Francisco
Manoel de Almeida, que também respondia pelo nome de
Chichico, Chiquinho, Armeida e ‘seu’ Chico, fazendeiro em
Rosário de Minas, fazenda São Mateus, era uma figuraça. De
origem abastada e casado com moça abastada, muito cedo se
viu proprietário de mais de muitos alqueires de terras. Até
aí tudo bem, ninguém pode ser culpado por ser rico e/ou
importante nos idos de 1910/40.
Assim, ‘seu’ Chiquinho, não só era bem de vida como também,
por influência política[2],
tornou-se subdelegado do povoado de Rosário. Autoridade
constituída em cargo simbólico, os proventos do cargo eram
mínimos, ninguém podia viver apenas eles, mas a função dava
status e algumas facilidades, nada mais, nos tempos heróicos
e difíceis. Seu Francisco começou gerar numerosa família.
Entre seus filhos, cito Joaquim Carlos de Almeida, com o
qual tive grande afinidade ideológica e espiritual; bem
como, tia Teresa, casada com Sebastião Leite; ela, uma
santa, me amava. Sendo meu avô muito importante, podia se
dar ao luxo de não trabalhar e foi bom enquanto durou. Mais
tarde, quando ‘zerou’ a fortuna, tornou-se ave avoante. Na
verdade, sempre me lembro dele com uma bandana, se queixando
de dor de cabeça muito forte, sentado ao banco do alpendre,
com pernas esticadas sobre ele. Dali administrava o curral e
gemia: “Ai, que dor de cabeça!” Acredito na sua enxaqueca,
acredito na sua competência, mas ele se lamentava quando
chegávamos, detestava nossa vinda, não foi carinhoso com a
gente.
Eu me lembro da
fazenda São Mateus nas fases de prosperidade e de pobreza.
Era um paradoxo: onde o modernismo (telefone, gramofone), se
confundia com o atraso, pois, não tinha WC, e o piso da
cozinha era de chão batido. Água só no córrego que
alimentava a bica, que movia o moinho, que refrescava o
pomar. Eis uma ligeira descrição da fazenda que, aliás,
ainda está de pé: Situava-se entre os povoados de Valadares
(onde nasci) e
Rosário, no vale formado por dois morros o Grande e o morro
Alto. O cordão umbilical, isto é, a estrada que ligava os
morros era estreita e vã, caminho de tropeiros, pedestres e
carros de boi. No meio da estrada, escondida na encosta,
ficava a fazenda São Mateus e seus enormes paióis com pisos
e empenas de madeira. Ela formava dois retângulos, em ângulo
reto, enfeitado por belo pé de manacá. Seu alpendre,
circulado por videiras, suportava um sino que, outrora,
chamava os agregados para almoço ou para avisá-los a hora de
encerrar o trabalho; uma sala (a principal), forrada a
tábuas e soalho de peroba-rosa, cheia de retratos da família
que, lado a lado, emoldurava as quatro paredes. Um quarto
para o telefone; antessala com relógio e oratório, onde se
realizaram missas, rezaram terços e fizeram casamentos.
