Sei não... chegando a uma idade
provecta a gente começa a pensar, pensar, recordar o passado e ter
saudade e tristeza, porque como disse o poeta
Ninguém passa pela vida em brancas
nuvens. Hoje estou com vontade escrever sobre o meu passado escolar
e outras coisas apenas para dourar a pílula DA MINHA VIDA, confessar
como dizem por aí.
Nasci
em família muito pobre e meu pai era roceiro, enchadeiro, lavrador, isto
é trabalhava de sol a sol para os fazendeiros locais, em Rosário de
Minas. Rosário pobre lugarejo, abandonado por tudo e por todos, tem tudo
a ver com minha vida. À noite, para melhorar a renda familiar, papai era
barbeiro. Lembro-me da luz de carbureto dançando nas paredes nuas, da
fazenda velha, de minha bisavó. Fazenda de nome Morro Alto, da Dona, se
não me falha a memória. Certa feita cortei com a navalha do papai
madeira e foi um “Deus nos acuda!” para reparar os dentes que fiz na
navalha Solingem. Quantos anos eu tinha? Talvez três ou quatro anos.
Lembro-me, ainda, dos tiros que papai deu nos gatos, porque comiam seu
queijo, um rendeiro pequenino. Pobres gatinhos... Houve grande desavença
entre papai e Chico Quirino. Papai deu-lhe uma surra porque invadiu
nossa casa; a seguir, mudou-se para Paula Lima, para uma casa abandonada
há muitos anos e havia nela milhões de pulgas, que nos transmitiram
doenças. Perdi quatro irmãos em pouco mais de um mês.
Assim que chegamos a Paula Lima,
meu pai matriculou-me na escola de dona Laerte, grande mestra diziam.
Imaginem que eu, bicho do mato, levei tremendo susto ao entrar pela
primeira vez numa sala de aula com mais de quarenta crianças em
algazarra e azucrinado meus ouvidos. Até então, eu só conhecera meus
parentes, em Rosário. O
resultado daquele primeiro dia de aula foi péssimo e me traumatizou a
vida inteira. Tá gravado a ferro e fogo na minha cabeça. Dona Laerte, a
professora pôs no quadro negro o
a,
b,
c e disse para
copiarmos. Eu nem sabia o que era
abc? Não conhecia lápis, nem papel. Olhei ressabiado para o
coleguinha ao lado e vi que ele copiava o que estava no quadro-negro;
então, tentei imitá-lo e tracei a letra
a. Sabe qual foi meu
a? Foi mais ou menos parecido
com um g (gê) e não fiz mais
nada. Acho que chore naquele dia. Não me lembro de voltar naquela sala,
pois, como disse acima adoeci com meus irmãos. Ainda em recuperação
mudamos para outro arraial de nome Chapéu D’Uvas. Papai me pôs na escola
particular que funcionava na velha padaria da família Zacarrão. A
professora era dona Terezinha
(não falávamos tia como hoje).
Nessa escola tive um segundo trauma, que relato agora: na hora do
recreio os meninos jogavam com uma bola de meia, eu entrei na
brincadeira e, alguém chutou a bola mais forte, a qual caiu num
vassoural.Procuram daqui, procuram dali, fui o primeiro a vê-la e
apontando disse: ela está perto
daquele papeli. Veja, falei
papeli. Um garoto corrigiu-me no ato: “É papel, capiau!” Humilhado
retirei-me da brincadeira. Pois é, foi um bem que ele me fez. Eu,
criança, jurei que aprenderia rapidamente o
abc para falar bem e escrever
melhor. De fato, tornei-me o primeiro aluno da classe e logo tirei o
primeiro
primário. Não sei por que
nossa professora foi embora e passei a estudar com dona Nieta (Antonieta
Lisboa). Inesquecível Nieta... Com ela terminei o
segundo primário sabendo ler
e escrever bem. O terceiro
primário foi feito na Escola Publica Primária de Chapéu D’Uvas com a
professora Hercília Dagmar Nogueira. Em 1944 fui diplomado no terceiro
ano, com nota dez. Naqueles tempos heróicos, na roça, só se estudava até
o terceiro ano. Bastava fazer uma redação, um ditado; saber somar,
subtrair, multiplicar e dividir. Estava-se apto para seguir à frente. Na
roça é o fim, agora é só trabalhar.
