Pois é, me deu
vontade danada de contar esta estória que se passou há muitos anos. Não
chega a ser aventurosa;
é emocionante. É sobre o menino que veio da roça. Vamos fazer viagem
fantástica no tempo, este cavalo indomável que sei montar e marcar.
Foi num belo dia de sol quente entre nuvens brancas
que o menino apareceu. Vinha com o pai que carregava mala; velha,
desbotada, surrada, das que fica em canto da casa guardando bugigangas,
até que seja alçada à posição de mala de viagem. Eu os vi subirem
degraus iniciais da longa escadaria do educandário e caminharem devagar
em minha direção. Eu estava no salão de entrada. Esperei-os impávido,
ereto; sempre dou boas-vindas aos que chegam. Na entrada pareciam
indecisos. Olharam em direção à Secretaria querendo ser vistos, e foram;
de dentro, uma velhota de olhos míopes se levantou e veio a eles:
— Que quer senhor?
Mostrando alguma insegurança, rodando o chapéu
entre dedos, o homem disse:
— Vim trazer meu filho para estudar no colégio,
caso haja vaga.
— Ah, está bem, então vou chamar o diretor. Entrem
naquela sala.
Ao meu lado, sobre o portal estava escrito
"Recepção". Eles entraram e correram os olhos pelos móveis da sala: ao
centro cadeiras empalhadas e uma poltrona com três assentos. Ao canto um
cabide para chapéus, capas e guarda-chuvas. O senhor recém-chegado pôs o
chapéu no gancho, mas o menino, inquieto, saiu da sala e voltou ao salão
de entrada, ocasião em que o observei melhor. Magrinho, rosto fino,
dentes limpos e proeminentes, cabelos pretos e traços tristes. Olhou-me,
quase tocou minha cara redonda, muito branca. Ele fixou em meus braços
finos como palitos, e que marcavam onze horas. E, de repente, nós
estávamos interagindo, conversando.
— Bem-vindo! Com certeza veio estudar aqui, não é
mesmo?
— Sim, vim! — respondeu-me ele, surpreso.
— Pode me chamar Tique-Taque, ou só Tique, como
quiser. Seu nome não precisa dizê-lo; você é aluno,
Aprendiz, neófito, calouro, iniciante, e
vamos seguir muito amigos.
Chegou o diretor e interrompeu nosso diálogo,
levando o garoto para a sala, onde o pai os aguardava.
— Sentem-se –– convidou-os cortesmente o diretor,
indicando o sofá chippendale.
Dando início à conversa, às falas de praxe
perguntou de onde eles vinham o que pretendiam. Satisfeito, julgando que
o recém-chegado fosse grande fazendeiro no Triângulo Mineiro, o diretor
abordou o desdobramento da crise do zebu.
Eu, Tique-Taque, ouvia tudo.
Notei que o pai do menino ficou meio
desconfortável, porque nada sabia de crise, nem de zebu. Na verdade,
ignorava o assunto, porque era apenas arrendatário do sítio Chalé, num
lugarejo apagado no mapa. A conversa esfriou como almoço posto há horas.
O diretor mandou chamar a senhora que seria a
responsável pela nova residência do menino, pois, segundo decisão do
pai, ele ficaria interno já que não tinham parentes na cidade. Eu fui o
primeiro a ouvir os passos ligeiros mulher sobre ao piso de madeira, no
corredor. Ela passou por mim, sem maior deferência e foi ter aos três
que a esperavam. Apresentada, pegou o menino pela mão e levou-o. Ao
passar por mim, ele me dirigiu um olhar cúmplice e subiu as escadas do
dormitório esbarrando a velha mala nos degraus. O menino seria levado ao
quarto onde já estavam os novos colegas. A seguir, a mulher lhe
indicaria o armário, a cama disponível, mostraria o banheiro coletivo, o
ensinaria a estender os lençóis na cama, dispor toalhas de banho, como
ordenar sapatos e chinelas; a hora de levantar, comer e deitar.
Finalmente ela lhe mostraria a sala de aulas, bem como lhe apresentaria
os colegas de quarto e de classe.
Eu, Tique-Taque, sei das coisas... Sou muito velho,
atravessei o Atlântico com o senhor Reitor deste Colégio e vivo neste
pedestal. Observo, ao correr do tempo, o entra e sai de professores, o
ir e vir dos funcionários, a fuga de aluno gazeteiro e certos
desentendimentos nada graves entre alunos. Vejo pais virem pagar
anuidades e visitar os filhos. Vejo parentes, vez por outra, aparecerem
para levar jovens à cidade e ao cinema. Meço o tempo que se vai entre
meus braços de horas e minutos.
Eu e o Aprendiz que
veio da roça, fizemos sólida amizade. O apelidei
Companheiro. Meses, anos se passaram. Um dia ouvi
passos perdidos no corredor, e os
distingui como sendo os dele.