Exceto as salas e cozinha (esta sem forro), todas as
dependências eram esteiradas. A antessala dava para três
quartos. Num deles ouvi, pela primeira vez, os cordéis
Donzela Teodora e
Alzira a morta virgem,
lidos por tio
Antônio, à luz bruxuleante de lamparina e despertou meu
entusiasmo por leitura. No quarto do casal ficava o arsenal
do vô, luxo de subdelegado: trochada, pica-pau (de carregar
pela boca), mocha, fuzil, mosquetão, filobé e munição. Mais
dois quartos cujas portas se abriam para o do casal, eram
para os filhos menores. Um corredor largo antes de
desembocar na despensa, abria porta para quartinho da
empregada de confiança. A despensa tinha enorme
guarda-comida, com terrinas de doces variados; mesa imensa e
caixões de cereais, prontos pra consumo. A cozinha, nos
velhos, tempos tinha, além do fogão à lenha, quartinho
lateral, onde num tronco de peroba, centenário, escavaram
três pilões, a fogo, formão e goiva, para soca de milho,
arroz, café e sal grosso. Ao entardecer, antes do leite com
angu quente, ao lusco-fusco da noite de lua, ouvia-se o
pam-tum-pam-tum-pam-tum... do pessoal manejando sincronizados as
mãos de pilão, pilando arroz com casca. No mesmo
compartimento ficava a queijeira. O soro ia por canaleta
para os porcos e aves do lado de fora da casa. À saída da
cozinha, escada de dois matacões levava pro terreiro, onde
cachorros perdigueiros, vira-latas, galinhas, patos, perus,
galinhas d’angola disputavam migalhas, quirera, canjiquinha
e restos de comida com canário-cabeça-de-fogo, sabiá,
bem-te-vi, trinca-ferro, tié, tico-tico, pomba-rola e até
jacus. O caçula, João, era passarinheiro, engaiolava
pintassilgo, curió, coleiro, azulão, pássaro-preto,
maritaca, sanguíneo e outros.
Corria a estória de que as terras eram
infestadas de cascavéis e jararacuçus e diziam que um destes
ofídios fora ‘apanhado’ sob o travesseiro de minha mãe e
outro, enorme, enrolara-se no cubo do moinho paralisando-o.
Verdade? Eu nunca vi pessoa alguma ‘ofendida’ de cobra.
Talvez fosse mesmo folclore. Só pra completar, digo que o
porão era muito baixo e servia apenas para depósito de
lenha, poleiro de pato e ninho de cobras. Claro, na riqueza
tudo é bonito: quase cem vacas no curral (meu avô criou um
touro que entrava na porta da sala e saía na porta da
cozinha. Meninos, eu vi!). Nos paióis, tulhas de milho,
arroz e feijão. Sob uma cobertura vazada ficava o carro de
boi, o carrinho manual e ferramentas de variados tipos:
gurpião, cepilho (falava
sipia), enxó, martelo, plaina, serrote, esquadro, compasso, riscador
e outras. Afinal, o velho era carpinteiro ou carapina, como
diziam. O chiqueiro e o moinho ficavam entre o córrego de
água potável e o riacho.
Ah, não posso esquecer... Certa feita,
me levaram a uma colheita no milharal, no cume de um morro.
Na ida o carro estava vazio e esteirado. Lá no alto, foi
superlotado de milho e me jogaram sobre as espigas
escorregadias. O carro pesado chinchinando, nos cocões, e o
candeeiro tocando com ferrão entre chifres dos bois de coice
ôa-ôa-ôa... Os
bois Barroso e Amargoso retesaram patas dianteiras para
travar e aguentar o tranco. Na perambeira eu, aterrorizado,
olhava pro penhasco. Sobrevivi. Ficou registrado em minha
mente o trauma. “Nunca mais!” Pensei. Quem sabe o evento
originou minha acrofobia? Havia roças de milho, feijão e
arroz. Brincávamos saltando do paiol para o monte de palhas
de arroz, na colheita.
No ofício ou cargo de subdelegado, vô
foi prender um assassino escondido na localidade de Penido.
Chegando, engatilhou o refle e bateu com culatra no esteio.
“Ô de casa!” Seu Quinzinho, o homicida, chegou à porta abriu
os braços em cruz e perguntou o que queria dele. Meu avô
disse “Vim te prender! ‘Cê’ vai comigo ou vou te levar?”. O
assassino se entregou. Afora este caso, fez outra diligência
notável com o subdelegado de Chapéu D’Uvas, Francisco
Christino Malta, contra um bando de ciganos, acampados nas
terras da fazenda França. Li este registro no livro de
tombo, hoje desaparecido.
