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por Asséde
Paiva
(rosarense), bacharel em
Direito e Administrador. Autor de Organização de
cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro
de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do
Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo:
Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora
Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos. |
3461 acessos. |
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FOI NO CARNAVAL QUE PASSOU... |
Canta e encanta / Sereia dos lagos
Iara dos rios / Tua beleza é a própria melodia
Brota das águas / E invade a floresta em sinfonia.
(Ronaldo Barbosa) |
-Ah, pelo
amor de Deus! Não me pergunte se foi no carnaval do ano
passado. Na nossa condição, pode ter sido sim, ou há muitos
anos. Então, esta estória é atemporal, ou quando você
quiser. O tempo não tem muito significado para nós outros.
Nada é importante, ou tudo importa, depende do foco. Vale a
lembrança, mesmo que seja ruim. E sobre o assunto do qual
vamos falar, penso que é muito ruim lembrá-lo, mas que
fazer? O que passou, passou, dizem alguns sábios, e o
passado não pode ser mudado. Sobre carnavais do passado me
lembro muito bem de algumas modinhas, uma delas:
Você pensa que cachaça é água? /
Cachaça não é água não! / Cachaça vem do alambique, / E água
vem do ribeirão.
Mas esta canção não é mais marcante, a que mexeu com minha
vida, a que mexe até hoje e me dá arrepios de ira e desprezo
é esta: Vem odalisca pro meu
harém. / Vem, vem, vem / Faço o que você quiser / Pelas
barbas de Maomé, / Não olho mais pra outra mulher.
Tudo, tudo, marchas, sambas, sons de tamborins, reco-recos,
agogôs estão retumbantes em minha mente. Arlequins, pierrôs,
colombinas e outros mascarados são personagens que não
esqueci, bem como ainda passam dançando em minha mente. O
desfile de encerramento com os ranchos, sociedades e os
fogos, maravilha. Vou contar passo a passo o drama que vivi.
Primeiro quero dizer que os carnavais de antanho (gosto
desta palavra antiga) eram diferentes dos de hoje. Tínhamos
preliminares que eram os bailes e as ‘batalhas’. As batalhas
eram de confete, serpentinas e instrumentos músicos. E a
multidão ia daqui para lá, de lá pra cá, na mesma rua, no
mesmo diapasão, cantando, rebolando, dançando. Os mais
abastados jogavam lança-perfume nas moças. Alegria
contagiante, sem dúvida. E assim, no vaivém da
multidão compacta, ululante trocávamos olhares com as moças
mais animadas e mais bonitas, sendo que as mais feias
ficavam no ‘gelo’. O mundo é assim mesmo: Os vencedores e os
vencidos e ai dos vencidos! Uns galãs tinham várias
namoradas e flertes; os outros o descaso, nenhum flerte.
Eram os excluídos da sorte. Bem, eu estava entre estes
últimos, até à meia-noite. Só, muito só e já dispunha a
ir-me embora, quando uma bela morena de olhos
verde-esmeralda passou por mim e me deu aquele olhar de
viés, convidativo, brincalhão, amoroso e sensual.
Sorridente, aproximei-me e ensaiei passos de malandro. Ela
correspondeu e brincamos até as duas da matina, depois fomos
para um canto, trocamos beijos e juras de amor. Era
paixão à primeira vista e ao som dos agogôs, com
seu metálico tá, tá tá, to, to,
to; ganzás e seu
xeque-xeque; reco-reco e o estridente
querequexé;
ici, uc; ici, uc; ici, uc (das cuícas); os
tic-tunc, tic-tunc
(dos pandeiros) consumamos o conúbio, na reentrância de um
portão. Quando ela foi embora me deu seu nome Geni e o
respectivo endereço. Voltei a encontrá-la muitas vezes e
nosso namoro firme, firme como rocha. Pensava em me casar.
