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Recordar é Viver!

por Asséde Paiva[1] (novembro, 2011)
(rosarense), bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos.

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SEMEADOR DE JABUTICABAS
(Na rolança do tempo)
Tu te admiras / como se fosse fato estranho, / por teres feito tão longa viagem /
com tão diferentes itinerários / sem dissipar / a pesada tristeza / do teu coração? /
É de alma que deves mudar, / não de clima.

Sêneca

Francisco Manoel de Almeida, que também respondia pelo nome de Chichico, Chiquinho, Armeida e ‘seu’ Chico, fazendeiro em Rosário de Minas, fazenda São Mateus, era uma figuraça. De origem abastada e casado com moça abastada, muito cedo se viu proprietário de mais de muitos alqueires de terras. Até aí tudo bem, ninguém pode ser culpado por ser rico e/ou importante nos idos de 1910/40. Assim, ‘seu’ Chiquinho, não só era bem de vida como também, por influência política[2], tornou-se subdelegado do povoado de Rosário. Autoridade constituída em cargo simbólico, os proventos do cargo eram mínimos, ninguém podia viver apenas eles, mas a função dava status e algumas facilidades, nada mais, nos tempos heróicos e difíceis. Seu Francisco começou gerar numerosa família. Entre seus filhos, cito Joaquim Carlos de Almeida, com o qual tive grande afinidade ideológica e espiritual; bem como, tia Teresa, casada com Sebastião Leite; ela, uma santa, me amava. Sendo meu avô muito importante, podia se dar ao luxo de não trabalhar e foi bom enquanto durou. Mais tarde, quando ‘zerou’ a fortuna, tornou-se ave avoante. Na verdade, sempre me lembro dele com uma bandana, se queixando de dor de cabeça muito forte, sentado ao banco do alpendre, com pernas esticadas sobre ele. Dali administrava o curral e gemia: “Ai, que dor de cabeça!” Acredito na sua enxaqueca, acredito na sua competência, mas ele se lamentava quando chegávamos, detestava nossa vinda, não foi carinhoso com a gente.

Eu me lembro da fazenda São Mateus nas fases de prosperidade e de pobreza. Era um paradoxo: onde o modernismo (telefone, gramofone), se confundia com o atraso, pois, não tinha WC, e o piso da cozinha era de chão batido. Água só no córrego que alimentava a bica, que movia o moinho, que refrescava o pomar. Eis uma ligeira descrição da fazenda que, aliás, ainda está de pé: Situava-se entre os povoados de Valadares (onde nasci) e Rosário, no vale formado por dois morros o Grande e o morro Alto. O cordão umbilical, isto é, a estrada que ligava os morros era estreita e vã, caminho de tropeiros, pedestres e carros de boi. No meio da estrada, escondida na encosta, ficava a fazenda São Mateus e seus enormes paióis com pisos e empenas de madeira. Ela formava dois retângulos, em ângulo reto, enfeitado por belo pé de manacá. Seu alpendre, circulado por videiras, suportava um sino que, outrora, chamava os agregados para almoço ou para avisá-los a hora de encerrar o trabalho; uma sala (a principal), forrada a tábuas e soalho de peroba-rosa, cheia de retratos da família que, lado a lado, emoldurava as quatro paredes. Um quarto para o telefone; antessala com relógio e oratório, onde se realizaram missas, rezaram terços e fizeram casamentos. Exceto as salas e cozinha (esta sem forro), todas as dependências eram esteiradas. A antessala dava para três quartos. Num deles ouvi, pela primeira vez, os cordéis Donzela Teodora e Alzira a morta virgem, lidos por tio Antônio, à luz bruxuleante de lamparina e despertou meu entusiasmo por leitura. No quarto do casal ficava o arsenal do vô, luxo de subdelegado: trochada, pica-pau (de carregar pela boca), mocha, fuzil, mosquetão, filobé e munição. Mais dois quartos cujas portas se abriam para o do casal, eram para os filhos menores. Um corredor largo antes de desembocar na despensa, abria porta para quartinho da empregada de confiança. A despensa tinha enorme guarda-comida, com terrinas de doces variados; mesa imensa e caixões de cereais, prontos pra consumo. A cozinha, nos velhos, tempos tinha, além do fogão à lenha, quartinho lateral, onde num tronco de peroba, centenário, escavaram três pilões, a fogo, formão e goiva, para soca de milho, arroz, café e sal grosso. Ao entardecer, antes do leite com angu quente, ao lusco-fusco da noite de lua, ouvia-se o pam-tum-pam-tum-pam-tum... do pessoal manejando sincronizados as mãos de pilão, pilando arroz com casca. No mesmo compartimento ficava a queijeira. O soro ia por canaleta para os porcos e aves do lado de fora da casa. À saída da cozinha, escada de dois matacões levava pro terreiro, onde cachorros perdigueiros, vira-latas, galinhas, patos, perus, galinhas d’angola disputavam migalhas, quirera, canjiquinha e restos de comida com canário-cabeça-de-fogo, sabiá, bem-te-vi, trinca-ferro, tié, tico-tico, pomba-rola e até jacus. O caçula, João, era passarinheiro, engaiolava pintassilgo, curió, coleiro, azulão, pássaro-preto, maritaca, sanguíneo e outros.