Anualmente, meu avô se mudava com a
família para o arraial de Rosário, a fim de assistir a festa
de Nossa Senhora do Rosário, ou Semana Santa. Ele, suma
autoridade, também fogueteiro, fabriqueiro, chefe da
banda de música, dava as cartas e jogava de mão. Dandi e
carola era capaz de, nas missas, ajoelhar, contrito, socar o
peito dizendo mea
culpa, mea culpa, mea maxima culpa! À noite, à sorrelfa,
ele tentava invadir a privacidade das visitas. Não
conseguia, pois, minha vó conhecendo a ‘peça’ trancava à
chave o quarto das moças. Minha mãe me contou ter sido filha
de Maria, em Rosário e conhecera meu futuro pai, João Minga,
como congregado Mariano, no mesmo arraial.
O Vô gostava de se vestir nos trinques,
eu o vi jogar ao chão um colarinho mal engomado e xingar a
vó com palavrão. Na idade provecta ficou muito religioso,
beato de mão cheia. Como dizem
o Diabo depois de
velho, se faz monge. Meu avô não perdia um presépio, em
Juiz de Fora; um jubileu, em Congonhas; romaria a Aparecida,
ou missões aqui e acolá. Penitente... Não sei!
Chiquinho Armeida tinha duas paixões:
viajar e tocar algum instrumento. Ele não tinha dom da
música; comprava um instrumento músico, tentava, tentava e
desistia. Comprou saxofone, deixou de lado; meu tio,
Joaquim, o pegou e aprendeu a tocá-lo. Com o violino foi a
mesma coisa. Comprou clarinete, deixou logo, logo para meu
tio Antônio. Assim, foi com o piston, herdado pelo tio
Agostinho; violão, apanhado por tio Joaquim; viola passou
pra minha mãe; trombone, para tio José e, finalmente, o
cavaquinho foi para Joãozinho, o perrengue dos Almeida. Tio
Agostinho reorganizou a banda de música
Euterpe de Santa
Cecília, com alguns enxertos e ensinou aos filhos,
cunhados, amigos e parentes, tocar na banda; agora, com
16
músicos e cinco cantoras se formou. Na foto
A, Dé Rezende,
no tarol ( ), genial instrumentista de percussão ou sopro,
chegou a tocar trombone em dó na Filarmônica de Juiz de
Fora.
‘Seu’ Chico se divertia caçando. Formou
com meu outro avô, paterno, Domingos Fernandes de Carvalho
(Sô Minga), a dupla de caçadores mais famosa do lugar. Perdi
a foto dos dois com as espingardas a tiracolo. Meu avô, nas
viagens tinha um padrão: Elas se faziam para os locais
distantes, onde pagodeava à vontade. Imaginem que ia a
Diamantina farrear com as mulheres de vida fácil de lá.
“Vida fácil... hein!” Agora, vamos seguir seu roteiro: Da
fazenda São Mateus à estação de Penido ia a cavalo. Lá
pernoitava na casa de Nequinha, o barbeiro, ou do concunhado
Nicolau Barra. No dia seguinte, pela manhã, pegava o trem
que se chamava Penido,
sigla MJ,
seguia a Benfica, onde baldeava para outro trem, expresso,
em direção a Belo Horizonte. Mais um dia de viagem e chegava
à Capital. Por dois ou três dias, se esbaldava com as ‘moças
alegres’. De Belo Horizonte embarcava novamente no trem de
ferro da EFVM,
para Diamantina, mais distância pela frente, entretanto, o
objetivo tinha de ser alcançado. Para quem é rico e 'bon
vivant', a vida é bela. Em Diamantina, a mais famosa ‘zona’
de Minas Gerais, ficava vários dias. Depois das intensas
farras e bailes de ‘cabide’ retornava, exausto, ao lar. A
fazenda, entrementes, era conduzida ou gerida pelos filhos,
empregados e alguns ex-escravos, que trabalhavam pela
comida. E assim o tempo passava e a fazenda diminuía, à
medida que os credores executavam as hipotecas.
