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Contos Contados -
23/10/2019 |
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ETERNO RETORNO
Asséde Paiva
Trilogia:
A PENSÃO DA DONA ASSUNTA - falamos que viver é lutar;
ACERTO DE CONTAS - falamos da morte;
Renascimento - falamos da vida na espiritualidade.
Sobre a imagem
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Trilogia autobiográfica de Asséde Paiva tem
imenso valor literário.
O escritor Asséde Paiva tem inúmeros trabalhos e
a verve “contadora de história” é, para usar a expressão mineira,
naturalidade do escritor, como cachaça boa: melhora com o tempo.
Dono de uma escrita primorosa, em seu livro Brumas de História, ao
melhor estilo de Euclides da Cunha, mostra na narrativa acadêmica
sobre a história do povo cigano no Brasil um traço literário de
altíssima qualidade. A história é uma ciência que o cativa, já tendo
escrito sobre o Presidente JK, em livro que traz, também, um poema
dedicado à Brasília, do grande escritor da região, José Fleming,
amigo e companheiro de GREBAL, de Paiva. Asséde nos versos
aventurou-se de forma bem-sucedida no cordel “Rosa, a ciganinha” e
também em parceria com o saudoso escritor Ronaldo Gori, em
“Máscaras”.
O conto é um gênero que Asséde domina e
reinventa. Em estilo todo próprio, gosta de humanizar personagens
inanimados. Tal estilo eu conheci lendo o conto “Ludopédio”, onde a
paixão pelo futebol, característica de nosso povo, se realiza com
personagens intergalácticos, míticos, enfim, entretém e ensina. Com
seu conto “Portumática”, concorreu ao concurso Talentos da
Maturidade em 2012. Nele, elementos da língua portuguesa ganham
vida. Já no conto “Epinome”, as figuras de linguagem da língua
portuguesa são as personagens. Neste texto, a sonoridade dos nomes
dos personagens/figuras de linguagem são um atrativo a mais. A
variação do tamanho das letras para a figura onomatopeia é um
recurso de som e imagem que sempre usa muito bem, com os “bruuuuunms”
e “cabrummns”. Mas, o que nos trouxe as estas linhas foi seu
trabalho mais recente, a trilogia de contos contida em “ETERNO
RETORNO” (2019). O conto de abertura, “A pensão de Dona Assunta”,
relata a história de um jovem inquieto que se lança ao mundo em
busca dos sonhos, do próprio sonho a ser sonhado, vale frisar, dadas
as incertezas do jovem – “O que será de mim?”, se pergunta o
personagem que, com a cara e a coragem, depois de penar e não
conseguir trabalho no Rio de Janeiro desembarca na maior capital da
América latina: São Paulo: a terra das oportunidades. Lá, com
dinheiro curto e sem rumo certo, acha certa pensão, a de Dona
Assunta, que como em “O cortiço”, de Aluízio de Azevedo, a própria
pensão é uma personagem marcante na trama. Era o que tinha para o
momento. De certa forma, o texto é nostálgico, no melhor sentido,
para leitores de minha geração, que, quando criança, sonhavam em ter
uma Caloi. A foto da antiga fábrica e seu na parte interna da capa é
um presente aos leitores. Pois foi na fábrica desta bicicleta que o
herói começa sua jornada. Idas e vindas, escolhas visando melhorias,
perigos de vida, tropeços, o autor-personagem filosofa que “um
tropicão serve para darmos dois passos”. O texto tem um humor afiado
usado em cenas que seriam (e foram, de certo, para ele) tristes, mas
que o afastamento temporal permite, dado o desfecho da vida, abrir
um sorriso ameno sobre os fatos que o levariam aonde está hoje.