Corria a estória de que as terras eram infestadas de cascavéis e jararacuçus e diziam que um destes ofídios fora ‘apanhado’ sob o travesseiro de minha mãe e outro, enorme, enrolara-se no cubo do moinho paralisando-o. Verdade? Eu nunca vi pessoa alguma ‘ofendida’ de cobra. Talvez fosse mesmo folclore. Só pra completar, digo que o porão era muito baixo e servia apenas para depósito de lenha, poleiro de pato e ninho de cobras. Claro, na riqueza tudo é bonito: quase cem vacas no curral (meu avô criou um touro que entrava na porta da sala e saía na porta da cozinha. Meninos, eu vi!). Nos paióis, tulhas de milho, arroz e feijão. Sob uma cobertura vazada ficava o carro de boi, o carrinho manual e ferramentas de variados tipos: gurpião, cepilho (falava sipia), enxó, martelo, plaina, serrote, esquadro, compasso, riscador e outras. Afinal, o velho era carpinteiro ou carapina, como diziam. O chiqueiro e o moinho ficavam entre o córrego de água potável e o riacho.

Ah, não posso esquecer... Certa feita, me levaram a uma colheita no milharal, no cume de um morro. Na ida o carro estava vazio e esteirado. Lá no alto, foi superlotado de milho e me jogaram sobre as espigas escorregadias. O carro pesado chinchinando, nos cocões, e o candeeiro tocando com ferrão entre chifres dos bois de coice ôa-ôa-ôa... Os bois Barroso e Amargoso retesaram patas dianteiras para travar e aguentar o tranco. Na perambeira eu, aterrorizado, olhava pro penhasco. Sobrevivi. Ficou registrado em minha mente o trauma. “Nunca mais!” Pensei. Quem sabe o evento originou minha acrofobia? Havia roças de milho, feijão e arroz. Brincávamos saltando do paiol para o monte de palhas de arroz, na colheita.

No ofício ou cargo de subdelegado, vô foi prender um assassino escondido na localidade de Penido. Chegando, engatilhou o refle e bateu com culatra no esteio. “Ô de casa!” Seu Quinzinho, o homicida, chegou à porta abriu os braços em cruz e perguntou o que queria dele. Meu avô disse “Vim te prender! ‘Cê’ vai comigo ou vou te levar?”. O assassino se entregou. Afora este caso, fez outra diligência notável com o subdelegado de Chapéu D’Uvas, Francisco Christino Malta, contra um bando de ciganos, acampados nas terras da fazenda França. Li este registro no livro de tombo, hoje desaparecido.

Anualmente, meu avô se mudava com a família para o arraial de Rosário, a fim de assistir a festa de Nossa Senhora do Rosário, ou Semana Santa. Ele, suma autoridade, também fogueteiro, fabriqueiro, chefe da banda de música, dava as cartas e jogava de mão. Dandi e carola era capaz de, nas missas, ajoelhar, contrito, socar o peito dizendo mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa! À noite, à sorrelfa, ele tentava invadir a privacidade das visitas. Não conseguia, pois, minha vó conhecendo a ‘peça’ trancava à chave o quarto das moças. Minha mãe me contou ter sido filha de Maria, em Rosário e conhecera meu futuro pai, João Minga, como congregado Mariano, no mesmo arraial.

