De manhã, ainda havia muita névoa pelo chão, quando
Juca (apodo J) se levantou, lavou o rosto emagrecido e viu que a barba
crescera em redemoinho no rosto crestado. Alisou o queixo e pensou:
“Preciso fazer esta barba embranquecida e muito feia”. Notou isto com
certa tristeza, pois ainda se considerava jovem, mas não o era tanto
quanto pensava. Ele era magro, e a pele seca estava enrugando, talvez
fosse por ter vida duríssima no campo, sob o sol e chuva. Tomou café
amargo, pois há muito não tinha dinheiro para comprar açúcar e detestava
café com garapa. Pegou alguns biscoitos para roê-los no caminho. Não
iria trabalhar hoje, mas papear. Estava tão debilitado que precisou se
apoiar pesadamente na bengala encastoada de prata. Trancou a porta com
trinco externo e caminhou curvado, trilha afora até à estrada vicinal, a
quinhentos metros de sua casinhola. Se alguém o observasse atentamente
veria um ligeiro tremor a lhe sacudir o corpo. Devagar, “caidaço”, quase
se arrastando, chegou à beira do córrego, que era na divisa do seu
terreno com o do compadre Zeca (Zé).
O “corguinho” sumia num matagal, em preciosa curva,
lavando uma prainha de areias branquinhas. Em tempo de chuva, não
existia praia.
Do lado de lá do riacho, seu companheiro Zequinha ou
Zé, para os íntimos, levantou a cabeça para vê-lo melhor.
Zé estava sentado num toco apodrecido, na cabeceira
da ponte tosca.
Juca ou “J” atravessou a ponte retorcendo o corpo
magérrimo, onde pespontavam algumas costelas e, por detrás as pás a
espinha ondulante. Seu peito enfisematoso se projetava.
– Bom dia, compadre Zé! Como tem passado?
E foi se sentando na touceira de capim-mumbeca, ao
lado do amigo.
Zé – Bom dia, compadre Juca! Já cheguei há tempos,
não dormi bem esta noite, pensando, revirando, pensando... Aí, vim ainda
madrugada.
O compadre Zequinha estava sentado num cupinzeiro
amuado por formicida.
Zé tremia como vara verde. Na tábua da beirada
parecia estar. Também portava uma bengala, de pau-marfim. Era um pouco
mais velho do que compadre Juca.
“J” – Compadre, como vai de tremura?
Zé – Esta sezão vai me matar, estou me sentindo mais
fraco dia a dia... Mas tá dando febre até nos “pau”. Lhe digo que
invadiram meu galinheiro esta noite.
“J” – Como assim? Que bicho que foi? Matou muitas
“penosas”?
Zé – Não, roubou seis e sei que foi raposa de dois
pés.
“J” – Espere aí compadre, não gostei deste seu modo
de dizer, é indireta? “Ocê” tá me acusando, me insultando? Pra quem sabe
lê um pingo é letra...
Zé – Deus me livre, compadre! Cê é “homem de bem”,
não é? Ai, ai! Estou tonto, morrendo!
“J” – Não já, eu preciso lhe falar... Contar um
segredo que me traz pesadelos.
Zé – Diga homem, diga! Que sou todo ouvido.
“J” – É que há tempos... Parou como se indeciso
continuar.
Zé – Fale compadre, o que quiser; se for da minha
pertença, vou relevar e achar uma solução.
O compadre Juca vacilou e resolveu mudar a direção da
conversa, por ora:
“J” – A seca este ano está braba... Eu vi um bando de
maritacas voando para melhores paragens, à procura de lugares amenos,
salubres. Não ouvi à noite o cricri dos grilos. A serração está baixa.
“Serração embaixo, sol que racha”. É a seca compadre. Nosso sertão vai
pegar fogo.
Zé – Sim, a poeira nos envolve e até cobriu os móveis
de Ritinha, minha mulher... Ocê sabe, ela tinha tanto ciúme deles,
principalmente da cama coberta com lençol de linho, branco, que agora
passou a amarelo.
“J” – Sei, sei, eu até lhe visitei algumas vezes e
tudo era tão limpinho, se mal lhe pergunto, que é feito de comadre
Ritinha? Bateu o trinta e um?
Zé – Sumiu compadre, sumiu na cortina da poeira. Um
dia eu mal me levantei dei pela falta dela. Ah, minha mulher com seus
encantos... Suas formas, ah, Ritinha...
“J” – Eu até andava “ispiculando” sobre a terra “espaiada”
na entrada da matinha. A cruz no batente da porta... Fiz mau juízo “docê”,
palavra de honra.
Zé – !!!! Cuidado, a “palavra” têm força.
“J” – Também “oceis” andavam às turras, compadre...
Já que falamos nisso, preciso adiantar minha confissão...
Zé – Sei que “ocê” tinha uma queda por ela, não é?
Aquelas ancas, o traseiro, a bunda...
Demonstrou enorme agitação ao falar, e firmou a mão
na bengala, que estava pousada no pé do amigo.
“J” – O que tenho a dizer é vergonhoso para mim. Uma
vez, “cê” estava doente com quérquera, e fui lhe visitar. Lembra?
Zé – Sim, sim, eu me lembro muito bem...
“J” – “Ocê” variava com a febre Terçã.
Zé – Mas não perdi o tino, compadre.
“J” – Não perdeu?!
Zé – Não! Vi tudo, tudinho... “Cê” não dá ponto sem
nó. Ritinha estava uma brasa, olhando de viés... Convidativa.
“J” – É mesmo?!
Zé – Daí aconteceu entre “oceis” o que devia de
acontecer...
“J” – Ela se engraçou comigo, parece que “ocê” não
“usava” ela, não dava assistência... “sacumé”... A carne é fraca.
Zé – O que se deu na cozinha da minha casa foi uma
afronta, um agravo à minha pessoa.
“J” – Então sabia?
Zé – Sou doente, mas não sou burro! O bom cabrito não
berra.
“J” – Compadre, a sua bengala está machucando meu pé.
Zé – Desculpe, mas a sua está cutucando minha
costela.
“J” – Então, tome mais esta, mais esta e esta.
Zé – Vou lhe quebrar o quengo, seu patife e vingar
minha desonra! Pá, pá, pá, pá, na cabeça de Juca.
E Juca devolve: pam, pam, toc, toc, toc..., nas
costelas e outras partes nobres do Zé.
Os brigões, zonzos, enfraquecidos, sangrando caíram
no córrego e continuaram na medida de suas forças: pá, pam, toc, pá, pam,
toc... pam... toc. Se esbordoando.
E o sangue turbava a água límpida.
Desapareceram nas canavieiras, na curva do riacho.
Tempos depois, as bengalas foram encontradas no
matagal. Os “bengalinhas” jamais foram vistos.
Há quem afirme que “Não-sei-que-diga” os levou para
as areias gordas.
Povo linguarudo... |