Ele tinha dez ou onze anos; ficava
horas olhando aquele pontilhão sobre a estrada de ferro,
pensando que o trem, que por ele passava, um dia cairia na água.
Seria um grande desastre, porque a seus olhos, rio e ponte eram
enormes. Enormes também eram as composições que passavam sobre
eles. Alguns vagões uniformes traziam a palavra Casa de Pedra.
"Onde será isto?" meditava.
A grande ponte sobre as margens do rio Anubiarap, profundo,
furioso, cujas águas rugiam sobre e entre pedras; ao embate
produziam espumas, e os peixes pulavam sobre as águas e pedras
numa luta de sobrevivência. E o menino imaginava: o trem sobre
os trilhos, estes sobre dormentes, sobre as vigas de aço, sobre
o rio sobre pedras. Sonhas, ó menino? Ele tinha medo daquela
ponte enorme.
Aconteceu que no lugar em que moravam só tinham duas atividades:
trabalhar e rezar. No quesito oração, além da missa tinham o
costume da "visita da santinha" isto é, N. Senhora ficava
durante nove dias numa casa e, depois da novena todos se reuniam
e a levavam em procissão para nova casa. Eis que a santinha
estava na casa do menino, a novena acabou e era hora de
trasladá-la pra outra casa. Por destino travesso, a nova
visitação ficava do outro lado do pontilhão. Porém, no dia
aprazado, apareceu um mascate santeiro e com suas vendas e
ofertas de quinquilharias, atrasou a reza; quando saíram já
entardecia. E todos seguiam em fila dupla, cada qual com vela
acesa na mão, e a dona da casa levava a santa à frente de todos,
devidamente protegida no oratório. Cantavam afinados: avê!
avê! avê Maria! avê! avê! avê! avê Maria! Atreze de maio na cova
da Iria, no céu aparece a Virgem Maria... E também o hino
Com minha mãe estarei: Com minha mãe estarei na santa glória
um dia, junto à Virgem Maria no céu triunfarei / No céu, no céu...
o grupo devocional passou por uma tranqueira, feita de velhos
trilhos, inúteis para a estrada de ferro. Em procissão,
contritos, caminharam ao longo da via férrea, sempre a cantar:
avê! avê! avê Maria! Aí, chegaram ao pontilhão; não foi
complicado para o menino, porque seu tio... qual tio? Ah, seria
o tio Joaquim? Não se lembrava. Só se lembrava da mais horrível
experiência da vida. O tio deu-lhe a mão, atravessaram sem
problemas o pontilhão e lá, bem abaixo as águas rugiam
ameaçadoras. Depois da ponte, continuaram a rezar até chegarem à
nova casa. Um altar novo (enfeitado de rosas, cravos, fitas e
estrelinhas), esperava a santa. Cada morada esmerava-se para
fazer a mais bela orada. Os donos da casa receberam a santinha,
na entrada e após pô-la respeitosamente no altar, ajoelharam-se,
persignaram e rezaram as ave-marias e padre-nossos, contados no
santo rosário. O terço durou minutos, mas o puxador resolveu
rezar jaculatórias para as almas dos que se foram e a noite
avançou. Findas as rezas em benefício das almas, houve alguns
momentos de conversa, um bolo foi partido e servido com café
quente. Despediram-se, beijaram as fitas da santa e todos se
debandaram. Assim, ocorreu com o tio do menino que tinha
namorada na fazenda Cachoeira, em direção oposta ao arraial de
onde vieram.
E o menino ficou só. Era noite fechada, no retorno a casa tinha
o pontilhão a ser atravessado. A luz de bruxuleante lampião
clareava um pouco o turbilhão das águas... e agora? O menino
que, então, puxava fila, parou à espera que alguém lhe desse a
mão; ninguém o fez e ele não teve coragem de pedir ajuda, era
muito tímido, foi ficando para trás, até que o último por ele
passou. Atravessar era preciso. Ah, pontilhão dos terrores!
Encheu-se de coragem, deu o primeiro passo, o segundo e outros,
sobre estreita tábua, posta sobre dormentes, entre trilhos, para
facilitar a travessia dos pedestres. Lá, embaixo, as águas
bramiam nas pedras. Mais um passo... outro e outro. Foi bem até
ao meio da ponte; a lua desviou de nuvem e clareou tudo por
momento. Ele se viu caindo... Pisando levemente sobre estreita
tábua, em altura descomunal, ouviu o rumor das águas revoltas e,
estonteado, abaixou-se, parece que ia se deitar, pôs-se de
quatro, as pernas bambas, ficou de joelhos, arrastava-se; suava,
tremia os olhos enevoavam... vertigem, paralisou.. E lá no fundo
o tenebroso barulho das águas, que o atraía para seus braços
espumantes. No peito dolorido, o coração como tambor:
tuc-tuc-tuc! Ouviu-se o apito de um trem a dois quilômetros. Ou
caia nos braços das águas ou esperava a locomotiva ofegante...
Em câmera lenta deu os últimos passos, os infinitos longos
metros que jamais superou em sua vida. Finalizou o trecho... e o
trem de ferro passou. Aquela gente olhava e ria, não compreendia
a agonia do menino. Ninguém se mexeu para saber o que se
passava. Desde então, ele nunca mais suportou altura. O
pontilhão de Chapéu D'Uvas passou a ser parte integrante de sua
vida, de seus pesadelos e lhe trouxe a síndrome de acrofobia.
Uma lição aprendeu: Nos momentos difíceis, sempre estaria só.
Tudo é só, a montanha é só, o mar é só. A lua ainda é mais
só. Se encontrares alguém, ele está só também.
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