Diante das desventuras inusitadas, toma o trem baiano em São Paulo
para desembarcar na plataforma de sua vida. O segundo conto, “Acerto
de contas”, narra sua chegada e trajetória em Volta Redonda. O texto
é direto e de ritmo intenso, típico da escrita assedeana. Nesse
ponto, parte importante da história, sempre ela, de nossa cidade
ganha o protagonismo da narrativa. Mas lembremos de que se trata de
uma obra literária, que história e estória (quando existia tal
palavra) se misturam de forma que a literatura fantástica, que o
autor faz muito bem, toma de assalto a narrativa realista (e real)
para fazer chegar certo fantasma, certo encontro com o passado e,
definitivamente, acertar as contas, abrindo as portas do paraíso, ou
do juízo, que se dá no terceiro conto, “Renascimento”, onde o
realismo fantástico toma as rédeas de vez e a tomada de consciência
da morte pela personagem nos lembra do reconfortante ensinamento
bíblico que “Todo aquele que evocar o nome do Senhor será salvo (Rm
10:13)”. O volume traz ainda as traduções dos contos para o inglês,
o que, certamente, possibilitará leitores de outras línguas a
conhecerem a narrativa afiada deste juiz-forano-volta-redondense. O
conto “A pensão de Dona Assunta” tem tradução primorosa do professor
Willian Lagos. Os três contos deixam no leitor uma imagem de lutas,
vitórias, tropeços, erros e acertos, ou seja, deixam uma lição de
vida. Quem aventurar-se por esta leitura terminará, de certo, em
paz, reconciliado consigo mesmo.
Volta Redonda, 31 de agosto de 2019.
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A pensão de Dona Assunta |
“Ninguém passa pela vida em brancas nuvens.”
“Por que existo?”
“Meu Deus! Por que voltei?”
“Era preciso voltar... após cinquenta anos sem esquecer...”
“Onde ficava a maldita Pensão?”
“Vamos viajar no tempo...”
Eu, adolescente, estava inquieto quanto ao destino e em crise existencial.
Perguntas iam e vinham sem respostas: Que será de mim? Tenho algum futuro neste povoado? Vale a pena viver?
Fiz o que achei melhor: Pus algumas roupas na mala de viagem e parti sem saber para onde ia; talvez para onde soprasse o vento. De certa forma, o caminho mais viável seria o Rio de Janeiro e, assim, peguei o ônibus para o destino escolhido: Rio.
A empresa de ônibus tinha a sigla EVA, que queria dizer “Empresa Viação Automobilística”. Quatro horas e meia após o início da viagem, desembarquei no terminal Mariano Procópio, sito na Praça Mauá. Desajeitadamente, com o malão de viagem batendo em minhas canelas, eu pisei no asfalto ao lado do Terminal rodoviário. Li o letreiro: Hotel Éden e a ele me dirigi. O hotel um mafuá de terceira qualidade, na verdade, alugava quartos para encontros de casais; seja para prostituição. O nome do hotel era mesmo apelativo. Mesmo assim, não pensei duas vezes e, graças à boa vontade do porteiro, consegui um cantinho, um cubículo para passar a noite, debaixo de uma escada que rangia a cada passo. E fiquei hospedado dias e dias. Ufa! Economizei o máximo, comendo pastéis, sanduiches e bebendo refrigerantes, enquanto procurava “colocação”/emprego em uma firma qualquer. Não consegui nada, porque mal conhecia a cidade e, quando chegava a um endereço indicado, a vaga já tinha sido preenchida. Preenchida! Preenchida! Preenchida! E assim, vinte e dois dias, se passaram e eu desisti. Resolvi viajar para a cidade de São Paulo, que, naquele tempo, era chamada locomotiva do Brasil. Embarquei na Viação Pássaro Marrom, que vendia bilhete mais em conta; e, em oito horas estava na grande metrópole. Mais uma vez, me dirigi à primeira pousada, no bairro do Brás, onde o letreiro indicava: “Vagas para solteiros”. Paguei a primeira diária e subi dois andares, segurando corrimão podre, e escada pronta pra desabar. Eu não podia ser exigente, pois a verba era curta. No mesmo dia, fui ao endereço de antigo conterrâneo que já estava na Capital havia alguns anos. A pousada dele era pior do que a minha, acredite! Na verdade, um pardieiro que ficava no subsolo de casarão colonial. Quando entrei no quarto, senti que era bastante abafado, escuro e tresandando mofo. Esperei e conversei com o “conterra”, que, embora me atendesse cordialmente, não me ofereceu nada, nem auxílio, nem refeição, nem esperança. Então, voltei ao “hotel” curtindo minha solidão. No andar inteiro, enorme, não havia qualquer divisória. Quem deitasse numa cama do lado norte, ouviria perfeitamente o rádio do companheiro noutra cama, na zona sul, eu não dormia nada. Assim sendo, fui procurar outro “conhecido”, Jairo Pimont. Havíamos nos encontrado em Ewbank, Minas, e fizemos tênue amizade. Apesar da superficial relação, corri atrás do fio de esperança. “Quem sabe de onde não se espera é que vem.” Jairo morava na Rua Tabatinguera, numa ladeira no centro da cidade. Bem recebido por ele, tomei coragem e lhe transmiti o desejo de me empregar na Capital Paulista.