Papai achou que eu tinha potencial,
merecia coisa melhor do que ele teve. Para continuar os estudos, havia
necessidade de ir morar ou pagar pensão em Juiz de Fora. Sob
desculpa/pretexto de que eu era muito novo (acho que, na verdade, não
havia dinheiro) fiquei parado em casa por um ano. Assim, 1945 foi ano
perdido e esperando que eu amadurecesse para enfrentar os riscos da
cidade grande. Em 1946, fui “fazer” o
quarto primário no Grupo Escolar Antônio Carlos,
em Mariano Procópio, subúrbio (hoje bairro) de Juiz de
Fora. Minha professorinha chamava-se Rosa Ladeira Halfeld. Acho que era
substituta da titular. Na classe sofri meu primeiro
bullyng (assim chamam hoje o
que chamávamos antigamente mexer com alguém ou bulir com). O meu algoz
se chamava Sigemitson, ou algo parecido. Apesar dele, “formei-me” mais
uma vez, agora no quarto primário (sempre diplomado e pouco saber).
Neste período, fiquei em duas casas: na primeira quase me mataram de
fome, pois escondiam comida de mim; na segunda, fiquei na casa da dona
Mariana, que tinha um filho de nome Oliveira. Ela tinha um ciúme danado
do filho, por causa de sua namorada. A pensão de dona Mariana era um
inferno por causa das brigas dela com o filho. O neto dela, o Batista me
provocava sem parar e fazia meu infernozinho particular. Esse Batista
era um demônio que não me dava sossego para estudar. Ele foi meu segundo
algoz. Adicionalmente, sofri na casa de madeira, de dona Mariana, com os
quatro Ps:
pulga,
percevejo, pernilongo e
mais bicho de pé, porque a
veneranda senhora Mariana criava porcos nos fundos da casa de pensão.
Meu Deus! Sobrevivi apesar de tanta tormenta. Como é longo o caminho de
uma vida... Uma vez “formado” no curso primário, fui matriculado no
Granbery para fazer o Admissão ao
ginásio, uma espécie de cursinho preparatório de dois meses (hoje
extinto). Pois bem, lá no Granbery mais um trauma, porque o professor
nelson (o n minúsculo é minha
desforra), apontou-me o dedo em riste e vaticinou: “você vai ser
reprovado!” E fui reprovado, então. E veio mais bullyng (o terceiro). Um
garoto da vizinhança me perseguia naquelas ruas laterais ao Granbery.
Para não apanhar dele, dava longas voltas. Um dia este covarde me pegou
e me deu surra.
Ah, alguns professores de antanho
eram sádicos, em vez de ajudar, me aconselhar, foram cruéis. Um
“professor” Afrânio (será que esse imbecil não tinha coração?), na minha
segunda tentativa de admissão ao ginásio decretou que eu seria reprovado
e fui mesmo. Mais uma vez, fui derrotado na tentativa de ser
Granberyense. Como castigo pela reprovação retornei a casa, na roça,
para trabalhar na enxada, como sempre. Hoje em dia, falam tanto em
bullying como se fosse algo da
modernidade. Nada disso! É roupagem nova em defunto velho;
sofri
bullying em todas as escolas,
grupos e colégios que estudei: chicletes no meu cabelo; pó de mico nas
costas; tapas na cabeça; papéis na nuca, chutes, beliscões, gelo,
telefones nas orelhas etc. Deram-me apelidos vexaminosos que até hoje me
machucam; um deles, o menos execrável: Chulé. Imagine os outros. O fato
incontroverso é que crianças — sem noção exata dos males que causam —
são naturalmente perversas, cruéis, como são os humanos em geral. Hobbes
prolatou: Homo homini lupo (O homem é o lobo do homem). Em 1947/1948, voltei
ao Granbery, desta feita para fazer o
quinto primário o ano
inteiro. Hoje eu seria considerado aluno atrasado, digamos meio burro,
porque estava com 14 anos e não tinha sequer o primário. Fiz o quinto
primário com as professoras Marta Valtenberg (português e ciências) e
Hermínia Coutinho (aritmética), ambas doces pessoas. A Diretora era
Carolina Coelho, baixa, enérgica, bondosa. Continuei no Instituto
Granbery e afirmo com total convicção ser um dos melhores colégios do
país naquele tempo. E “formei” mais uma vez, agora no quarto ginasial.
Aprendi muito no Granbery. Depois, em Volta Redonda,
estudei na Escola Técnica Pandiá Calógeras (ETPC), um templo de
referência em educação, onde fiz o curso Técnico de Metalurgia. Fiz
também curso superior, mas não me interesso falar dele. Embora seja
Bacharel em Direito, a profissão de advogado nunca me fascinou.
