..................................................................................................................................................................
Recordar é Viver!

por Asséde Paiva
(rosarense), bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos.

3459 acessos.

 
..................................................................................................................................................................
O menino no pontilhão de Chapéu D’Uvas

Ele tinha dez ou onze anos; ficava horas olhando aquele pontilhão sobre a estrada de ferro, pensando que o trem, que por ele passava, um dia cairia na água. Seria um grande desastre, porque a seus olhos, rio e ponte eram enormes. Enormes também eram as composições que passavam sobre eles. Alguns vagões uniformes traziam a palavra Casa de Pedra. "Onde será isto?" meditava.

A grande ponte sobre as margens do rio Anubiarap, profundo, furioso, cujas águas rugiam sobre e entre pedras; ao embate produziam espumas, e os peixes pulavam sobre as águas e pedras numa luta de sobrevivência. E o menino imaginava: o trem sobre os trilhos, estes sobre dormentes, sobre as vigas de aço, sobre o rio sobre pedras. Sonhas, ó menino? Ele tinha medo daquela ponte enorme.

Aconteceu que no lugar em que moravam só tinham duas atividades: trabalhar e rezar. No quesito oração, além da missa tinham o costume da "visita da santinha" isto é, N. Senhora ficava durante nove dias numa casa e, depois da novena todos se reuniam e a levavam em procissão para nova casa. Eis que a santinha estava na casa do menino, a novena acabou e era hora de trasladá-la pra outra casa. Por destino travesso, a nova visitação ficava do outro lado do pontilhão. Porém, no dia aprazado, apareceu um mascate santeiro e com suas vendas e ofertas de quinquilharias, atrasou a reza; quando saíram já entardecia. E todos seguiam em fila dupla, cada qual com vela acesa na mão, e a dona da casa levava a santa à frente de todos, devidamente protegida no oratório. Cantavam afinados: avê! avê! avê Maria! avê! avê! avê! avê Maria! Atreze de maio na cova da Iria, no céu aparece a Virgem Maria... E também o hino Com minha mãe estarei: Com minha mãe estarei na santa glória um dia, junto à Virgem Maria no céu triunfarei / No céu, no céu... o grupo devocional passou por uma tranqueira, feita de velhos trilhos, inúteis para a estrada de ferro. Em procissão, contritos, caminharam ao longo da via férrea, sempre a cantar: avê! avê! avê Maria! Aí, chegaram ao pontilhão; não foi complicado para o menino, porque seu tio... qual tio? Ah, seria o tio Joaquim? Não se lembrava. Só se lembrava da mais horrível experiência da vida. O tio deu-lhe a mão, atravessaram sem problemas o pontilhão e lá, bem abaixo as águas rugiam ameaçadoras. Depois da ponte, continuaram a rezar até chegarem à nova casa. Um altar novo (enfeitado de rosas, cravos, fitas e estrelinhas), esperava a santa. Cada morada esmerava-se para fazer a mais bela orada. Os donos da casa receberam a santinha, na entrada e após pô-la respeitosamente no altar, ajoelharam-se, persignaram e rezaram as ave-marias e padre-nossos, contados no santo rosário. O terço durou minutos, mas o puxador resolveu rezar jaculatórias para as almas dos que se foram e a noite avançou. Findas as rezas em benefício das almas, houve alguns momentos de conversa, um bolo foi partido e servido com café quente. Despediram-se, beijaram as fitas da santa e todos se debandaram. Assim, ocorreu com o tio do menino que tinha namorada na fazenda Cachoeira, em direção oposta ao arraial de onde vieram.

E o menino ficou só. Era noite fechada, no retorno a casa tinha o pontilhão a ser atravessado. A luz de bruxuleante lampião clareava um pouco o turbilhão das águas... e agora? O menino que, então, puxava fila, parou à espera que alguém lhe desse a mão; ninguém o fez e ele não teve coragem de pedir ajuda, era muito tímido, foi ficando para trás, até que o último por ele passou. Atravessar era preciso. Ah, pontilhão dos terrores! Encheu-se de coragem, deu o primeiro passo, o segundo e outros, sobre estreita tábua, posta sobre dormentes, entre trilhos, para facilitar a travessia dos pedestres. Lá, embaixo, as águas bramiam nas pedras. Mais um passo... outro e outro. Foi bem até ao meio da ponte; a lua desviou de nuvem e clareou tudo por momento. Ele se viu caindo... Pisando levemente sobre estreita tábua, em altura descomunal, ouviu o rumor das águas revoltas e, estonteado, abaixou-se, parece que ia se deitar, pôs-se de quatro, as pernas bambas, ficou de joelhos, arrastava-se; suava, tremia os olhos enevoavam... vertigem, paralisou.. E lá no fundo o tenebroso barulho das águas, que o atraía para seus braços espumantes. No peito dolorido, o coração como tambor: tuc-tuc-tuc! Ouviu-se o apito de um trem a dois quilômetros. Ou caia nos braços das águas ou esperava a locomotiva ofegante... Em câmera lenta deu os últimos passos, os infinitos longos metros que jamais superou em sua vida. Finalizou o trecho... e o trem de ferro passou. Aquela gente olhava e ria, não compreendia a agonia do menino. Ninguém se mexeu para saber o que se passava. Desde então, ele nunca mais suportou altura. O pontilhão de Chapéu D'Uvas passou a ser parte integrante de sua vida, de seus pesadelos e lhe trouxe a síndrome de acrofobia. Uma lição aprendeu: Nos momentos difíceis, sempre estaria só.

Tudo é só, a montanha é só, o mar é só. A lua ainda é mais só. Se encontrares alguém, ele está só também.

Texto publicado no Benficanet em 28/12/2012
    Comente!
 
Comentários:

Miguel Ribeiro Gomide - Juiz de Fora - MG - 02/01/2013
Conceituado e escorreito escritor Asséde Paiva - Bacharel em Direito e Administrador. Rosarense orgulhoso de seu tradicional torrão natal: Rosário de Minas(distrito de Juiz de Fora). Asséde Paiva tem a capacidade inata de acrescentar ao texto, imagens hipinagógicas sonoras no subconsciente do leitor. Além do mais, com lições de vida.Também faço minhas, as palavras da jornalista Alessandra Patrícia, Editora do portal BENFICANET ao comentar brilhantemente, o referido texto, excelente para um curta-metragem.

Asséde Paiva - Volta Redonda - RJ - 28/12/2012
É isto aí, amiga. O pontilhão do terror...

Alessandra (Benficanet) - 28/12/2012
Sr. Asséde, é incrível como seus textos nos leva para as cenas que descreve... neste, me vi no alto do pontilhão, tremendo de medo e não querendo nunca olhar para baixo... até porque, também tenho receio de altura (risos).
Agradeço sua gentileza enorme em compartilhar conosco tantos trabalhos, proporcionando aos leitores um passeio pelo tempo e muitas vezes pela imaginação. Espero que em 2013 continuemos essa boa amizade. Abraço!
 topo
© direitos reservados desde 2008 -  benficanet.com - contato@benficanet.com