Tive sorte, a firma onde Jairo trabalhava precisava de um estoquista. Sua planta ficava na Avenida Santo Amaro, no Brooklin Paulista, bairro periférico, do outro lado da cidade. No dia seguinte, fomos à fábrica que trazia o nome no topo do galpão o nome: C****. Ela fabricava bicicletas. No escritório da empresa, me apresentaram ao Chefe do Departamento de Pessoal e fui “fichado”, melhor dizendo, admitido. O gerente era B****. Num esforço extraordinário de memória, lembro-me de que o chefe da Seção de Estoque era seu Henrique, que, em tempo de carnaval, gostava de cantar a modinha que fazia grande sucesso na época:
“Você pensa que cachaça é água?
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão”.
Ou, então: As águas vão rolar (que ele achava que se devia cantar): As águas vão rolarem.
O chefe do Departamento de Pessoal indicou-me uma pensão que ficava na mesma rua, a dois quilômetros. Para ela me dirigi, com a surrada e enorme mala de viagem nas costas.
A pensão de Dona Assunta não trazia qualquer dístico; ficava pouco acima do nível da rua. Era um enorme casarão, tendo à frente frondosa figueira-branca. No Brasil Império, com certeza, fora o solar de algum barão do café; agora, uma casa carcomida, encardida, suja: Um cortiço. Removeram as paredes divisórias, criando enorme salão, para os locatários/pensionistas. Éramos vinte e quatro nordestinos, exceto um mineiro: eu, uai! Todos eles gente boa e sofrida como eu. As camas praticamente unidas; os armários mal davam para que neles se guardassem as roupas, sabonete, aparelho de barbear, pasta de dentes, escova, chinela de dedo, sapato e outras tralhas. Ao fundo, uma parede separava a cozinha e o refeitório dos hóspedes. Atrás da casa as precárias instalações sanitárias: vaso e chuveiro. A latrina não era limpa, explicando melhor, o WC era só higienizado no final de semana. Dá para imaginar o fedor que exalava, porque as fezes se acumulavam até extravasar do vaso sanitário. E cada tolete! Uma cloaca. E o xixi... Pense num piso pleno de urina. A sujeira atraia as repulsivas moscas. Asco!
E como comia a rapaziada! A mesma gororoba todo dia: arroz, feijão mulatinho, inteiro; bertalha, e um pedaço de carne de vaca: aponevrose e aparas. De manhã, um pão francês, manteiga rançosa e café. Excepcionalmente, havia macarronada nos feriados.
Dona Assunta não se importava com a qualidade da alimentação, nem com a higiene. Ela só pensava no dinheiro que entrava no cofre. Tinha de ser assim, porque ela não confiava em ninguém, e já havia tomado alguns “beiços”. Ela, a filha, a neta e o genro moravam ao lado da pensão e tinham vida simples, independente de nós, os pensionistas. Dona Assunta era vermelha, gordona, sangue italiano, gritava muito, discutia com o filho e, quando a netinha chegava perto, ela dizia: “Pinica daqui!” e a menina esfumaçava. Não eram más pessoas, absolutamente.