Sério... Que tolo que fui! Porém, pensar não é realizar;
muita coisa estava para acontecer e entre nós interferiria
nada mais nada menos que meu primo e amigo Jair (abro
parêntesis: Eu e Jair éramos mais do que amigos mais do que
parentes, éramos verdadeiros irmãos). Unha e carne, nós
frequentamos várias ‘batalhas’ nos bairros mais afamados da
cidade. Notei que ele tinha certa queda por Geni. Dava pra
ver que se aproximava demais, conversavam demais, sorriam
demais, se tocavam demais para meu gosto. Não era ciúme,
acho que não, mas gostaria que eles mantivessem maior
distância. E chegou o carnaval. Meu primo e ‘melhor amigo’
perguntou-me se eu iria. Disse-lhe que sim, porque minha
namorada também iria. Notei o pouco entusiasmo dele, tão
expansivo, agora ficou mudo constrangido mesmo. Meu coração
estava oprimido, sentia uma tristeza indefinível, que me
pedia que não fosse. Não dei ouvido à fala interior e,
apesar das sombras, fui de palhaço. É isto, acho que minha
fantasia era a que eu merecia: palhaço. Meu primo foi de
pirata (muito conveniente, como vi depois que tudo
aconteceu), aliás, a modinha de sucesso na época era o
Pirata da perna de pau: Eu sou o
pirata da perna de pau / Do olho de vidro / Da cara de mau.
/ Minha galera...
Tudo parecia conspirar para o acontecimento grotesco que
arrasou minha vida. Na folia momesca não vi minha namorada
“talvez estivesse no corso”. Naquele tempo o corso de autos
era usual. As moças, na boleia dos jeeps, ou caminhões, com
pernas de fora (ai de quem as alisasse), jogavam serpentinas
e confetes nos rapazes, à espreita nas calçadas, com olhos
cobiçosos. Embora Geni me garantisse que compareceria
certamente, não a vi e também desaparecera meu
‘primo/irmão’. Passei dois dias procurando os dois pelas
ruas, bailes, nos blocos, cordões e entre foliões; nada. Mas
eis que chega o fatal terceiro dia. Meu primo, o pirata,
reapareceu com uma elegantíssima e misteriosa odalisca que
segurava pelos quadris. Ele encharcava o lenço com
lança-perfume e chegava ao nariz para ficar doidão.
Ela, saracoteante, com o rosto inteiramente coberto por
máscara de falsos brilhantes e mantilha sobre a cabeça, que
lhe cobria os cabelos, sem que se soubesse se eram negros,
ou louros. Um diadema firmava o véu sobre eles.
Viam-se apenas os olhos verdes da cor de esmeralda. O
coração não se engana, reconheci debaixo daquela fantasia e
das lantejoulas minha Geni. Então era isto, enquanto a
procurava, ela se esbaldava, se divertia com o pirata.
Traidores... Foi demais para mim, fingi ignorá-los e
enfurnei no primeiro botequim reles, que se me deparou, onde
pude afogar minha dor em sucessivos goles de rabo-de-galo.
Fiz dessa bebida o néctar que enxugava minhas
lágrimas. E bebi até cair. O vendeiro condoído
deixou-me ao canto e quieto fiquei, em coma alcoólico, dois
dias. A folia findara há muito, O aguaceiro de quarta-feira
de cinzas (ou de quinta-feira), sabe-se lá, ensopou-me e
serviu para me tirar do torpor, quando então levantei aos
trancos e barrancos, tomei o caminho de casa, pegando o
primeiro trem de ferro. Cheguei a estado de mendigo da
Cornualha, com barba hirsuta, crescida. Minha barba crespa e
negra me dava ares, sim, de um pirata miserável. Meu primo,
o ladrão de meu amor, morava comigo, no mesmo quarto, em
nossa casa. Ele tinha vindo da guerra e provisoriamente, até
que achasse um destino, pedira e ficara, por favor, com a
gente. Ele trouxe como butim um rifle/fuzil americano e uma
Luger P08, alemã e muita munição. Eu, em casa, curtindo
minha carraspana, meditei, pensei em me vingar, mas como?
Selei minha mula e fui ao arraial, próximo à nossa fazenda,
levando comigo um punhal e a Luger. Estava para o que desse
e viesse. Devia ter ficado quieto em casa, meu Deus!
Quanta asneira faz um homem. Lá, naquele povoado,
mandei abrir uma garrafa de conhaque São João da Barra, bebi
sem parar, trago após trago: um funil. Infelizmente, tinha
ao meu lado um pinguço, um joão ninguém, um parvo cujo
apelido era macaco. Macaco era uma esponja, virava copo liso
de cachaça, sem fazer careta. Por fim, resolveu me provocar
dizendo que eu não sabia beber, era fraco, não era de nada
etc. Sem pensar no ato, meio que ensandecido, levei a mão ao
punhal e tentei matá-lo. Para sua sorte, o punhal veio com a
bainha e nada mais consegui do que lhe fazer mossa.
