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por Asséde Paiva
(rosarense), bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos.

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A L É M   D A S   Á G U A S   D O   E S T I G E

Is there no pitty sitting in the clouds
That sees into the bottom of my grief? Shakespeare)
[Não há piedade nas nuvens
que possa ver no fundo da minha angústia?]

É possível um grande amor superar a própria morte? Quem sabe... Será que ela o amava ou ele se enganou redondamente?... Talvez ele fosse doido... “Amor... Engano que na campa finda!”
— Vamos fumar um charuto? quero lhe contar minha estória...
— Conte-me! conte-me! sou bom ouvinte...
— É fácil, está na ponta da língua, foi gravada com cinzel na minha alma. Vamos chamá-la de...

SEGUNDA CARTA A VALDINHA

     Feche os olhos... relaxe... recorde... volte... muitos anos atrás... conseguiu?
Você era então jovem: menina-moça. O que fui para você? A brisa que passa? O brilho fugaz do relâmpago no céu? O infinitamente pequeno?... Nada? mas você, para mim, foi tudo: amargura, amor sofrido, morte das ilusões e o grande amor da minha vida.
     Quero iniciar transcrevendo uma trova de autor anônimo, que sintetiza meu sofrimento:

Nem sempre o rosto retrata
As mágoas do coração.
Há vezes que a dor nos mata
E os lábios sorrindo estão.

   Meu nome...? Ah, não importa! Quando nos vimos éramos tão jovens, eu com dezesseis, e você com quatorze anos. O pobre e a fazendeira. Conhecemo-nos quando estudantes. Aconteceu numa fatídica manhã. Eu estava na sacada do terceiro andar da pensão quando você apareceu no segundo andar. Flertamos, sorrimos um para o outro e apaixonamo-nos instantaneamente. Fomos apresentados, conversamos, jogamos bisca de três. Lembra? Namoramos, sim, mas não aconteceu o primeiro beijo, ficamos no quase, roçamos os lábios suavemente, pois, estávamos com medo do repentino chegar de seu irmão. Ah, como lastimo e sofro ao relembrar isso! Quão tolo fui... Um dia visitei sua fazenda, ou melhor, a fazenda da família. Encontrávamos às escondidas, sentávamos no baú, dávamos as mãos e até trocamos retratos. Eu não a esqueci e não vou esquecer, jamais. Concluímos que nos amávamos. Voltei para casa perdidamente apaixonado e feliz. A desdita estava a caminho. Combinamos trocar cartas, assim, escrevi uma logo que cheguei a casa. Inspirado ─ quem ama tem poesia no coração - redigi a mais longa, bela e maravilhosa carta de amor que poderia escrever, embora meus recursos fossem fracos. Mandei a carta em mãos de um tropeiro, com recomendação expressa para lhe entregar pessoalmente. Para minha eterna perdição, isso não aconteceu, a carta, infelizmente, foi parar nas mãos do líder da família.
     Chiquito, vamos chamá-lo assim, leu, analisou, meditou e não gostou. Não podia permitir que a irmã rica namorasse um rapaz sem eira nem beira e sem futuro. Precisava acabar com o namoro e fê-lo de forma cruel e mesquinha. Sabia que proibir o namoro poderia ter efeito contrário ao alvo desejado. Assim, optou por mistificar a carta. Sem escrúpulos, sem pena alguma pelo dano que me causaria fez maliciosamente releitura do texto. Como conseguiu convencê-la? não sei! só Deus e Chiquito sabem. O ardil prevaleceu, porque provocou uma radical transformação no seu “amor”. Transformou-o em ódio e desse ódio tive notícia por via de terceiros: suas primas. Ah! com que falsa tristeza me deram o fatal recado, com que decepção e dor o recebi! Foi assim que você me matou. Este é o termo, pois “Amor é tormento, a falta de amor é morte”. Amargurado, esmagado, ferido pelo rompimento inesperado e injusto, nunca mais amei, nunca mais fui feliz; meu sorriso apagou, e a tristeza fez do meu coração a morada. Tentei várias vezes, sem qualquer resultado, reaproximar-me. Você me desprezava me humilhava e me ignorava. Desisti então de lutar, a causa era perdida. Hoje, tenho sérias dúvidas se lutei o suficiente. Revoltado contra tudo e com todos, resolvi partir, pôr a maior distância possível entre nós e tentar esquecer. Tornei-me andarilho, vivi em tendas, com nômades. Fui audaz, porém era contra minha natureza. A mãe da tribo me mandou embora, porque eu era muito triste e eles eram alegres. Eles dançavam e eu chorava. Abandonei os ciganos. Nas vitórias, derrotas, nas horas de lazer, na solidão e angústia, um nome vinha aos meus lábios: o seu, sem que ousasse pronunciá-lo. Seu nome, a minha luz! ou foi minha escuridão? Na busca incessante da luz, não vivi: sobrevivi. Sequer me dei conta de que, no aspecto material venci. Nada me importava, nada superava aquela inextinguível paixão. Eu tenho um milhão de anos de fracassos no amor.
O tempo passou: dias, meses, anos... uma eternidade. Sua imagem vivia em meu peito, a saudade era imensa e a “saudade mata a gente”. Resolvi voltar, precisava revê-la. Procurei, falei com amigos, investiguei. Consegui meu intento, nos vimos numa cerimônia religiosa e conversamos trivialidades. Infinita ternura inundou-me o peito, que vontade de abraçá-la, mais uma vez recuei de meu intento, no fundo fui um covarde. Senti que seu ódio por mim acabara; imerecido ódio, eu repito! Você estava alegre por me ver novamente. Porém, soube que era esposa de outro e, quem sabe, amada; não há lugar para mim ao seu lado. Não importa... Esperarei milhares de dias ou meses para reconquistá-la.
Estou seguro de que, no derradeiro momento seu nome estará em meus lábios e sua imagem no meu coração. Não há possibilidade de esquecer. Minha paixão é crônica, e meu amor infinitamente grande.
Valda você me deve reparação; assim, diz minha mente e estou convencido disto. Será minha cedo ou tarde; aqui, ou no mundo extrafísico!
Pensadores afirmam que devemos renascer para progredirmos espiritualmente, que assim seja! Pelo que sofri, mereço, quero, desejo e exijo outra oportunidade; preciso dela desesperadamente, e quando acontecer, ficaremos juntos, seremos um. Um grande amor será realizado...
Encontrá-la-ei de novo, sim; não sei onde, não sei quando, mas sei que nos reencontraremos numa noite enluarada.
— Gostei da carta e daí, já a reencontrou?
— Não, ainda não... eu vim primeiro, mas continuo esperando, esperando; está escrito, ela não tardará... aí vem ela... com muita gente... vamos nos esconder...
E desapareceram no mármore das respectivas campas...

Há no céu e na terra, Horácio, bem mais coisas de que sonhou jamais vossa filosofia. (Shakespeare)

Autor: Asséde Paiva
Volta Redonda, 25/05/2013


Texto publicado no Benficanet em 03/06/2013
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