Sou Administrador de Empresas com
imenso prazer. E fui considerado um dos melhores administradores da
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), onde trabalhei 35 anos, com muito
orgulho. Fui Presidente de uma de suas empresas controladas.
Voltando ao “O Granbery” digo que
ele foi o oásis da minha vida. No Granbery fiquei cinco anos, só cinco.
Que pena! Eu gostava demais do Colégio. Vou relatar coisas que ainda
estão vivas em minha mente antes que as brumas desçam e apaguem tudo, e
as névoas estão aí; ai de mim! Eu não tive oportunidade de continuar a
estudar no Granbery; fatores adversos mudaram minha vida. Vou sintetizar
na medida do possível, se eu for repetitivo me perdoem: é a idade. Em
menos de um dia esqueço. Preciso escrever, preciso desabafar. O pavilhão
do curso primário do Granbery era separado do edifício dos ginasianos
por um a área de lazer, onde ponteavam o botequim (do senhor Júlio) e
uma árvore. Tenho uma foto sob ela. Digo que nessa época eu já sofria
com angústias do futuro e perguntas me ocorriam: “O
que será de mim? Quem sou eu?
Vale a pena viver?” Todavia,
foi um período calmo e feliz no Granbery. Interno no Granbery, fiquei no
pavilhão dos menores sob tutela de dona Marta Valtenberg. No meu quarto
havia um menino de Uberaba; até hoje falamos por telefone. Arnaldo se
chamava e gostava de nos chicotear com toalha molhada; ‘brincadeira’ de
mau gosto de garotos. Esqueci-me de todos os outros colegas de quarto,
exceto Arnaldo. Havia um homem mau: Kilzo, inspetor de dormitório.
Uma vez aprovado, no quinto
primário, fui matriculado no primeiro ginasial. Nesse tempo, fui transferido para o dormitório
dos alunos médios. Dos meus colegas de quarto só me lembro de um de
Montes Claros, acho que se chamava Ernani ou Pacífico é o que vem em
minha mente. No
segundo ginasial, as finanças, lá em casa, iam de mal a pior. Meu
pai me tirou do internato, me pôs no externato. Fui morar na pensão
Assis, na esquina de Batista de Oliveira com Getúlio Vargas. O prédio da
pensão formava um ângulo cujo vértice era e é tangenciado pela rua
Marechal. Na pensão fiz amigos fazendeiros de Rosário de Minas. Fiquei
perdidamente apaixonado pela irmã deles, paixão de adolescente. Não
falarei o nome dela por respeito ao passado é melhor pôr uma pedra em
cima. Fui correspondido um ou dois meses. Depois, ela me desprezou. Bom
pra mim, há males que vêm pra bem. Enchi-me de brios, adotei
Hei de vencer! Como lema.
Nesse período, movido pela dor de cotovelo, caí na farra e nos vícios:
fumar e beber. Aos trancos e barrancos, terminei o segundo ginásio. As
finanças do pai diminuindo. Mudei de pensão. A pensão Assis era cara,
fui para outra, na parte baixa da rua Halfeld, pensão Halfeld. No meu
quarto, Sebastião Senedesi, estudava no Colégio São José, gostava de
declamar O noivado do sepulcro: “Vai
alta lua na mansão da morte, / já meia-noite com
vagar soou, / que paz
tranquila dos vaivens da sorte /
só tem descanso quem ali baixou!”
Lembro-me do Freitas, do Henrique e Manoel. Sei que os donos da pensão
tinham uma filha morena, muito bonita que gostava de jogar buraco.
Aprendi e jogava dia e noite (mais um vício). Ela comprava caixa com
duzentos cigarros (marca
Continental) e os punha
sobre a mesa, onde todos nós, jogadores, fumávamos. Pois é, meu pai me
pegou algumas vezes em pleno jogo e me ameaçou abandonar, ‘me deixar pra
lá’ e me chamou de moleque. Doeu, mas continuei jogando e estudando
pouco; tomando porres de vez em quando. Quase fui
reprovado no terceiro ginasial.
Aliás, nessa época a professora de inglês, Elsie me humilhava
prazerosamente. Sempre achava jeito de me dar zero.
Ziro! Falava em alto e bom
som, em inglês, com ironia e raiva e ainda escrevia no quadro-negro,
para que todos lessem: zirô.
