Meus pais após residirem 12 anos em um lugarejo denominado
Chapéu D’Uvas, se mudaram para outro local,
bem maior: Benfica. Tudo ia de mal a pior
para meu pai. Já pensou na palavra urucubaca? Pois é! Esta
palavra quer dizer azar supremo e era assim que meu pai
estava. Ele ia contra a maré. Nada dava certo. Em Benfica,
comprou um açougue em sociedade com meu tio
Joaquim Minga, e logo desfez o negócio
fazendo com que meu tio se virasse como charuto na boca de
bêbado para arranjar dinheiro e pagar meu pai. O velho, sem
tino e sem destino, resolveu mudar mais uma vez e foi parar
em São João de Meriti, no Estado do Rio de Janeiro, baixada
fluminense, onde a febre amarela dava até nos paus. Eu
fiquei em Benfica, pois cursava o quarto ano ginasial, no
Granbery e parar de estudar seria enorme prejuízo na minha
educação, na qual meu pai acreditara e investira tanto. Pois
bem, fiquei em casa de meus tios, em Benfica, numa
quase-rua na parte de baixo da linha férrea. Meus
tios, doces tios, me abrigaram alguns meses. Passamos
privações porque meu tio não estava bem de bolso. Ele era
alfaiate, Joaquim Almeida era seu nome e
tinha pouquíssimos clientes. Ganhava alguns trocados tocando
saxofone em bailes. Além do mais, meu tio, bom homem, tinha
de cuidar do seu primeiro filho, meu afilhado
José Gabriel. Eu morei, se não me falha a
memória, à rua Maria Eugênia, onde tirei
foto com dois amigos, minha tia Maria e o
afilhado. (Foto abaixo). |
Debruçado no peitoril da janela desta casa, eu ficava vendo
os trens indo e vindo: os de carga; o misto; os expressos S1
e S2; os rápidos R1 e R2; os noturnos N1 e N2. (O noturno
não o via porque estava dormindo). Naquele tempo, o bairro
Benfica era movimentado entroncamento ferroviário: o
Xangai, que levava operários para a fábrica de
pólvora, logo ali; o ramal de Lima Duarte,
cujo trem ia para lá, era o MJ ou
Penido. Não me perguntem por que tinha este
apelido! Ainda ao lado da via férrea via-se a cooperativa de
produtores de leite. Tudo era difícil para nossa família. Só
Deus sabe o duro que passamos.
No período que morei em Benfica, pegava uma condução às
cinco da manhã para chegar ao Colégio, as seis; esperar as
sete, para o início das aulas. Imaginem que nesta data,
1952, o asfalto terminava no posto
de fiscalização que ficava em frente à estação ferroviária.
O povo chamava a fiscalização de Tábua. Atrás desta tábua,
um grande armazém de secos e molhados.
Saindo de Benfica, na direção da cidade de Juiz de Fora,
ficava a fazenda dos Barbosa e, na direção
de Barreira do Triunfo estava a fazenda de Miguel
Marinho, cujas belíssimas filhas (pareciam misses),
causavam o maior furor entre os rapazes, nas festas dos
povoados circunvizinhos: Paula Lima, Dias Tavares,
Barreira, Chapéu, Ewbank da Câmara, Igrejinha e
outros. Foi nesta data que comecei a fumar, beber e farrear
(socialmente falando). Estava com dezoito anos, queria me
afirmar. Adolescência é assim mesmo.
Quero deixar registrado um nome que jamais desapareceu de
minha mente: meu colega de classe que se chamava
Fernando Fonseca Lima. Morava numa fazenda na
direção de Igrejinha, no ramal de Lima Duarte. Seria a
fazenda Saudade? Fernando (seria ele filho ou neto de
Delfina Fonseca Lima?). Ele e eu tínhamos
sinergia; ele era diligente e inteligente aluno. Nós dois
sempre disputávamos as melhores notas e para meu desconforto
ele sempre ganhava de mim, mas não fazia alarde disto. Pois
bem, o pai de Fernando era seu Eitinho ou Edinho;
o nome certo, não sei. Fernando, um dia, me apresentou sua
prima Marília que beleza! Foi um relâmpago
e eu me apaixonei por ela. Onde andará Marília, hoje? Não
sei, mas gostaria de saber, de vê-la. Não é por nada, não, é
só saudade do que não aconteceu. Na verdade, na verdade, vos
digo: foi a mais bela que já vi. Na época em que residi em
Benfica, adoeci gravemente e por longo tempo tomei injeções.