Como Controlador de Estoque na empresa, trabalhei três meses. Caí na esparrela de acreditar em anúncio de jornal, oferecendo vaga para Emissor de Notas Fiscais, pagando salário bem superior ao que eu ganhava. Ah, que besteira fiz! Mas quem não se arrisca não petisca, não é? Pedi demissão e fui pra a outra fábrica, que ostentava o nome O*** (processava areia monazítica). Adorei a mudança: sala com ar condicionado, e nos serviam chá quente ou gelado várias vezes ao dia. As minhas colegas, moças gentis e alegres. Na verdade, eu me sentia bem no ambiente de trabalho. Decorrido um mês e pouco, fui chamado à sala do Chefe de Pessoal da firma que, sem cerimônia, friamente me devolveu a Carteira Profissional, sem nela ter posto o carimbo da empresa, me pagou e me despediu... Simples, assim. Eu não sabia, nem me informaram que era emprego temporário. O titular retornara da licença médica, para assumir seu posto. O chão fugiu-me aos pés e as gentis funcionárias apenas me olharam de viés, e sorriso contrafeito.
Será que fiz mal em trocar o certo pelo duvidoso? Vamos pensar que um tropicão serve para darmos dois passos pra frente. Vivendo e aprendendo, tal é o lema.
Novamente, sem emprego, sem esperança, ao deus-dará, deambulei na Avenida Santo Amaro, amargo. Passei por uma banca de jornal e comprei um para recomeçar a pesquisar ofertas de emprego. Voltei à pensão de Assunta. Naquele dia, fatídico, eu e um colega de pensão ficamos sós. Primeiro, ele cismou de trocar uma camisa minha, bela e cara, por um par de sapatos; não topei; em seguida, ele me ofereceu uma lapiana em troca; recusei. Então, ele pôs a faca firme na minha garganta e me molestou. Chorei baixinho, sangrei a noite inteira... Demais para mim. De madrugada, quando as cortinas da noite se afastavam, e todos dormiam profundamente, arranjei meus trastes na mala, devagarinho e silenciosamente pulei da janela e sumi no mundo.
Lamentavelmente, não paguei à Dona Assunta. Fui para a estação Roosevelt e comprei bilhete para embarcar no trem “baiano”, de volta à minha terra, nas Minas Gerais. Passei o dia na Estação, com medo de ser pego pela polícia. O trem saiu às 20 horas.
Parágrafo para Eros, deus do amor: No vagão eu sentei-me ao lado de bela morena e iniciamos um bate-papo de sondagem e conhecimento. Soube que ela ia para Monte Azul. Conversa vai, conversa vem, logo mão na mão e amasso coalescente, nada além. Seus olhos fundos e ardentes pareciam despir minha alma.
Então, pedi licença e fui me refrescar na plataforma do vagão, enquanto descascava e mordiscava uma laranja-baia. Era madrugada, e ouvi o chefe do trem anunciar: Volta Redonda. Fim do parágrafo.
O maquinista reduziu a velocidade ao mínimo. No lusco-fusco enevoado havia um ambiente fantasmagórico, porque milhares de lâmpadas luziluziam nos gigantescos galpões que se sucediam interminavelmente. Tive um deslumbramento e pensei com meus botões: aqui deve haver muito emprego...
O apelo do destino... compulsão. Apeei na
Estação. E outra longa história recomeça... Leitores e leitoras, o que acham que aconteceu? Convido-os a relatar, com sua sensibilidade, minhas novas aventuras.