Fato constrangedor se deu com um
namorado de uma das moças. Não me lembro o nome dele ou
dela. Certo é que o enamorado se excedeu na alimentação e já
se fazia tarde quando meu avô, com proverbial franqueza lhe
disse: “Se ‘ocê’ vai ficar, o prazer é meu; mas se tem que
ir, é hora.” Então, o moço resolveu partir. Caiu um pé
d’água justo quando se despedia. À noite, os excessos das
libações fizeram danoso efeito e ele teve que se aliviar no
pinico que ficou cheio pelas bordas. Então, para se livrar
do vexame, abriu a janela que dava para o pomar e jogou
aquele caldo nauseabundo pra fora de uma vez.
Splash-crás! Esquecera da vidraça. A sujeira foi terrível e espalhou
pelo quarto, cama, paredes e ceroulas do desastrado Romeu.
Ele levantou a vidraça bem devagar e pulou. Enfrentou os
vira-latas e desapareceu para sempre.
Pois é, certa vez meu avô enguiçou com
meu pai e deve de ter sido por questão de herança, que meu
avô dilapidava. Na contenda, meu avô pegou de uma foice e
deu foiçada traiçoeira no meu pai, que se não fosse muito
ágil, teria perdido a cabeça. Ele pulou de lado, negaceou e
se safou. Depois deste imbróglio, papai, que morava num
casebre, ao lado do curral da fazenda, mudou-se para a casa
paroquial, em Rosário. Depois,
foi morar, de favor, na fazenda de minha bisavó materna
(madrinha Dona), onde ‘aprumou’ de vida, abandonou o cabo da
enxada e passou a sitiante. Na foto B, meu pai, na fazenda
Velha. O nome verdadeiro desapareceu no tempo, após o
vendaval da abolição da escravatura, mas acho que era
fazenda Morro Alto. Vovô e papai ficaram sem se falar muitos
anos; mesmo assim, ia pra nossa casa, demorava dias, na
mordomia.
E
nos tempos da bonança, não saíamos da casa de nossos avós.
De tanto ouvirmos os filhos deles dizerem mãe, nós também
chamávamos nossa avó de mãe e o apelido dela era Nhanhá.
Vovó era uma mulher e tanto, trabalhava, trabalhava e não
reclamava; era pacífica, só falava: “O Chiquinho tem que
mudar...” Minha avó, pelo muito que sofreu, pela bondade
inata, seguramente está no céu. Bênção vó!!! Eu chamava meu
avô de padrinho, por não ter conhecido meu padrinho
verdadeiro. Sei que se chamava Ananias Nico, me batizou e
nunca mais o vi. Disseram-me que era fazendeiro, em Matias Barbosa,
depois de Juiz de Fora, direção Rio. Nunca fui conferir.
Meu avô era contador de estórias. À
noite ele acendia fogo no chão da cozinha e nos contava
sobre O soldado e o
diabo; A onça e o
cabrito; As três princesas encantadas;
A moça dos cabelos de
ouro; Barba azul;
Pequeno Polegar e tantas outras daqueles livros da ed. Quaresma in
Contos da Carochinha;
da Baratinha; da Avozinha; do
Arco-da-velha etc.
Depois dos contos, contados, mergulhávamos naquela fumarada
do corredor e íamos dormir na cama de colchão de palha e
saciar as pulgas. A manhã do dia seguinte era para tirar
bicho-de-pé. Recordo das festas na fazenda (nos tempos de
fartura), dos casamentos, dos bailes (eu era o menino de
recados dos moços para as moças). As enormes tachas de
doces; cobu (joão-deitado); o forno de barro de onde saiam
fumegantes biscoitos de polvilho, brevidades, broas e
bolachas. Dos doces, nunca esquecerei das terrinas de sidra
e de abóbora-d’água. E vi tudo isto ir findando, acabando.
Meu avô não se dava conta, nem mesmo se importava com o fim
da fortuna, que herdara fácil. E de onde nada se põe só se
tira — eis que a miséria chegou sorrateira. Começou a faltar
de tudo. Antes da débâcle, num espasmo final, vovô tornou-se
serrador e desbastou as suas matas e lá se foram cedros,
perobas, imbuias e jacarandás. Construiu um engenho de cana,
com alambique clandestino. Fabricava cachaça, açúcar-preto
(mascavo), rapadura e melado. Guardava no paiol e vendia a
cliente de confiança. Meus tios, a título de experimentar o
ponto na cachaça, ficavam bêbedos como gambás, e naquela
casa recendia o álcool. Meu avô — imagine a situação — o
subdelegado, denunciado e investigado, teve de pagar pesada
multa e fechar a destilaria. O pitiguari, debochado,
perguntava: Tem
cachaça aí? E a narceja, entre canavieiras, respondia:
água só!