O Vô gostava de se vestir nos trinques, eu o vi jogar ao chão um colarinho mal engomado e xingar a vó com palavrão. Na idade provecta ficou muito religioso, beato de mão cheia. Como dizem o Diabo depois de velho, se faz monge. Meu avô não perdia um presépio, em Juiz de Fora; um jubileu, em Congonhas; romaria a Aparecida, ou missões aqui e acolá. Penitente... Não sei!

Chiquinho Armeida tinha duas paixões: viajar e tocar algum instrumento. Ele não tinha dom da música; comprava um instrumento músico, tentava, tentava e desistia. Comprou saxofone, deixou de lado; meu tio, Joaquim, o pegou e aprendeu a tocá-lo. Com o violino foi a mesma coisa. Comprou clarinete, deixou logo, logo para meu tio Antônio. Assim, foi com o piston, herdado pelo tio Agostinho; violão, apanhado por tio Joaquim; viola passou pra minha mãe; trombone, para tio José e, finalmente, o cavaquinho foi para Joãozinho, o perrengue dos Almeida. Tio Agostinho reorganizou a banda de música Euterpe de Santa Cecília, com alguns enxertos e ensinou aos filhos, cunhados, amigos e parentes, tocar na banda; agora, com 16 músicos e cinco cantoras se formou. Na foto A, Dé Rezende, no tarol ( ), genial instrumentista de percussão ou sopro, chegou a tocar trombone em dó na Filarmônica de Juiz de Fora.

‘Seu’ Chico se divertia caçando. Formou com meu outro avô, paterno, Domingos Fernandes de Carvalho (Sô Minga), a dupla de caçadores mais famosa do lugar. Perdi a foto dos dois com as espingardas a tiracolo. Meu avô, nas viagens tinha um padrão: Elas se faziam para os locais distantes, onde pagodeava à vontade. Imaginem que ia a Diamantina farrear com as mulheres de vida fácil de lá. “Vida fácil... hein!” Agora, vamos seguir seu roteiro: Da fazenda São Mateus à estação de Penido ia a cavalo. Lá pernoitava na casa de Nequinha, o barbeiro, ou do concunhado Nicolau Barra. No dia seguinte, pela manhã, pegava o trem que se chamava Penido, sigla MJ, seguia a Benfica, onde baldeava para outro trem, expresso, em direção a Belo Horizonte. Mais um dia de viagem e chegava à Capital. Por dois ou três dias, se esbaldava com as ‘moças alegres’. De Belo Horizonte embarcava novamente no trem de ferro da EFVM, para Diamantina, mais distância pela frente, entretanto, o objetivo tinha de ser alcançado. Para quem é rico e 'bon vivant', a vida é bela. Em Diamantina, a mais famosa ‘zona’ de Minas Gerais, ficava vários dias. Depois das intensas farras e bailes de ‘cabide’ retornava, exausto, ao lar. A fazenda, entrementes, era conduzida ou gerida pelos filhos, empregados e alguns ex-escravos, que trabalhavam pela comida. E assim o tempo passava e a fazenda diminuía, à medida que os credores executavam as hipotecas.

Fato constrangedor se deu com um namorado de uma das moças. Não me lembro o nome dele ou dela. Certo é que o enamorado se excedeu na alimentação e já se fazia tarde quando meu avô, com proverbial franqueza lhe disse: “Se ‘ocê’ vai ficar, o prazer é meu; mas se tem que ir, é hora.” Então, o moço resolveu partir. Caiu um pé d’água justo quando se despedia. À noite, os excessos das libações fizeram danoso efeito e ele teve que se aliviar no pinico que ficou cheio pelas bordas. Então, para se livrar do vexame, abriu a janela que dava para o pomar e jogou aquele caldo nauseabundo pra fora de uma vez. Splash-crás! Esquecera da vidraça. A sujeira foi terrível e espalhou pelo quarto, cama, paredes e ceroulas do desastrado Romeu. Ele levantou a vidraça bem devagar e pulou. Enfrentou os vira-latas e desapareceu para sempre.

