
desenrolaram o ícone de Nossa Senhora sob chuva de lágrimas de prata e
palmas, era mais de dez horas da noite. O menino pretendia ficar, ou
melhor, dormir, na casa do amigo de infância Jair (Didinho), filho do
seu Nenzinho; de repente se viu só, o amiguinho se fora antes para a
cama e não o convidara. Pronto! E agora, o que fazer? A outra opção
seria pedir pouso na casa de seu tio Joaquim, casado com Olívia. Nosso
‘herói’ sabia que a casa do seu tio Joaquim estava lotada com a família
do sogro, que viera de longe assistir à festa. Então, sem saída pôs o pé
na estrada, rumo ao arraial de Chapéu, seu lar. No fim da rua (em Paula
Lima), ou melhor, na estrada de rodagem, ficava a casa de Totonho Silva
e bifurcação da estrada. O jovenzinho lá chegou, parou para pensar qual
caminho tomar. Pela esquerda, o macadame, mas aumentava muito a
distância. Pela direita, o velho pedaço do Caminho Novo, estrada de
bandeirantes. Era andar morro acima e depois, claro, morro abaixo. A
noite de lua cheia ajudava o caminhar na senda estreita.Chapéu D’Uvas
ficava doutro lado do monte, iniciando no sopé do mesmo. O garoto tomou
esse caminho sobe-desce, por ser mais perto, um atalho, como se diz.
Ambos os caminhos tinham má fama de serem mal assombrados; então, melhor
seria escolher o atalho, encolhia o perigo. Contavam que na virada do
morro, no valo, onde um homem fora morto por demanda de terras, seu
espírito vigiava na porteira. Para que tem doze ou treze anos tudo é
verdade: almas penadas, mula sem cabeça, lobisomem, saci etc. E o garoto
corajosamente subiu a estreita trilha. “Seja o que Deus quiser!” Até no
tope tudo bem, mas quando virou o alto e começou a descer, ao passar por
uma gruta ouviu gemidos, gritos agourentos kikkikki. Sua pele enrijeceu,
seus cabelos ouriçaram e o coração disparou. Acelerou. E porteira
apareceu, semicerrada; passou como foguete. O gemido mais nítido. Ele
absolutamente agoniado/aterrorizado, sentiu frio percorrer o espinhaço.
O pseudofantasma nada mais era (será que era?) uma coruja no batente da
porteira. O flap-flap das asas fê-lo sentir a pele enrugar-se na testa,
os pelos arrepiaram. Mas ele seguiu morro abaixo sem olhar parar trás;
afinal, poderia ter o avantesma atrás dele.
No sopé, do outro lado do monte,
ficava a fazenda centenária 'dos Teixeira', (Rocinha do Engenho). Mais
duas casas: uma de agricultores japoneses; outra, de alguém que tinha
uma cachorra tão brava que era chamada onça. Pois bem, tal cachorra que
deveria estar no sono dos justos, acordou e desceu da sua casa com
latidos ferozes até ao garoto que, gelado de terror, parou, empedrou.
A cachorra era, por assim dizer, 'ocão'. Tão veloz que deslizou
ao parar próximo do garoto e não o mordeu. Por que não? Incrível, talvez
ela com seu cérebro cachorral pensava que estava diante de um poste,
porque o menino estava pétreo pelo medo. Doía os ossos de pavor. Onça, a
cadela, rodeou-o duas vezes, rosnou, rosnou e voltou para o covil. Só
depois de algum tempo o garoto ousou sair da letargia e apressar
novamente, rua afora. Estava na via que levava à estação de trem. Na
estação, quebrou a esquina à direita e lembrou que o trecho seguinte,
paralelo à estrada de ferro, tinha seus fantasmas: o cemitério
particular dos Vieira Tavares, ao lado da igreja de são José, e o
fantasma do guarda-freio. O menino assistira, há dois anos, um
manobreiro ser atropelado por composição de vagões de carga, e tivera
pernas cortadas na altura dos fêmures. O jovem vira o acontecido, e os
gritos do homem ficaram eternos gravados nos seus ouvidos, e a sangueira
também. O menino tinha que passar perto da caixa d’água onde se dera o
fato (verídico) fatal. Lá também corria a lenda de que o guarda-freio à
noite gritava “socorro!”Em outra corrida desabalada, e com olhos fixos
no chão passou pela travessia, outro terror menor: a lenda da porca e
seus dez leitõezinhos que atravessavam a via férrea pra lá e pra cá, sem
que fossem atropelados jamais. Finalmente,ele entrou em casa sem maior
dano, além do susto e palma de língua pra fora. Enfim, foram
experiências traumáticas nunca esquecidas.Se você não acredita passe por
lá à meia-noite. Refaça o caminho, nada mudou. Eu hein!
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