Ela me prejudicou não só naquele ano; sim, a vida toda, porque tomei
ojeriza à língua inglesa e como me fez falta! Inglês tornou-se, de fato,
a língua franca, universal, apesar dos esperantistas dizerem o
contrário. Que essa mestra em inglês esteja tocando harpa no céu, se
merecer. O professor de História Sagrada também não me queria bem, acho
que seu nome era Stearle. Se pudesse ele me expulsaria. Certa feita,
levou-me ao Reitor, Mr. Moore, que relevou, porque eu tinha boas notas,
mas gritou pelos corredores “esse desgraçado”. Tudo foi um
mal-entendido, não posso acreditar que o pregador da palavra de Deus
fosse intrinsecamente má pessoa. Ele era bom... Das profundezas abissais
de minha alma, aflora o nome do professor Afrânio, aquele que me
declarou incompetente, disse-o acima, se me fez muito mal, eu lhe
perdoo.
O Granbery, no geral, tinha bons
mestres, contudo, tinha pontas de aterro também. Fui punido muitas vezes
(algumas, totalmente inocente), por motivos vários, indo estudar, como
castigo, aos domingos, na famosa sala 10.
Meu pai degringolou
definitivamente, em 1951. Caiu na “gandaia”, foi muito triste o fim da
união de família. Ele passou a viajar, farrear, beber e jogar e, nós, na
pior, ficamos. Trágico o nosso pesadelo familiar. Então, no
quarto ginasial, em 1952, já sem o apoio do pai passei a depender da
caridade de parentes. Eis os que me ajudaram: tio Joaquim Almeida, cc
Maria Celeste; Ana (Donana), cc Sebastião Theodoro; Teresa Almeida, cc
Sebastião de Paiva Leite; minha irmã, Noeme, cc com Paulo E. da Silva.
Todos foram bons para mim, me deram comida e cama. De casa em casa, ao
sabor do vento, tirei o sonhado quarto ginasial “O quê fazer?” Eu me indagava “de
quê vou viver? Que solidão!”
Terrível sensação de exclusão. Confesso, com tristeza, que não fiz
amigos enquanto estudante e foram 16 anos. Colegas de classe, sim, e
alguns ‘buliam’ comigo; outros me eram indiferentes e, a maioria me
fazia invisível. E eu, como nau sem rumo deambulava. Tio Joaquim, irmão
de meu pai, me estendeu a mão e me convidou para trabalhar com ele como
Caixeiro de armazém. Você sabe que é ser caixeiro/balconista na roça?
Com todo respeito ao sofrido povo roceiro, é viver com analfabetos,
servir cachaça, fumo, pesar mercadorias, matar porcos aos sábados e
ouvir extensas estórias. Eu, com ginasial completo (quase doutor, na
época), perdi a autoestima, desprezei a mim mesmo, afundei. Passei a
falar errado deliberadamente, tomar cachaça e farrear também. Repousava
a barriga no balcão, frequentava calangos e batuques dos negros (hoje
afro-descendentes). Fumava as marcas Astória, Liberty curto e ovais e
Saratoga. Enfim, eu não era nada de nada. Fundo do poço, não é?
Um dia, inconformado cravei minhas
iniciais no portal da venda do tio, datei 1954, chamei minha tia e disse
pra ela “Tia não voltarei, se não vencer na vida” Parti. Graças a Deus,
e a amigos certos nas horas incertas, e esforços ingentes, venci. Vinte
e cinco (25) anos depois voltei, e minha tia levou-me ao portal onde
inscrevera minhas iniciais e data. Relembrou-me o que eu havia dito.
Passei tempos difíceis, sim, mas no
fim deu tudo certo, estava escrito. Não fui derrotado pela vida.
Ad astra per áspera [Por
caminhos ásperos se vai aos astros]. Eu tive o que mereci... Será?
Finalizando, tive grande, imensa
insegurança, no passado, e hoje... Meu filho primogênito, Assedinho é
meu apoio, sempre presente, é um doce amigo, um filho cuidadoso com a
gente. No quinto primário, tive um colega chamado Alcione, gostei muito
do nome e dei este nome ao meu segundo filho, Alcione. Esse é doutor em
Ciências da Informação, em Viçosa. Vem sempre que pode aqui em nossa
casa e nos ama. Nota 10 para meus filhos. Minha mulher, Cecy, merece
referência em destaque por ter me aguentado até hoje. Estamos casados há
tantos anos que perdi a contagem do tempo.
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