— Até que enfim você reapareceu,
Companheiro. Pensei que havia se
esquecido de mim.
— Não, você é amigo, meu primeiro amigo. Tenho
andado por aí tentando novas amizades, mas está difícil; sou pouco
comunicativo, tímido demais, desconfiado e arisco; afinal, sou bicho do
mato, como dizem. Meus colegas internos gostam de tagarelar, enquanto
prefiro ficar na biblioteca lendo, pesquisando, estudando, escrevendo.
Tique-Taque, o que está escrito no alto da parede?
— Virtude e Perfeição. É nosso lema.
— Tique-Taque, eu tenho medo. Nosso fiscal de
disciplina é muito bravo, ele usa bengala. Quando a gente pede borracha,
caneta, lápis ao colega, ou faz um cochichozinho, ele dá bengaladas na
mesa que estrondam no meu ouvido e me fazem pular na carteira.
— Paciência, Aprendiz!
Ele é deficiente, tem a perna atrofiada. Foi pólio. Fica irritado por
ser diferente e em muitos casos é desencorajado a participar de esportes
e outras brincadeiras. Merece compreensão por desabafos.
— Tique-Taque, ele é chefe do dormitório também.
Zela pelo silêncio, após o apagar das luzes, e não se pode dar pio que a
bengalada reboa pelo corredor. A gente até cobre a cabeça de susto.
Tempos depois o garoto voltou a visitar-me e
continuamos nossa conversa.
— Sabe de uma Tique-Taque? Estou assustado, quase
fui expulso.
— Quê aconteceu?
— Estava na classe, assistindo à aula de História
Sagrada, creio que o professor é muito impaciente... e muito duro, tem
Deus na boca e longe do coração. Aliás, mudando o rumo da prosa, este
colégio é enorme.
— Sim, e todo branco. Costumam chamá-lo Gigante
Branco, foi construído por um Grande Arquiteto,
mas falávamos da quase expulsão, quando o assunto mudou.
— Um colega fez brincadeira jogando gaivota de
papel na sala, que foi direta ao traseiro do professor. Ri, justo quando
ele se virou para mim. Pegou-me pelo braço e levou-me ao Reitor. Falaram
em língua disgramada, que não
entendi.
— Inglês, meu filho, é inglês! Você vai aprendê-la.
Eles são conterrâneos, falaram no idioma da terra deles.
— Fui trancado em sala minúscula, esperando com o
coração aos pulos, refletindo meu destino. Ouvi o Reitor falando
zangado: "Esses desgraçados!", e foi à Secretaria, examinou minhas notas
ótimas. Voltou mais pacificador, conciliador, me deu conselhos, me
liberando para assistir às aulas, mas não me livrou do castigo: um mês
sem saída aos domingos, com estudo dirigido em sala especial, a sala
dez.
— Agora, tudo bem, não é?
— Sim...
— Saia daqui, e rápido! diz Tique-Taque. Passou o
primeiro vigilante, vêm aí o
Mestre e o Secretário.
Eles passaram sem importuná-los. Ufa! O menino
falou:
— Já vou terminar. Alguns colegas de classe ou de
dormitório são atrevidos, me põem apelidos infames. Não vou repeti-los
porque tenho vergonha. Para zombarem de mim até me obrigaram a medir o
quarto com um palito de fósforo. Dias atrás, fui atropelado por
estudantes que corriam para o café da manhã. Ninguém me ajudou nem me
perguntou se tinha machucado. Levantei-me muito magoado pela indiferença
deles. E me deram gelo...
— Gelo. Esta brincadeira é nova, explique-me,
rapaz.
— Falam 'dar gelo' quando grupinho de colegas
combina não "ouvir" alguém por tempo indefinido. Isto me doeu demais.
Tem mais, mas chega de lamentações.
— Você deve confrontá-los!
— Não posso. Tenho muito a perder.
— Aguente firme, quer ir embora, voltar para a
roça?
— Deus me livre! Lá tem trabalho o ano todo: aos
sábados e aos domingos, mesmo nos feriados e dias santos de guarda. Vou
ser doutor para curar os doentes. Ah! Tique-Taque, que tolo fui! Papai
me deu cinquenta cruzeiros para comprar material esportivo, alguns
livros e um Atlas escolar. Pus a nota no bolsinho da camisa e fui
brincar na hora do recreio. Perdi o dinheiro. Outros o acharam e
gastaram com sanduíches, chocolates e refrigerantes. Eu, com fome os vi
alegres, bebendo e comendo do meu dinheiro.
— Que falta de sorte, hein, amiguinho! Quem não
cuida do que é seu...
E dois anos se passaram. O Aprendiz tinha um
grande mestre, que lhe ensinara as
funções do esquadro e do compasso.
Estudos, muita disciplina, boa alimentação, esportes, ginástica,
biblioteca (onde ele passava horas e horas). Havia colegas bons e maus,
ele tinha que suportá-los.