Hoje estou convencido de que adoeci de fraqueza.
Voltando a Fernando, nós frequentávamos o cineminha
da FEEA, acho que se chamava cine
Auditorium (onde assisti Ben Hur, em preto e
branco); bem como, frequentei a biblioteca. Foi nela que li
a coleção inteira de Tarzan, de Edgard Rice Burroughs.
Também li Pimpinela Escarlate; Visconde de Bragelone, de
Dumas e outros romances, como:As Minas de Prata; Iracema;
Tronco do Ipê, de José de Alencar. Chorei de emoção por
Cosette e Marius, heróis de Os miseráveis, de Victor Hugo.
Frequentei poucas vezes a igreja católica de Benfica, nem
sei qual o seu padroeiro, porque sendo católico, meu colégio
metodista, não incentivou minha religiosidade, pelo
contrário. Hoje, nem sei o que sou...
Pena que nunca mais vi Fernando Fonseca Lima. Depois soube
que morrera em desastre de carro na serra da Mantiqueira,
pouco depois de se formar em engenharia. Que sua alma
repouse em paz!
Continuando a lenga-lenga sobre Benfica na minha vida,
frequentei um bar no início da rua Martins Barbosa,
com meu amigo Didinho (Jair Moreira
de Novais), assistindo-o jogar horas a fio, sinuca.
Que chatice !!! Detesto sinuca. Didinho, meu amigo de
infância e na adolescência. Nunca tivemos divergências
insanáveis, passeamos e divertimos a valer; depois, cada
qual seguiu o seu destino, sendo o dele mais trágico do que
o meu. Amigo Jair, eu tenho saudade de ti, tens guarida em
meu coração. Participei de batalha de confete: aquelas
festas que antecediam o carnaval. Ouvi muito reco-reco, na
rua que hoje fica atrás da praça principal de Benfica.
Uma família simbólica foi Negra (que era branca), casada com
Francisco e que tinham duas filhas
Sueli e Neuza. Esta última foi secretária
particular de Itamar Franco, em toda sua
vida de político. Ele que foi tudo, citando-se: prefeito de
Juiz de Fora, governador de Minas, deputado, senador,
embaixador e Presidente da República.
Na área de uma várzea, meu tio Joaquim Minga tinha algumas
casinhas e queria que os locatários as desocupassem. Diante
da resistência deles, um dia tomou um fogo e foi a eles. Ao
lado, num terreiro, uma moita de cana. Ele sacou do revolver
e disse: “Meu revólver gosta de chupar cana”. Descarregou-o
na touceira. Nunca vi advogado mais eficiente num despejo,
pois, no dia seguinte seus temerosos clientes se mudaram. Se
a moda pega...
Na rua Martins Barbosa tinha uma padaria tradicional, cujo
nome do proprietário esqueci e que era pai de belas filhas,
morenas. Afora os nomes citados, um só, um único nome
permaneceu vivo em minha mente: José Soldado,
que tocava na banda de música Euterpe de Santa
Cecília, de meu tio Agostinho Almeida.
Não fiquei o ano inteiro (1952) em Benfica. Por motivo de
minha doença, fui morar com outros parentes, no
bairro Fábrica, onde me medicava numa farmácia bem
pertinho. Naquele ano distante, eu me formei, isto é, tirei
o quarto ginasial que, outrora, era quase ser doutor. E aí
continuei minha vida em outras plagas, em incessante luta
pela vida e com muito sofrimento. Segui pela porta estreita,
venci; Maktub!
Talvez algum dia sintamos prazer em recordar estas
vicissitudes, também.
Virgílio (70-19 a.C.), Eneida, 1 |