E muitos anos se decorreram, muita água marulhou sob a ponte. Jamais esqueci a Pensão de Dona Assunta. Tive no vaivém da vida grandes problemas, e grandes vitórias, vacilos incríveis... “Por caminhos ásperos se vai aos astros”. Afirmo não ser de minha natureza e de meu caráter “fintar” ou dar prejuízo a alguém. Um homem de bem não faz papel desprezível, mesquinho. As brumas da memória sempre se abriam para lembrar-me do “cano” (malfeito) que dei à Dona da Pensão, se bem que houvesse atenuante, pelo trauma que sofri. Precisava resgatar a dívida, por questão de honra. Homem maduro, e com a vida resolvida, voltei ao local do “crime”. Queria me desculpar, acertar a conta com juros e correção, todavia, o progresso seguira adiante e, onde outrora existira o casarão da Pensão havia um prédio moderno, com esquadrias de alumínio fosco, vidro fumê, e vários andares. O Brooklin Paulista do passado ficou no passado.
E Assunta... Onde estaria? Na mansão dos bem-aventurados, certo?
“Que pena! Não redimi o débito”.
Eis a minha confissão, minha catarse e meu remorso.
Que Dona Assunta tenha me perdoado e, que Deus me perdoe. ... Ah, nunca mais comi bertalha!
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Usando da licença poética a mim concedida no conto A pensão de
dona Assunta, vou assumir a mente, o corpo, alma e possuir o
confidente, enfim tornar-me seu alter ego... E contar tudo,
pedindo desculpas desde já, porque vou gastar muito mais do que as
linhas pontuadas, quando convocado fui a continuar a saga do nosso
herói. Ouçam-me, narrar a minha/dele lenda pessoal:
Poderia dizer as célebres
palavras: vim vi e venci, mas não se deu assim, tão fácil. Desci na
estação ferroviária de Volta Redonda. Era madrugada com muita
cerração e muito frio. Quando o sol brilhou no céu límpido, eu fui à
cidade velha sabendo que dois primos trabalhavam em uma sapataria
que ostentava o nome Cl****, talvez em homenagem à filha que assim
se chamava. As oito e trinta ou pouco mais chegaram meus parentes e
a eles me identifiquei, solicitando informações atinentes a algum
tipo de emprego. Eles nada podiam fazer por mim, entretanto, o dono
da sapataria, seu Geraldo, me convidou a ficar na casa dele,
enquanto eu achava emprego na grande empresa que vira ao amanhecer.
E, morando com eles, fiquei três meses, e salario zero. Não
reclamei... A vida é dura, temos que escolher o silêncio, às vezes e
engolir em seco. Este foi o meu caso, pois o interesse maior era
entrar na grande empresa de luzes tremulantes na madrugada enevoada.
Após o início de trabalho quase escravo, na dita loja de sapatos,
consegui uma vaga na siderúrgica, mediante apresentação de
carta-bilhete ao superintendente da firma. Digo: a humildade é o
caminho: Bem-aventurados os humildes. O engenheiro-superintendente
olhou-me com ar de desdém e falou: “Vou lhe dar uma vaga de servente
de fundição”. Curvei-me ao destino mais uma vez... Este local,
fundição, pode ser considerado antessala do inferno, porque é
fumaça, fogo e gás por todos os lados. Comecei a trabalhar com as
ferramentas que me deram: um par de luvas, uma máscara contra poeira
e uma pá. Fui mandado ao subterrâneo, onde deveria repor areia na
correia transportadora. Notei que a areia era quase incandescente,
decorrente da desmoldação de peças fundidas, mas tarefa é tarefa eu
aceitei a provação. Quase fui engolido por um eletroímã porque
elevei a pá ao alto e ela foi sugada. Não era meu tempo... No dia
seguinte, mandaram-me fazer limpeza no telhado do altíssimo galpão
industrial. Meu Deus! Descobri que tinha horror à altura, doença
chamada acrofobia. Subi no telhado de rastos e voltei do mesmo modo,
assim que terminei o famigerado serviço de limpeza da chaminé do
forno Cubilô. Eu sofri desesperadamente: tonturas, escorregões,
náuseas e molhei as calças. Com certeza, fiz meu trabalho deitado no
telhado, nem sei por que não desmaiei. No outro dia, dirigi-me à
chefia e mostrei que trazia boa bagagem intelectual. Fui promovido a
Anotador. Daí em diante, subi na hierarquia da empresa e fui ao
pináculo; e, nas alturas, ajudei muita gente (inclusive familiares).