água só! Agora, ralas moitas de cana-caiana forneciam garapa pra adoçar o
café. Bois foram vendidos, o paiol ficou vazio e o moinho
parou de moer o fubá do angu do dia a dia. Então, não mais
ouvíamos o som da pedra de mó
roque-roque,
roar, roar, roar. E meu avô, para fugir daquela decadência,
tornou-se construtor de carros de boi[3]
e implementos (cangas, canzis
etc.). Viajava de fazenda a fazenda fazendo carros, ou
ficava à toa na casa de amigos e parentes, meses e meses de
lazer, deixando a esposa na penúria. A vovó adoeceu, veio a
fraqueza do coração que deixou de bater aos
63 anos. Ela
com aparência de mais de setenta. Um dia, antes do
desenlace, o vô, em má hora, friamente desejou que ela
morresse, em voz alta. Eu ouvi, arrasado, esta frase, porque
eles estavam com a gente,
em Chapéu D’Uvas. O viúvo continuou a vida
mansa namorando, passeando e comparecendo raramente na
fazenda, que ostentava total abandono. Onde estava o
gramofone dos bons tempos? O telefone, único na redondeza? E
a caixa de ferramentas? As armas? O enorme debulhador de
milho enferrujava no paiol sem qualquer fim. O único bem que
sobrara era o relógio de parede, que ainda tiquetaqueava,
raspava a garganta de hora em hora, e os ponteiros sobre
algarismos romanos batiam solenemente
trrr... trr... bom...
dim... Tristemente, tantas
vezes, quantas fossem as horas
Na outrora trepidante
fazenda, agora o marasmo dava o tom. Ao lado do grande
relógio, apenas São Mateus, pouco atento, no oratório, o
ouvia. O avô-padrinho tinha indubitavelmente muitos
defeitos. Todos nós, os filhos de Adão, temos, não é mesmo?
Quem for livre do
pecado, atire a primeira pedra!
Desafio de Jesus aos que queriam
lapidar Maria Madalena. Não faço juízo de valor, não
condeno, nem absolvo padrinho Chiquinho, ele já prestou
contas a quem de direito.
Vou relatar e afiançar uma de suas
belas qualidades: Ele era agricultor e gostava de plantar
roças grandes e belas, apesar de formigas cabeçudas (saúvas)
comerem quase a metade, porém, meu avô não desanimava,
replantava. Mantinha os pastos limpos, cercas fortes, com
fios de arame farpado, eretas, marcando seus terrenos e
divisas. As porteiras eram de madeira lavrada, nada de
tranqueiras. Na horta podia-se encontrar inhame, araruta,
chuchu, agrião, almeirão, serralha, couve, quiabo, fava,
jiló, batata-doce e gigantesca moita de lobrobô, também
conhecida como
ora-pro-nobis, que envolvia a
marianeira.
O que eu mais amava era o arvoredo.
Conheci pés de coité, urucum, araticum, bananeira,
laranjeira (campista e serra-d’água), limeira, limoeiro,
goiabeira, amoreira, pessegueiro, mangueira, araçazeiro,
tangerineira, mexeriqueira, saborosa, jambeiro etc.
Deliciei-me com frutas saudáveis e, naquele tempo, sem
agrotóxicos.
