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Contos Contados - 15/05/2019 |
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NAR-ANON
por Asséde Paiva
publicação oficial em Novembro/2018 |
1299 acessos |
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N ar-Anon ajeitou a toalha sobre a
mesa com extremo cuidado. Era toalha de linho bordada com caracteres
estranhos: longas linhas terminando com cabeçote lembravam cobras ou
espermatozoides; triângulos, réguas, compassos, esquadros; quadrados e
retângulos; espirais; círculos concêntricos; flores-de-lis; tridentes,
monstros, e outras formas.
Nar-Anon tinha muito orgulho de sua toalha. Ele mesmo
criara os desenhos e a dera a uma bordadeira para perpassar linhas de cores
diversas sobre eles, dando-lhes relevo necessário.
Nar-Anon dispôs cuidadosamente garrafas de bebidas no
centro da mesa. Havia de tudo: licor, conhaque, vermute, cachaça, vinho
tequila, vodca, uísque, cerveja e refrigerantes. Agora, era só esperar pelos
convidados. O dia, melhor, a noite prometia ser inesquecível.
Nar-Anon olhou para o canto da sala e sorriu estranho.
Havia um monturo naquele canto coberto de lona. Ele sabia que era resto da
obra de reconstrução da sala: cimento, areia, terra, entulhos diversos e uma
pá.
“Não vou precisar disso”, pensou.
Nar-Anon era riquíssimo. Depois de muito contrabando de
pedras preciosas; depois de distribuir muitas drogas; ele estava arrependido
e queria resgatar-se do mal que tanto cometera. Ele queria levar seus
colegas para o bom caminho...
O primeiro a chegar foi Ed, um alcoólatra inveterado que
o cumprimentou e sentou-se. Quando viu a quantidade de bebidas, passou a
língua nos lábios, pois estava com sede, e a máquina precisava de
combustível. Ed era funcionário público com caráter flexível. Costumava
dizer que a prefeitura onde trabalhava fingia lhe pagar e ele fingia
trabalhar. Meia verdade, porque o salário estava em dia, mas ele ia poucas
vezes trabalhar, deixava o paletó permanentemente na cadeira. Por outro
lado, trabalhava arduamente para limpar os nomes daqueles cidadãos que eram
multados. “A vida é dura”, costumava dizer com ironia. Também era agiota e
gostava de cheirar e de vender drogas.
Nar-Anon vislumbrou o desejo de Ed e esboçou fino sorriso
de mofa:
–– Sirva-se à vontade! Faça drinques como quiser, eu
recomendo um daiquiri.
Animado pela oferta, Ed pegou a garrafa de rum, despejou
medida avantajada no copo de cristal, cortou um limão, espremeu-o e jogou
longe os restos. Pegou o açúcar na medida quantum satis, sacudiu a
mistura e virou quase de um gole a bebida. Realmente ele era uma esponja.
Quase simultâneos chegaram Ferraguti, Praga de Mãe e Toco
de Açougue.
Precisamos explicar:
Ferraguti era magro, pálido, cara manchada de sífilis e
mal-ajambrado. Sem dúvida, tímido, introvertido e de aspecto feminino. Era o
rei do tráfico de armas. Praga de Mãe era, pelo contrário, expansivo, muito
gordo, com testa larga e de aparência violenta. Era comandante do tráfico de
cocaína em todas comunidades daquele país maravilhoso. Toco de Açougue,
baixo e atarracado, seu apelido adviera do fato de ter aparência dum barril.
Tinha e cabeça desproporcional em relação ao tronco, era o rei dos cassinos
e da prostituição.
Todos se assentaram após os cumprimentos de praxe.
Aí entraram belas moças, com roupas transparentes,
trazendo petiscos finíssimos e sentaram-se ao colo dos convidados.
Conversa vai, conversa vem, as meninas enchiam copos,
taças de licores, faziam drinques e os despejavam boca abaixo dos convivas.
Algumas mordiscavam os petiscos e punham metade deles na boca do seu par.
Nar-Anon só observava, enquanto bebia água mineral.
–– Por que estou aqui? perguntou um deles. Que negócios
queres propor ao pessoal?
