Is there no pitty sitting in the clouds
That sees into the bottom of my grief? Shakespeare)
[Não há piedade nas nuvens
que possa ver no fundo da minha angústia?]
É possível um grande amor superar a própria morte? Quem sabe...
Será que ela o amava ou ele se enganou redondamente?... Talvez
ele fosse doido... “Amor... Engano que na campa finda!”
— Vamos fumar um charuto? quero lhe contar minha estória...
— Conte-me! conte-me! sou bom ouvinte...
— É fácil, está na ponta da língua, foi gravada com cinzel na
minha alma. Vamos chamá-la de...
SEGUNDA CARTA A VALDINHA
Feche os olhos... relaxe... recorde...
volte... muitos anos atrás... conseguiu?
Você era então jovem: menina-moça. O que fui para você? A brisa
que passa? O brilho fugaz do relâmpago no céu? O infinitamente
pequeno?... Nada? mas você, para mim, foi tudo: amargura, amor
sofrido, morte das ilusões e o grande amor da minha vida.
Quero iniciar transcrevendo uma trova de autor anônimo,
que sintetiza meu sofrimento:
Nem sempre o rosto retrata
As mágoas do coração.
Há vezes que a dor nos mata
E os lábios sorrindo estão.
Meu nome...? Ah, não importa! Quando nos vimos éramos tão jovens,
eu com dezesseis, e você com quatorze anos. O pobre e a
fazendeira. Conhecemo-nos quando estudantes. Aconteceu numa
fatídica manhã. Eu estava na sacada do terceiro andar da pensão
quando você apareceu no segundo andar. Flertamos, sorrimos um
para o outro e apaixonamo-nos instantaneamente. Fomos
apresentados, conversamos, jogamos bisca de três. Lembra?
Namoramos, sim, mas não aconteceu o primeiro beijo, ficamos no
quase, roçamos os lábios suavemente, pois, estávamos com medo do
repentino chegar de seu irmão. Ah, como lastimo e sofro ao
relembrar isso! Quão tolo fui... Um dia visitei sua fazenda, ou
melhor, a fazenda da família. Encontrávamos às escondidas,
sentávamos no baú, dávamos as mãos e até trocamos retratos. Eu
não a esqueci e não vou esquecer, jamais. Concluímos que nos
amávamos. Voltei para casa perdidamente apaixonado e feliz. A
desdita estava a caminho. Combinamos trocar cartas, assim,
escrevi uma logo que cheguei a casa. Inspirado ─ quem ama tem
poesia no coração - redigi a mais longa, bela e maravilhosa
carta de amor que poderia escrever, embora meus recursos fossem
fracos. Mandei a carta em mãos de um tropeiro, com recomendação
expressa para lhe entregar pessoalmente. Para minha eterna
perdição, isso não aconteceu, a carta, infelizmente, foi parar
nas mãos do líder da família.
Chiquito, vamos chamá-lo assim, leu, analisou, meditou
e não gostou. Não podia permitir que a irmã rica namorasse um
rapaz sem eira nem beira e sem futuro. Precisava acabar com o
namoro e fê-lo de forma cruel e mesquinha. Sabia que proibir o
namoro poderia ter efeito contrário ao alvo desejado. Assim,
optou por mistificar a carta. Sem escrúpulos, sem pena alguma
pelo dano que me causaria fez maliciosamente releitura do texto.
Como conseguiu convencê-la? não sei! só Deus e Chiquito sabem. O
ardil prevaleceu, porque provocou uma radical transformação no
seu “amor”. Transformou-o em ódio e desse ódio tive notícia por
via de terceiros: suas primas. Ah! com que falsa tristeza me
deram o fatal recado, com que decepção e dor o recebi! Foi assim
que você me matou. Este é o termo, pois “Amor é tormento, a
falta de amor é morte”. Amargurado, esmagado, ferido pelo
rompimento inesperado e injusto, nunca mais amei, nunca mais fui
feliz; meu sorriso apagou, e a tristeza fez do meu coração a
morada. Tentei várias vezes, sem qualquer resultado,
reaproximar-me. Você me desprezava me humilhava e me ignorava.
Desisti então de lutar, a causa era perdida. Hoje, tenho sérias
dúvidas se lutei o suficiente. Revoltado contra tudo e com
todos, resolvi partir, pôr a maior distância possível entre nós
e tentar esquecer. Tornei-me andarilho, vivi em tendas, com
nômades. Fui audaz, porém era contra minha natureza. A mãe da
tribo me mandou embora, porque eu era muito triste e eles eram
alegres. Eles dançavam e eu chorava. Abandonei os ciganos. Nas
vitórias, derrotas, nas horas de lazer, na solidão e angústia,
um nome vinha aos meus lábios: o seu, sem que ousasse
pronunciá-lo. Seu nome, a minha luz! ou foi minha escuridão? Na
busca incessante da luz, não vivi: sobrevivi. Sequer me dei
conta de que, no aspecto material venci. Nada me importava, nada
superava aquela inextinguível paixão. Eu tenho um milhão de anos
de fracassos no amor.
O tempo passou: dias, meses, anos... uma eternidade. Sua imagem
vivia em meu peito, a saudade era imensa e a “saudade mata a
gente”. Resolvi voltar, precisava revê-la. Procurei, falei com
amigos, investiguei. Consegui meu intento, nos vimos numa
cerimônia religiosa e conversamos trivialidades. Infinita
ternura inundou-me o peito, que vontade de abraçá-la, mais uma
vez recuei de meu intento, no fundo fui um covarde. Senti que
seu ódio por mim acabara; imerecido ódio, eu repito! Você estava
alegre por me ver novamente. Porém, soube que era esposa de
outro e, quem sabe, amada; não há lugar para mim ao seu lado.
Não importa... Esperarei milhares de dias ou meses para
reconquistá-la.
Estou seguro de que, no derradeiro momento seu nome estará em
meus lábios e sua imagem no meu coração. Não há possibilidade de
esquecer. Minha paixão é crônica, e meu amor infinitamente
grande.
Valda você me deve reparação; assim, diz minha mente e estou
convencido disto. Será minha cedo ou tarde; aqui, ou no mundo
extrafísico!
Pensadores afirmam que devemos renascer para progredirmos
espiritualmente, que assim seja! Pelo que sofri, mereço, quero,
desejo e exijo outra oportunidade; preciso dela
desesperadamente, e quando acontecer, ficaremos juntos, seremos
um. Um grande amor será realizado...
Encontrá-la-ei de novo, sim; não sei onde, não sei quando, mas
sei que nos reencontraremos numa noite enluarada.
— Gostei da carta e daí, já a reencontrou?
— Não, ainda não... eu vim primeiro, mas continuo esperando,
esperando; está escrito, ela não tardará... aí vem ela... com
muita gente... vamos nos esconder...
E desapareceram no mármore das respectivas campas...
Há no céu e na terra, Horácio, bem mais coisas de que sonhou
jamais vossa filosofia. (Shakespeare)
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