Terceiros intervieram e tudo serenou. Meu coração era só
ódio, meu destino estava selado e algo de muito ruim estava
por vir. Maktub. Iniciei o retorno a casa. Nossa fazenda
confrontava com a de tal Aníbal (italiano) e péssimo
vizinho. Um córrego era a divisa que nos separava, mas ele
teimava em desbarrancar nosso lado para acrescer no dele.
Tivemos muitas discussões por causa desses centímetros de
terra. Não era pela terra; sim, pelo desaforo.
Nossas famílias tornaram-se inimigas figadais como se diz
por aí. Pois bem, vinha eu voltando agitado pelo
acontecimento no arraial, bêbedo como gambá, quando um carro
Ford bigode tentou me atropelar (Só havia um carro no
arraial). Foi deliberado, porque a estrada naquele local era
reta, retinha. Era o Aníbal. Não pensei duas vezes, saquei a
Luger e atirei. A bala entrou no bagageiro e foi parar no
motor, que emperrou de pronto. O carro serpentou na estrada
e foi pro buraco, uma vala longitudinal à estrada. Esporeei
a besta e voltei a casa, furioso, resolvido a acabar com a
família do carcamano. Em casa, estava apenas minha mãe.
Entrei no quarto, embainhei uma lapiana, enrolei-me na capa
Ideal (de boiadeiro), pois estávamos nas águas, o tempo
muito chuvoso, peguei o fuzil de guerra, pus a sacola de
balas ao ombro, no espelho me vi garboso. Ia sair, meu primo
chegou, entrou no quarto e assustou-se com meu parecer.
— Que é isto, mano?
Ele me chamava assim, com carinho. Cheguei meu dedo no seu
nariz:
— Você é um amigo urso!
Ele empalideceu, gaguejou, tartamudeou:
— Que foi que fiz?
Respondi ao tratante:
—Você me traiu com minha namorada! Saia da minha frente
antes que cometa uma besteira! Você é fdp, nem sei por que
não te mando pro inferno, agora!
Empurrei-o contra nosso guarda-roupa e saí sem mais
delongas. Ele ficou aparvalhado, branco como papel.
No alpendre, minha mãe apelou:
— Filho, o que pensa em fazer!? Respondi:
— Já matei um (pensei que matara Aníbal), agora vou acabar
com o resto da família. Nem precisava dizer qual. Ela
ajoelhou e me implorou, em nome de Deus, que desistisse do
intento. Abri o portão, virei as costas para ela e segui à
frente. A menos de quinhentos metros era a linha do trem e
uma porteira de ferro a separava de nossa estrada vicinal.
Neste instante, três homens, todos bem armados, passaram
pela porteira com triste ranger, e vieram e minha direção.
Reconheci Aníbal, vivinho da silva; o irmão e um estranho,
possivelmente o delegado. Carabinas engatilhadas, mãos nas
cinturas, certamente nos revolveres. Azucrim soprou no meu
ouvido: “mate, mate”! Não pensei duas vezes, nem tive
escolha, atirei seguidamente com o fuzil e os três feridos
ou mortos, caíram na lama da estrada. Desviei-me e entrei
numa vereda, estava na linha férrea. Pulei em cada dormente
até o pontilhão. Embaixo as águas rugiam e bramiam em
turbilhão contra as pedras. Aí, sentei na coluna de
sustentação dos trilhos, na ponte. Surtei e me senti
perdido, num beco sem saída. Matara três e perdera a
namorada. Minha alma, ferida, pedia descanso. Ouvi o apelo
deIara : Pula! Pula! Pula!... PULEI..
Precipito-me, no ímpeto de
esposo,
Na desesperação da glória suma,
Para a estreitar, louco de orgulho e gozo...
Mas nos meus braços a ilusão se esfuma:
E a mãe-d'água, exalando um ai piedoso,
Desfaz-se em mortas pérolas de espuma.
(Olavo Bilac)
Devo dizer que Jair e Geni consorciaram e foram felizes para
sempre...
FINIS |
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publicado no Benficanet em 03/08/2011 |
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