Nar-Anon falou:
–– Eu sou grão-copta, muito poderoso, tenho ajudado os
drogados a cuidar de sua saúde, largar as drogas, outros a parar de apostar,
outros mais a deixarem de frequentar prostíbulos, porque todos viciados não
só infelicitam suas vidas até à morte, como também desestruturam famílias,
agridem pais, abandonam filhos e irmãos, enfim perdem o que têm e o que não
têm. Eu acho que perdi a guerra, as vítimas não querem se tratar, por isso
decidi que vocês são “o problema”, convidei-os para uma mea culpa, já
fiz a minha, eu tenho tesouros a oferecer e quero fazer uma proposta
irrecusável: deixem o crime, tornem-se homens de bem. Terão o maior
prêmio... de suas vidas.
Ed falou:
–– Nem quero pensar, não estou interessado, gosto da vida
que levo e não me importo se pessoas estão ou não aprovando o que faço. Se
morrerem ou não pelo vício, é problema deles. Se quiserem ficar chapados, se
danem! Ponto final, fim de conversa.
–– OK, você falou por todos, disse Ferraguti. Eu
sou traficante de armas e ganho muito dinheiro: guerra é guerra, não vou
parar, tenho milhões, mulheres e milícia que me protege. Não me interessa
mudar de vida.
–– Bravo! Falou Toco de Açougue. O jogo é jogado, meus
meninos e meus soldados me protegem nas comunidades. Por que mudar o que
está dando certo?
Praga de Mãe aquiesceu com leve inclinar de cabeça.
–– Tudo bem, disse Nar-Anon, não quero forçar a barra,
meus senhores. Nosso encontro termina aqui, vejo que perdi tempo com vocês.
Vou lhes passar um envelope lacrado para abrirem em casa, é um presente
definitivo sobre nossa reunião, são conselhos de bem viver.
Os convidados se foram sem se despedirem, deixando o
anfitrião só com seus pensamentos. Ele sorria enigmático.
Cada um dos bandidos levou o envelope lacrado,
respeitando o pedido do hospedeiro, e cada um deles rindo interiormente da
estúpida proposta.
“Rá-rá-rá... nós homens de bem”.
E jogaram o envelope na primeira lixeira à vista. Somente
Ed, o mais curioso, levou o envelope. Antes de se deitar, resolveu abri-lo.
Dentro havia um bilhete com os dizeres:
“Você recusou minha proposta. Era o presente da sua
vida... a vida. Envenenei as bebidas, o veneno já está agindo, é ricina.
Você terá febre e coriza; ficará paralisado e morrerá lentamente em 36
horas. Se tivesse aceitado minha proposta de se tornar um bom homem, eu lhe
daria a medicina certa; agora, é tarde, boa... viagem” Nar-Anon.
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English version |
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N ar-Anon stretched
the tablecloth over the table with utmost care. It was a linen
tablecloth embroidered with odd-like characters: long lines ending by
headings that would remind you of snakes or spermatozoa; triangles, rulers,
drawing compasses, bevel T-squares, proper squares or rectangles, spirals,
concentric circles, fleurs-de-lis, tridents, monsters, and other assorted
shapes.
Nar-Anon was very proud of his tablecloth. He had
drawn the figures himself on charcoal and gave them to a good embroiderer
for her to stitch many-colored silk threads over them in order to endow the
drawings with the necessary relief.
Nar-Anon carefully place liquor bottles on the center of
the table. There was a little of everything: liqueurs, brandy,
vermouth, moonshine, wine, tequila, vodka, whiskey, beer, and several kinds
of soda. Now all he had to do was waiting for his guests. The
day, or rather the night, promised to be unforgettable.
Nar-Anon stared at a corner in the dining-room and
smirked with a strange smile. There was a sort of a canvas-covered
heap on that corner. He knew well these were the leftovers from the
renovation of this room: plaster, sand, dirt, several kinds of rubbish, and
a shovel.
“I will not need that,” he thought.
The first guest to arrive was Ed, an incurable alcoholic
who saluted him and took a seat. When he gazed at so many liquor bottles he
licked his lips for he was already thirsty and his internal mechanism needed
fuel. Ed was a public servant on a flexible timetable. He used to joke
that the Town Hall he worked for pretended to pay his wages and thus he
made-believe he worked; that was plainly a half-truth as his payment was
timely, but he rarely did his chores, he permanently left a coat over the
back of a chair behind his desk. On the other hand, he worked very hard to
wipe out for a compensation the registers of fines set to citizens. ‘Life
is hard,’ he ironically quipped. He also lent money on high interest
and liked to sniff and to sell drugs.