Pois é, certa vez meu avô enguiçou com meu pai e deve de ter sido por questão de herança, que meu avô dilapidava. Na contenda, meu avô pegou de uma foice e deu foiçada traiçoeira no meu pai, que se não fosse muito ágil, teria perdido a cabeça. Ele pulou de lado, negaceou e se safou. Depois deste imbróglio, papai, que morava num casebre, ao lado do curral da fazenda, mudou-se para a casa paroquial, em Rosário. Depois, foi morar, de favor, na fazenda de minha bisavó materna (madrinha Dona), onde ‘aprumou’ de vida, abandonou o cabo da enxada e passou a sitiante. Na foto B, meu pai, na fazenda Velha. O nome verdadeiro desapareceu no tempo, após o vendaval da abolição da escravatura, mas acho que era fazenda Morro Alto. Vovô e papai ficaram sem se falar muitos anos; mesmo assim, ia pra nossa casa, demorava dias, na mordomia.

E nos tempos da bonança, não saíamos da casa de nossos avós. De tanto ouvirmos os filhos deles dizerem mãe, nós também chamávamos nossa avó de mãe e o apelido dela era Nhanhá. Vovó era uma mulher e tanto, trabalhava, trabalhava e não reclamava; era pacífica, só falava: “O Chiquinho tem que mudar...” Minha avó, pelo muito que sofreu, pela bondade inata, seguramente está no céu. Bênção vó!!! Eu chamava meu avô de padrinho, por não ter conhecido meu padrinho verdadeiro. Sei que se chamava Ananias Nico, me batizou e nunca mais o vi. Disseram-me que era fazendeiro, em Matias Barbosa, depois de Juiz de Fora, direção Rio. Nunca fui conferir.

Meu avô era contador de estórias. À noite ele acendia fogo no chão da cozinha e nos contava sobre O soldado e o diabo; A onça e o cabrito; As três princesas encantadas; A moça dos cabelos de ouro; Barba azul; Pequeno Polegar e tantas outras daqueles livros da ed. Quaresma in Contos da Carochinha; da Baratinha; da Avozinha; do Arco-da-velha etc. Depois dos contos, contados, mergulhávamos naquela fumarada do corredor e íamos dormir na cama de colchão de palha e saciar as pulgas. A manhã do dia seguinte era para tirar bicho-de-pé. Recordo das festas na fazenda (nos tempos de fartura), dos casamentos, dos bailes (eu era o menino de recados dos moços para as moças). As enormes tachas de doces; cobu (joão-deitado); o forno de barro de onde saiam fumegantes biscoitos de polvilho, brevidades, broas e bolachas. Dos doces, nunca esquecerei das terrinas de sidra e de abóbora-d’água. E vi tudo isto ir findando, acabando. Meu avô não se dava conta, nem mesmo se importava com o fim da fortuna, que herdara fácil. E de onde nada se põe só se tira — eis que a miséria chegou sorrateira. Começou a faltar de tudo. Antes da débâcle, num espasmo final, vovô tornou-se serrador e desbastou as suas matas e lá se foram cedros, perobas, imbuias e jacarandás. Construiu um engenho de cana, com alambique clandestino. Fabricava cachaça, açúcar-preto (mascavo), rapadura e melado. Guardava no paiol e vendia a cliente de confiança. Meus tios, a título de experimentar o ponto na cachaça, ficavam bêbedos como gambás, e naquela casa recendia o álcool. Meu avô — imagine a situação — o subdelegado, denunciado e investigado, teve de pagar pesada multa e fechar a destilaria. O pitiguari, debochado, perguntava: Tem cachaça aí? E a narceja, entre canavieiras, respondia: água só! água só! Agora, ralas moitas de cana-caiana forneciam garapa pra adoçar o café. Bois foram vendidos, o paiol ficou vazio e o moinho parou de moer o fubá do angu do dia a dia. Então, não mais ouvíamos o som da pedra de mó roque-roque, roar, roar, roar. E meu avô, para fugir daquela decadência, tornou-se construtor de carros de boi[3] e implementos (cangas, canzis etc.). Viajava de fazenda a fazenda fazendo carros, ou ficava à toa na casa de amigos e parentes, meses e meses de lazer, deixando a esposa na penúria. A vovó adoeceu, veio a fraqueza do coração que deixou de bater aos 63 anos. Ela com aparência de mais de setenta. Um dia, antes do desenlace, o vô, em má hora, friamente desejou que ela morresse, em voz alta. Eu ouvi, arrasado, esta frase, porque eles estavam com a gente, em Chapéu D’Uvas. O viúvo continuou a vida mansa namorando, passeando e comparecendo raramente na fazenda, que ostentava total abandono. Onde estava o gramofone dos bons tempos? O telefone, único na redondeza? E a caixa de ferramentas? As armas? O enorme debulhador de milho enferrujava no paiol sem qualquer fim. O único bem que sobrara era o relógio de parede, que ainda tiquetaqueava, raspava a garganta de hora em hora, e os ponteiros sobre algarismos romanos batiam solenemente trrr... trr... bom... dim...  Tristemente, tantas vezes, quantas fossem as horas