Na Companhia, recebi homenagens, honrarias, diplomas e comendas.
Tinha salário alto e fiz curso de metalurgia e, mais tarde, o curso
de Direito. Enfim, chovia na minha horta. Na matemática espiritual,
meus débitos e créditos quase se equilibraram, mas meu tempo terreno
chegou ao fim de modo abrupto; um evento trágico se deu: Fui
convidado a visitar o alto-forno da empresa e, desavisado e
imprudente, subi ao topo dele. Ora, todos sabem, eu sabia também,
que no topo da chaminé eventualmente ocorriam emanações excessivas
do gás monóxido de carbono (CO), altamente venenoso, tanto assim que
era proibido galgar aquele lugar sem as precauções devidas. Paguei
caro minha estupidez e aconteceu: desmaiei... Às pressas, tentaram
me salvar fazendo respiração boca a boca e massagens no peito.
Apesar dos esforços dos paramédicos, foi tudo em vão. O que
acontecera comigo? De repente, ouvi, sem entender o porquê das
gritarias, os pedidos de socorro, a maca e a ambulância. Com sirenes
ligadas e a toda velocidade, eu fui levado ao hospital. Os
enfermeiros gritavam: “CTI, desfibrilador, oxigênio”; médicos
diziam: “Pressão caindo, batimento zero”; e eu ouvia tudo, bem
nítido, mas sem tomar qualquer decisão, achando não ser parte do
problema. Fui sugado por um cone de luz, estava de volta à Pátria
espiritual, em condições deploráveis, inesperadas e cedo demais para
a partida. Vi-me assim do “outro lado”: a perturbação e o ignoto me
aterravam, seguiu-se vontade enorme de dormir para sempre.
Pareceu-me ouvir choros e lamentos de entes queridos... Relembrei
todos os fatos da minha vida. Revi amigos de infância, da juventude
e parentes. Meu espanto era indescritível. Afinal, onde estava? Era
o mundo das sombras... Deparei-me com um vulto translúcido vindo em
minha direção. Um avantesma a se desvelar, e se identificar e me
falar com doçura: “Lembra-se de mim? Eu sou a dona da pensão:
Assunta”. Tremi, porque lhe devia uma quantia substancial ao fugir
da pensão. Sofri eterna lembrança e vergonha. Ajoelhei e pedi perdão
pelo ato, pois não havia como resgatá-lo. Assunta me confortou e me
disse perdoar, porque imaginava que algo grave se passara, ao notar
as manchas de sangue coagulado na minha cama. Ela deduzira que eu
fora vítima de violência, na véspera da fuga. “O passado ao passado”
disse-me. “Agora, você está limpo daquela mácula. É momento de paz”.
Minha ferida moral e espiritual cicatrizou, e pela mão de Assunta,
saí do umbral para o campo de luz, com bons espíritos a me guiarem
até a segunda vinda...
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Renascimento
–– Aonde você vai?
–– Para minha casa...
–– Agora esta é sua casa.
–– Não reconheço este lugar.
–– OK, deixe-me explicar: Você deixou na Terra o corpo material, agora é
apenas alma ou espírito, está noutro plano, noutra dimensão.
–– Não entendo...
–– Irmão, você morreu, foi envenenado com gás carbônico. Esqueceu tudo, não
é? Vou te contar, tintim por tintim, seu rito de passagem...
A alma até então desorientada tomou ciência da tragédia terrena.
–– Estou ciente, agora, o que me espera?
–– Como seu desencarne foi extemporâneo, fora da hora combinada, você será
orientado por mestres e voltará pra cumprir a etapa final de sua estadia na
Terra, é como se diz na contabilidade da Terra: “restos a pagar”.
–– Mas, se eu não quiser cumprir o resto do programa...
–– Não é decisão sua, o renascimento é obrigatório. Vou lhe apresentar seu
guia espiritual.