Eis que o jovem reapareceu no salão de entrada do
Gigante Branco, com fácies tristes.
— Ai de mim Tique-Taque! Deixei o internato, estava
muito caro, meu pai me pôs numa pensão na cidade. Fiz novos colegas em
outra classe, agora mista. Algumas meninas são muito bonitas, mas também
não ligam pra mim, nem me pediram para escrever algo no álbum de
recordações delas.
— E como se sente na nova turma?
— Excluído... Novos alunos, novos arranjos. Sou
invisível para as meninas. Tique-Taque, nós nos veremos muito pouco;
entre uma e outra aula darei um pulo aqui, pois estou mais longe, no
pavilhão do externato. Os colegas de classe me puseram pó de mico.
Resisti e não me cocei; não lhes dei este prazer de riem de mim.
— Não se aborreça, venha conversar sempre que se
sentir só. Não faça da solidão sua companheira.
Esporadicamente o menino, agora adolescente, vinha
me contar problemas vividos na pensão da cidade. As boas coisas, como a
possibilidade de frequentar cinco bibliotecas em vários bairros, que lhe
dava grande prazer. Também relatava as frustrações que tinha com a nova
turma, onde se considerava rejeitado. Um dia ele veio cabisbaixo.
— Estou derrotado Tique-Taque. Meu pai "quebrou",
perdeu tudo o que tinha.
— Como isto aconteceu?
— Ele vendeu o gado e passou o sítio. Com o bolso
cheio de dinheiro achou que estava rico, descansou. Ele que falava "Saco
vazio não para em pé" não praticou a lição e acabou tudo.
— Você vai parar de estudar, não é?
— Não! Papai vai pagar a mensalidade, e devo ficar
em casa de parentes até o fim do ano. A novidade é que me apaixonei por
linda fazendeirinha.
— Nesta situação, amar é bom demais pra você...
serve de consolo.
— Sim, caso não tivesse sido descartado.
— E agora, que vai fazer?
— Sobreviver... com muita tristeza.
Em tarde nebulosa o jovem apareceu desesperado e
com olhos vermelhos.
"Teria chorado, insônia, talvez", pensei.
— Tique-Taque, aqui tem bons mestres... mas uma
professora é especialmente implacável.
— Diga logo, desembuche! Quero saber o nome.
— A mestra de Inglês me detesta. Por qualquer
motivo me dá zero. Fala bem alto "zírou" e escreve no quadro-negro para
que todos leiam e debochem de mim. Eu me sinto humilhado, ela quer me
reprovar.
— Sei quem é. Aguente firme e seja
vigilante, água aqui é cristalina e ‘lá
fora’ não dá pé. Prepare-se para outros trancos que virão.
O ano terminou, meu amigo superou-se e conseguiu
tirar a quarta série do curso ginasial. E ele veio para se despedir.
— Está saindo de férias?
— Tique-Taque eu saí das
trevas da ignorância, vim procurara a
luz, saio antes de alcançá-la, entrei pedra bruta, saio bem
melhorado. É nosso último encontro... adeus!
— Não vai fazer o Científico aqui?
— Não! Vou trabalhar. Não há mais dinheiro algum...
meu pai é pobre.
— Tente com o Reitor, amigo! Ele é compreensivo, um
homem de bem.
— Não adianta. Ele pensa que tenho condições de
pagar. Concede bolsas para alunos pobres que seguem sua religião.
Sobrei. É o fim de meu sonho... não nos veremos jamais.
Arrastando em passos
perdidos, desceu os degraus do Gigante Branco e sumiu rua abaixo.
Eram onze horas e cinquenta e nove minutos. Certa força misteriosa
imobilizou minhas agulhas. Lágrimas oleosas escorreram no mostrador, as
engrenagens grimparam. Eu tinha de marcar doze horas e não consegui; o
tempo dos homens congelou. Entramos no tempo de Deus.
Trinta e três anos
se passaram, eis que se aproxima um venerável
senhor de cabelos grisalhos, barba branca e aparada.
"Conheço sim este homem que acaricia meu verniz e o
mostrador enferrujado... Eu pensava que ele descansasse no
oriente eterno".
— Voltei Tique-Taque! Nunca me esqueci de você. Sou
Kadoshi. Segui as instruções de minha
professora que ensinava: "Por caminhos ásperos se vai aos astros". Lutei
que lutei, sereníssimo irmão!
Relatou-me entre colunas
suas vitórias, derrotas, alegrias, tristezas, acertos e erros. Falou-me
da família muito amada que construíra. Contou-me tudo que lapida o homem
e o faz justo e perfeito, e também tudo o
que aconteceu e acontece a quase todos humanos no labirinto da vida.
Uau! As forças que seguravam meus ponteiros se
foram. Destravado, bati palmas feliz doze vezes, às doze horas. Um
minuto se passara no tempo de Deus; trinta e
três anos no tempo do homem.
Sim... é possível viajar no tempo.
Fi.·.
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