Na outrora trepidante fazenda, agora o marasmo dava o tom. Ao lado do grande relógio, apenas São Mateus, pouco atento, no oratório, o ouvia. O avô-padrinho tinha indubitavelmente muitos defeitos. Todos nós, os filhos de Adão, temos, não é mesmo? Quem for livre do pecado, atire a primeira pedra! Desafio de Jesus aos que queriam lapidar Maria Madalena. Não faço juízo de valor, não condeno, nem absolvo padrinho Chiquinho, ele já prestou contas a quem de direito.

Vou relatar e afiançar uma de suas belas qualidades: Ele era agricultor e gostava de plantar roças grandes e belas, apesar de formigas cabeçudas (saúvas) comerem quase a metade, porém, meu avô não desanimava, replantava. Mantinha os pastos limpos, cercas fortes, com fios de arame farpado, eretas, marcando seus terrenos e divisas. As porteiras eram de madeira lavrada, nada de tranqueiras. Na horta podia-se encontrar inhame, araruta, chuchu, agrião, almeirão, serralha, couve, quiabo, fava, jiló, batata-doce e gigantesca moita de lobrobô, também conhecida como ora-pro-nobis, que envolvia a marianeira.

O que eu mais amava era o arvoredo. Conheci pés de coité, urucum, araticum, bananeira, laranjeira (campista e serra-d’água), limeira, limoeiro, goiabeira, amoreira, pessegueiro, mangueira, araçazeiro, tangerineira, mexeriqueira, saborosa, jambeiro etc. Deliciei-me com frutas saudáveis e, naquele tempo, sem agrotóxicos.

Leitores, leitoras irritados, impacientes: “E daí, pare de enrolação, o que tem este blá-blá-blá com o semeador?” Calma gente! Sopa quente se come pelas bordas! Esgotei vossa paciência? Conto, então, com muito prazer, o causo hilariante, verossímil, si no è vero, è ben trovato [Se não é verdade é boa estória] de O semeador de jabuticabeiras. (Foto C). É um estoriazinha interessante. No princípio, a fazenda era de terra nua, mas tinha três pés de jabuticabas. Meu avô trepava como macaco nos galhos mais recheados da árvore e degustava ou, melhor, chupava gostosamente, horas a fio e não se satisfazia com a polpa da fruta, engolia também caroços e três cascas, como simpatia para não ‘encalhar’. Então, após dias de chupança, ia para o goiabal ou mato, que rodeava a casa, satisfazer necessidades fisiológicas e levava uma enchadinha, velho cacumbu. Furava um buraco e depois de ‘aliviado’, tampava com terra. Com o passar do tempo, floresceram belíssimas jabuticabeiras, e o pomar cresceu, talvez com mais de trinta pés de jabuticabas e lá estão, belos, altivos, desafiantes. É a lenda que os antigos contam. Este, sim, foi o legado perene de nosso avô, Deus o tenha!

Deixei para o fim estórias que não pude avaliar, porque não as vi acontecer. Pelo sim, pelo não, elas ficam no nicho Acredite se quiser!

Um menino foi criado na família desde criancinha. E quando tinha três ou quatro anos brincava horas a fio, sob o pé de uvas, que ficava ao lado do alpendre. Ele sentado balbuciando pissss, pissss, pisss. Que era aquilo? Um dia, alguém da casa resolveu averiguar, ficou horrorizado ao ver que a criança brincava com uma cobra. Pegaram o menino, e a cobra shshshshs, partiu mais assustada do que eles. Era inofensivo joão-do-campo. O menino deixou de ir à parreira, mas dias depois estava brincando no fundo do quintal, debaixo de uma moita de taquaruçus. Novamente observado, reencontraram os dois: menino e cobra. Matou-se o bicho e o pequeno se perdeu em tristeza.