Nar-Anon considered Ed’s need and showed him a thin
jeering smile,
“Help yourself as much as you want! Prepare
cocktails at will, I recommend a daiquiri.
Encouraged by the offer, Ed took the rum bottle, decanted
a generous measure on a crystal glass, cur a lemon in half, squeezed the
juice in and carelessly tossed the rinds away. Then he spooned sugar quantum
satis,shook the mix and drank it almost on a swallow. He was really a
sponge.
Almost together Ferraguti, Mother’s Curse, and Butcher
Bone arrived.
Now we have to do some explaining,
Ferraguti was skinny, pale, his face blotted from
syphilis and badly-dressed. He looked shy, self-centered, and
effeminate. Nonetheless, he ruled over the traffic of weaponry.
Contrariwise, Mother’s Curse was expansive, rather fat, sported a broad
forehead, and seemed to be a rather violent man. He bossed on the coke
trade. Butcher Bone was short and stocky and with a rather barrel-like
appearance. His head was disproportionate to his body and he was the king
of illegal gambling and prostitution.
All of them took seats as well, after the usual greetings.
Then a few gorgeous girls arrived, sporting see-through
clothes. They brought trays with the best snacks, set them on the table and
sat themselves on the laps of the guests.
Smalltalk all around, the girls filled the glasses and
the liquor goblets, prepared cocktails, and emptied these down the guests’
throats. Now and then they bit on the snacks and stuffed the other
half on their mates’ mouths.
Nar-Anon only observed the scene, while he drank soda
water.
‘Well, why am I here?’ inquired one of them. ‘Do you
have some business to propose us guys?’
Nar-Anon spoke,
‘I am the Great Copta, rather powerful. I have been
helping drug-addicts to look after their health, to drop drugs, others to
stop gambling, others to quit attending whorehouses, because all those on
vices not only bring unhappiness to themselves to death, but also destroy
their families, fight against their parents, stop caring for their children
and siblings, in a word, they lose whatever they have and even that which
they have not. But I feel I am losing this war, the victims won’t care
for a treatment, therefore I decided that the lot of you are “the problem”;
that’s why I invited you all here for a mea culpa, as I have
treasures to offer and I mean to present you with an irrefutable proposal:
leave the crime, turn into upstanding citizens. You will get the largest
prize of all… that of your own lives.
Ed spoke,
‘No dice, my man, I am never interested on that, I enjoy
the life I am leading and I don’t give a damn whether people approve of me
or not. If kids die of overdoses, that’s their problem. If they want to go
on trips, tough on them! Period, we are done here.
‘OK, you spoke for the bunch of us,’ said Ferraguti.
‘I do my business with weapons and make a lot of money from it. War is war,
I am not quitting, already earned millions, have all the women I want and a
strong militia to protect me. Really have no interest into mending my ways.’
‘Bravo!’ spoke Butcher Bone. ‘I control my
gambling spots all over the town, my boys and my soldiers protect me in all
communities. Why to change something that is turning out so well?’
Mother’s Curse acquiesced with a short nod.
‘All right,’ said Nar-Anon, cannot push you out, can I?
Therefore our meeting is over, I feel I just lost my precious time with
you guys. All the same, I will give each of you a sealed envelope and
expect you to wait and open it where you reach your headquarters. This is
my definite gift to foreclose our meeting and presents you will some
counseling on the best way to lead your lives.’
The guests left without as much as a goodbye, and the
host stayed alone with his thoughts. He had an enigmatic smile on this lips.
Each of the bad guys was happy to pick up his own sealed
envelope, out of respect for the host’s request, but guffawing inside
themselves from the stupid proposal.
‘Ha-ha-ha!... Us, becoming upstanding citizens…’
Three of them dropped their envelopes on the first dumper
around. Only Ed, the most prying of the lot, took his own home. Before
going to bed, he chose to open it. It contained a single note that
read,
“You refused my proposal. It was your life on stake…
your life. The drinks were poisoned and the poison is already acting inside
you. It is a ricinoid derivate. You will soon experiment high
fever and nasal running, then you will get paralyzed and will die a slow,
painful death during the next 36 hours. Had you instead accepted my
proposal of amending your ways and turn into a good man, I would have given
you the antidote which to function was to be administered on short notice.
Now it is already too late, goodafter...” Nar-Anon.
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