Leitores, leitoras irritados,
impacientes: “E daí, pare de enrolação, o que tem este
blá-blá-blá com o semeador?” Calma gente! Sopa quente se
come pelas bordas! Esgotei vossa paciência? Conto, então,
com muito prazer, o causo hilariante, verossímil,
si no è
vero, è ben trovato [Se não é verdade é boa estória] de
O semeador de
jabuticabeiras. (Foto C). É um estoriazinha
interessante. No princípio, a fazenda era de terra nua, mas
tinha três pés de jabuticabas. Meu avô trepava como macaco
nos galhos mais recheados da árvore e degustava ou, melhor,
chupava gostosamente, horas a fio e não se satisfazia com a
polpa da fruta, engolia também caroços e três cascas, como
simpatia para não ‘encalhar’. Então, após dias de chupança,
ia para o goiabal ou mato, que rodeava a casa, satisfazer
necessidades fisiológicas e levava uma enchadinha, velho
cacumbu. Furava um buraco e depois de ‘aliviado’, tampava
com terra. Com o passar do tempo, floresceram belíssimas
jabuticabeiras, e o pomar cresceu, talvez com mais de trinta
pés de jabuticabas e lá estão, belos, altivos, desafiantes.
É a lenda que os antigos contam. Este, sim, foi o legado
perene de nosso avô, Deus o tenha!
Deixei para o fim estórias que não pude
avaliar, porque não as vi acontecer. Pelo sim, pelo não,
elas ficam no nicho
Acredite se quiser!
Um menino foi criado na família desde
criancinha. E quando tinha três ou quatro anos brincava
horas a fio, sob o pé de uvas, que ficava ao lado do
alpendre. Ele sentado balbuciando
pissss,
pissss, pisss. Que era
aquilo? Um dia, alguém da casa resolveu averiguar, ficou
horrorizado ao ver que a criança brincava com uma cobra.
Pegaram o menino, e a cobra
shshshshs, partiu
mais assustada do que eles. Era inofensivo joão-do-campo. O
menino deixou de ir à parreira, mas dias depois estava
brincando no fundo do quintal, debaixo de uma moita de
taquaruçus. Novamente observado, reencontraram os dois:
menino e cobra. Matou-se o bicho e o pequeno se perdeu em
tristeza.
Outros casos com ofídios: O retireiro,
na ordenha pela manhã, notou que uma vaca sempre vinha com o
mojo flácido, enquanto as outras chegavam com os úberes
repletos. Resolveu verificar e acompanhou a vaca no pasto
para descobrir quem roubava o leite. Viu, bem de madrugada,
que ela recostava gentilmente, mansamente num cupinzeiro e
uma enorme urutu saía para mamar. Verdade? Minha irmã, Aura,
foi ao terreiro brincar, perto de uma touceira de cana. Uma
galinha cacarejava assustada, chamando os pintinhos. Quando
minha irmã chegou perto, uma cascavel deu o bote justo ao
avanço da galinha que picada, morreu no ato. A cascavel
fugiu, embora ferida por tio Zé Almeida.
Finalmente, vem o causo da minha tia
que, segundo meu primo, comia piolhos. Deixo de citar nomes
para não responder processo por difamação. Em todo o caso,
perguntem ao V...
[1]
O escriba
destas mal-traçadas linhas olha um espelho distante e
confessa que não participou de todos os eventos, daí pode
acontecer alguma distorção. Sugestões serão bem recebidas.
[2]
Antônio Carlos Ribeiro de Andrade,
Presidente de Minas, pernoitou na São Mateus. Os dois
confabularam, com certeza, e seu Francisco foi nomeado
subdelegado de Rosário.
[3]
Cantiga de construtor:
Mandei fazer
um carro / do jeito melhor que há / cabeçalho e pigarro / do
pau de jacarandá / de angico faço a mesa /
travessa e recabem, / que à cheda fica presa / e o
assoalho também / chaveia, ipê amarelo / os cocões são de
moreira / os chumaços de marmelo / no encosto e cantadeira /
os fueiros aparados de marmelo-do-campo / de jatobá fiz a
rodagem / as cambotas de melões / mandei fazer
as ferragem / no modelo dos piões / as arreias foram
que / ajustaram com arrocho / as cavias de ipê-/ no eixo de
ipê-roxo... / E se não encontrarem, óleo-vermelho substitui
todas.
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