Outros casos com ofídios: O retireiro, na ordenha pela manhã, notou que uma vaca sempre vinha com o mojo flácido, enquanto as outras chegavam com os úberes repletos. Resolveu verificar e acompanhou a vaca no pasto para descobrir quem roubava o leite. Viu, bem de madrugada, que ela recostava gentilmente, mansamente num cupinzeiro e uma enorme urutu saía para mamar. Verdade? Minha irmã, Aura, foi ao terreiro brincar, perto de uma touceira de cana. Uma galinha cacarejava assustada, chamando os pintinhos. Quando minha irmã chegou perto, uma cascavel deu o bote justo ao avanço da galinha que picada, morreu no ato. A cascavel fugiu, embora ferida por tio Zé Almeida.

Finalmente, vem o causo da minha tia que, segundo meu primo, comia piolhos. Deixo de citar nomes para não responder processo por difamação. Em todo o caso, perguntem ao V...

[1] O escriba destas mal-traçadas linhas olha um espelho distante e confessa que não participou de todos os eventos, daí pode acontecer alguma distorção. Sugestões serão bem recebidas.

 

[2]  Antônio Carlos Ribeiro de Andrade, Presidente de Minas, pernoitou na São Mateus. Os dois confabularam, com certeza, e seu Francisco foi nomeado subdelegado de Rosário.

 

[3] Cantiga de construtor: Mandei fazer um carro / do jeito melhor que há / cabeçalho e pigarro / do pau de jacarandá / de angico faço a mesa /  travessa e recabem, / que à cheda fica presa / e o assoalho também / chaveia, ipê amarelo / os cocões são de moreira / os chumaços de marmelo / no encosto e cantadeira / os fueiros aparados de marmelo-do-campo / de jatobá fiz a rodagem / as cambotas de melões / mandei fazer  as ferragem / no modelo dos piões / as arreias foram que / ajustaram com arrocho / as cavias de ipê-/ no eixo de ipê-roxo... / E se não encontrarem, óleo-vermelho substitui todas.

Euterpe de Santa Cecília (1943)
Primeira fila, da esquerda para direita: Tereza Rezende de Almeida (Zinha), Joaquina Rezende de Almeida (Quitita), Filha de Joaquim Seleiro (?), Joaquim Carlos de Almeida (saxofone), Antônio Luiz (2º piston), Agostinho Aquino de Almeida (1º piston e maestro da banda), Antônio Carlos de Almeida (2º clarinete), Sebastião Rezende (1º clarinete), Catarina Rezende de Almeida (filha do maestro - cantora), Aparecida, do Téte.
Segunda fila, da esquerda para direita: Valdemar Rezende de Almeida (Dé - tarol), Geraldo Luciano (Macete - surdo), Joaquim Anacleto (bombo), José Luiz (metade do rosto – pratos), Alcides Rezende (trompa em fá), Severino Pereira (Nego – saxhorn mi-b), Zé Conde (2º sax), Bernardino (bombardino), João Luiz (Dunga – mi-b), Geraldo Adrião (1º trombone), José Aquino de Almeida (2º trombone).
Fazenda Morro Alto
A cavalo meu pai, João Minga e na porta minha mãe (Didi), tio Zezé e outros não identificados. Mais ou menos 1939.
Fazenda São Mateus
Semeador de jabuticabas
publicado no Benficanet em 03/02/2012
Comentários

Amaro Walter da Silva - Bananal/Centro/São Paulo - 30/01/2016
Olá Asséde, realmente o Sr. José Pacheco meu falecido sogro foi um gênio (aliás: incompreendido). Quando vejo aquela propaganda de um cidadão que fez uma casa com restos achados em praia e o comparam ao grande arquiteto catalão Gaudi eu vejo que as obras que o Sr. José Pacheco fazia eram daquele naipe. Aliás muito parecidas. Só que ele fazia suas obras com o que tinha nas mãos de restos de materiais em sua casa e o artista da propaganda tinha a praia como fonte de alimentação. Tenho um amigo que mora no litoral Norte à beira mar, que cata todas as manhãs em suas caminhadas pela praia muitos restos de materiais que o mar devolve à areia. Muitas coisas são muito bem aproveitadas nesse tipo de trabalho manual. Abçs de Amaro

Assede Paiva - Bela Vista - Volta Redonda - 22/01/2016
Atesto e subscrevo o texto de Amaro, cc Glorinha minha prima. Registro que meu tio e sogro de Amaro foi um gênio. Certa feita mostrou-me violino e piano que ele fez. Também garimpou em Valadares, foi excelente pintor (artista plástico) Em um país avançado teria direito a estudos especiais e seria um grande artista. No mesmo nível do tio José Pacheco era nosso primo Paulinho, filho de Joãozinho. Galera, nossa família teve seus gênios.