Feita a apresentação, o mestre disse-lhe:
–– Sua transição foi rápida e assustadora, sei que ainda não assimilou seu
novo estado, está confuso, mas compreenda: você está do outro lado, no Plano
espiritual. Noutra dimensão. Quero lhe ensinar alguma coisa relativa à sua
volta que não será dolorosa, mas necessária para sua evolução; há retorno
excepcional e voluntário que se dá quando se deseja fazer o bem e se tem
desenvolvimento para tanto, porém a maioria dos casos de renascimento é
restrita, e apenas para cumprir um prazo da vida anterior que acabou
repentinamente. O retorno de misericórdia é quando o Pai concede um bônus
para o espírito dar amor incondicional aos viventes...
Eu interrompi o mestre e pedi:
–– Posso ter uma visão do que me espera no retorno?
Como no descerrar de uma cortina, o Guia me mostrou em filme de terror tudo
que me esperava na nova vida. Tremi, era demais para mim.
–– Não quero voltar em nenhuma hipótese!
–– O retorno é mandatório, disse o Mestre.
–– Meu livre-arbítrio há que ser levado em conta: quero obtemperar, solicito
uma audiência ao Divino Mestre.
–– O Senhor de Luz, Mestre dos mestres, não vai quebrar a corrente das idas
e vindas, pois seria interromper o progresso espiritual. Você há que se
salvar e crescer pelos próprios méritos...
–– Concordo plenamente com esse argumento, porém o Criador é Divina
essência, onipotente, onisciente, onipresente, sumamente bom e justo. Ele é
compassivo e compreenderá e atenderá o meu desejo. Lembro-me de que nada
nesta dimensão segue os parâmetros terráqueos, nenhuma medida de lá:
espiritual ou material se aplica aqui; eu requeiro a Divina graça.
“Assim seja feito, meu filho. Você quer ficar aqui? Fique! Esta é minha lei:
a Lei da Graça, e acabou seu eterno devir”.
E P Í L O G O
Esta é uma história com base no realismo fantástico. Algo
aconteceu no plano material com nosso herói; algo aconteceu no plano
espiritual, pressuposto. É, pois, uma visão muito especial e peculiar sobre
a ideia de salvação vis-à-vis a de progresso. Por causa de problemas
vividos e sofridos pelo herói no plano terráqueo, ele não se conformou com a
ideia do eterno retorno, com a problemática de vidas sucessivas, para,
enfim, alcançar a luz, seja pela reencarnação, ou palingenesia, ou pela
metempsicose. Daí, nosso herói sugeriu uma solução: ficar com o Pai, onde há
muitas moradas. Para tanto, apelou para a graça de Deus. Ele é amor, pode
tudo, pode fazer acontecer, isto é, conceder graça ao espírito ou alma, sem
se ater a valores estabelecidos por humanos frágeis, simples poeiras
cósmicas.
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Sobre a imagem
(texto da wikipedia)
Ouroboros (ou oroboro ou
ainda uróboro) é um conceito representado pelo símbolo de
uma serpente, ou um dragão, que morde a própria cauda. O nome
vem do grego antigo: οὐρά
(oura) significa "cauda" e βόρος (boros), que significa "devora". Assim, a
palavra designa "aquele que devora a própria cauda".
Segundo o Dictionnaire
des symboles o ouroboros simboliza o ciclo da evolução voltando-se
sobre si mesmo. O símbolo contém as ideias de movimento, continuidade, auto fecundação e,
em consequência, eterno
retorno,
samsara.
Albert
Pike
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Albert_Pike)
em seu livro, Morals and Dogma [p.
496], explica: "A serpente, enrolada em um ovo, era um símbolo comum para
os egípcios, os druidas e os indianos. É uma referência à criação do
universo".
Para alguns autores, a imagem da serpente mordendo
a cauda, fechando-se sobre o próprio ciclo, evoca a roda da
existência. A roda da existência é um símbolo solar, na maior parte
das tradições. Ao contrário do círculo, a roda tem certa valência de
imperfeição, reportando-se ao mundo do futuro, da criação contínua, da
contingência, do perecível.
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