Asséde de Paiva - Volta Redonda - RJ - 19/01/2016
Olá Amaro! Quanto tempo hein! Abraçaço do Asséde.

Asséde de Paiva - Volta Redonda - RJ - 17/01/2016
Antônio Pedro... Estou aguardando visita sua aqui no benficanet. Há novidades. Veja. OK?

Amaro Walter da Silva - Bananal/Centro/São Paulo - 15/01/2016
Excelente narrativa. Estive na fazenda em tempo de decadência, quando noivava Glorinha, neta de \"seu\" Chiquinho Almeida. Quando lá estive, morava na casa o Tio Antonio Almeida. Foi muito significativa essa visita para mim, pois nasci e cresci na capital de São Paulo. Quando lá estive, fomos à pé(8 km) de Valadares até lá. D. Dorinha disse que seu Antonio e seu João Almeida mais Zezé estavam na mata atrás da casa cortando a capoeira. Para lá me dirigi levado pelo filho do Sr. João, Paulinho e eles me incentivaram a derrubar um palmito. E assim fiz. Fiquei feliz pois derrubei, cortei os palmitos e levei para Valadares nas costas um em cada ombro. Lá chegando D. Cecília Almeida preparou o palmito, e eu fiz massa de pastel e os fiz, tudo no mesmo dia. Isso deve ter mais ou menos uns 50 anos. Tomei um banho na bica de água que escapava do moinho. E vi, realmente, que havia pelo menos uns 80 a 100 pés de jabuticabas plantadas por \"seu\" Chiquinho Almeida. Muito boas lembranças.

Asséde de Paiva - Volta Redonda - RJ - 06/01/2016
Vanessa! Coitadinha tem tudo a ver com a história que escrevi. É ler e ver. Todavia, se a palavra coitadinha não caiu bem, peço considerá-la não escrita. OK?

Vanessa - Juiz de Fora - 24/12/2015
Coitadinha por quê? Graças a meus tios, primos e meu pai a casa centenária ainda está lá. O clarinete que
você cita está com meu tio Hernani

Asséde de Paiva - Volta Redonda - RJ - 13/11/2015
Caro Jaime! A fazendinha existe... coitadinha.

Jayme Zylbert - Tijuca - RJ - 03/11
Estória linda. Gostaria de conhecer a fazenda São Mateus. Poderia dar as coordenadas? Ainda existe a fazenda São Mateus em Rosário de Minas?

Marco Antonio da Silva - Lima Duarte - JF - MG - 16/07/2013

Moro em Lima Duarte e achei interessante essas informações tão afetivas quanto minuciosas sobre o nosso modo de viver aqui na região. Conheço Rosário de Minas e pude ver nas entrelinhas de sua narrativa situações que conheço apenas de ouvir, retratos fiéis de uma época. Um abraço!

Antonio Pedro - Volta Redonda - JF - 20/04/2012
Sensacional a narrativa do autor. Redigida com extrema criatividade e bom gosto. Fui criado em ambiente rural e me senti transportado; quantas lembranças me propiciou. Foi nostálgico! Parabéns Dr. Asséde!

João Gomes - Além Paraíba - MG - 15/02/2012
Sonhador e amante, não necessariamente nesta ordem, curti a leitura da histórica matéria, tão bem redigida pelo autor, personagem e testemunha do cotidiano de nossos heróis do passado. Distante das lembranças nas narrativas contadas pela minha mãe, quando petiz, na minha inesquecível Benfica, recordo, no entanto, nomes dos lugarejos palco da história, quando ela e seus irmãos, órfãos, vieram das bandas de Igrejinha, viver sob os cuidados do padrinho Jeremias Garcia. Imagino quantos\" causos\"
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