Matéria Especial Benficanet - 13/07/2018
 
S E Q U E S T R O    G R A M A T I C A L

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Asséde Paiva & Marcus de Bessa

 

Aquele nome estava arrasado, abatido e arruinado.

Era charmoso, de classe importante: chamava-se Substantivo Próprio, todos de mesma linhagem exigiam primeira letra maiúscula para mostrar status. Até agora, não mais. Talvez, nunca mais...

Caminhava pesaroso e pensativo por sinuosa Via Vernácula, quando topou com Numeral marchando em sentido contrário: “um, dois, um, dois, feijão com arroz…”

Pararam sem se tocar, afinal Substantivo Próprio tinha borogodó. Numeral parou de contar e perguntou:

–– Por que anda tão cabisbaixo, colega Substantivo?

–– Estou triste, porque roubaram ou sequestraram meu Adjetivo e agora sou Substantivo desqualificado.. Pior, assoberbado por esse fato, nem me dei pela falta de meu companheiro Artigo, que me dava cobertura e me definia. Logo Artigo Definido! Imagine que falta estão me fazendo: de Substantivo Próprio passei a Substantivo Comum ou menos; na verdade, minha tendência atual é ser Abstrato.

–– Não se amofine caro amigo, ser Substantivo Abstrato é megachique em Paris. –– Numeral tenta dar força. –– Você tem muitas capas: pode ser singular, plural, simples, composto, concreto, sobrecomum, comum de dois gêneros e mesmo andrógino, seja: masculino e feminino.

–– Quero meu Adjetivo Qualificativo, iletrados me põem em nova classe, dos Obscenos, em vez de Epicenos. Estou na pior, com astral muito baixo. Eu sei que esta tipificação é anacrônica, porém gosto de ser assim. Em Portugal ainda me amam. Ai de mim?

–– Por isso está sorumbático, de crista caída?

–– Nada me interessa hei de achar meus companheiros! Acabrunhado estou, não me importa derredor. Tirei soneca em baile de Estilística, acordei sem Adjetivo; quando olhei pros lados, até Artigo Definido tinha sumido, volatizaram-se, desapareceram, sumiram. Tenho dúvida atroz: fui furtado ou deletaram meus companheiros? Que fazer? Ninguém presente no baile assumiu culpa pelo desaparecimento de meus acompanhantes. Dormi demais logo após aquele chá sabor “lúcida loucura”, servido por Oxímero, creio que estava oxidado de oxicoco. Saí por aí, em estrada vernacular, procurando meus asseclas, digo assessores ou anexos. Pobre de mim: desqualificado, indefinido. Eu, “senhor” Substantivo, agora, sou apenas Substantivo inominado.

Numeral apenas para colaborar sugeriu que substantivo contratasse detetive para investigar tal quiproquó, se não perderia o posto entre as classes de palavras substantivas.

–– Vá procurar Verbo, que tem bom trânsito em orações e sem verbo é difícil entendê-las, talvez possa dar alguma luz.

Bom conselho germinou em terra fértil, e Substantivo saiu procurando verbo aqui e acolá. Achou operando em modo mais-que-perfeito.

O Verbo intransitivo, perguntou ríspido:

–– Que quer?

Na verdade, Substantivo arrepiara com modo imperativo do verbo, lembrava imperativo categórico, arrogante. Entretanto, respondeu estar à procura do qualificativo sumido, bem como, do guarda-costas assumido, a famosa letra “O”.

–– Quero contratá-lo doutor Verbo para essa investigação. Tenho boas referências suas como detetive, dizem-no Verbo-Divino.

Após ouvir lengalenga já conhecida, verbo abre verbo, ad verbum:

––  bem, eu estou aqui desde o princípio, vou investigar. Você é tremendamente importante por designar seres em geral, precisamos de sua presença, vou cair em campo, quero dizer em tempos e modos. Tenho disponível Adjetivo Superlativo. Serve?

–– Você é detetive? Vendedor? Charlatão?

–– Tempos bicudos me fazem distribuidor de toda nomenclatura. Ofereço-lhe Interjeição? Adotando-a, você se chamará “Substantivo Alvíssaras!” Pensando bem, “Substantivo Oxalá” é melhor, gosta?

–– Com devida vênia: nããão! Estou irritado, pronunciei esta partícula tão negativa, prerrogativa de Advérbio.

–– Calma! Acho que a indefinição deixou você emocionalmente instável. Vem cá!

–– Sim, vou, claro, me desculpe, preciso reencontrar meu ego, estou em crise de identidade. Afinal, quem sou? Comum, Concreto, Abstrato Coletivo, Simples… quero ser Próprio e ter de volta meu companheiro Artigo Definido. Sentia-me tão importante: “Lá vem Substantivo Próprio”, diziam uns. É dos bons... Ninguém vive sem mim em frase, exceto verbos representativos de fatos naturais como: chove, troveja. Fora disso, só nas frases tortas e/ou incompletas. Falta-lhes algo, talvez alma. Sou nome de oração.

–– Tem algum sujeito suspeito?

–– Há Pronome, ele quer tomar meu lugar, sempre quis, e, muitas vezes faz isso com certa petulância, porque na frase dá sonoridade e eurritmia.

–– Talvez Pronome deva ser interrogado, quem sabe avançou sinal e tomou seu sobrenome Próprio. Pronome faz estas coisas, é de sua natureza.

–– OK! Pronome pode ter feito asneira, estou sempre de olho nele, mesmo nas formas “eu”, “tu”, “ele”, “nós”, “vós”, “eles”, tão próximas de você, Verbo.

Nisso, vai passando pela mesma estrada vernácula, um escabreado Artigo Indefinido que é chamado pra depor.

–– Sou Indefinido, por definição estou fora, sem pistas, ó meu!

Contesta o Verbo:

–– Ei, viu Substantivo Próprio, sim! Afinal, formava trio com Substantivo e Adjetivo.

–– Juro que nada sei! Sou indefinido, Ad perpetuam rei memoriam.

E Verbo foi procurar Advérbio, que por nome é quase anexo (ad+verbo) e tem como diversão modificar verbo, adjetivo e ele mesmo, advérbio. Sempre mudando, mudando.

Advérbio, seguramente sabia das coisas, astuciosamente se fingiu de morto.

Em seguida, Verbo acompanhado de Substantivo, capenga, visita dona Preposição, bem relacionada com fraseologia, pondo duas orações lado a lado explicadinhas, sem adiantar nada na problemática do Adjetivo desaparecido.

Procuraram e questionaram dona Conjunção; ela desconversou dizendo estar coordenando duas copulativas, entretanto, concessiva, informou ter visto Adjetivo passar de fininho à medida que ela proporcionava uma integração.

Seguiram adiante, havia ainda variáveis consideráveis. E Verbo deixou de lado precauções indo direto investigar Interjeição, mas ela reagiu:

–– Vote! Meu caro, comigo é no grito, não vai dar. Basta! Pinica daqui!

–– Senhora Interjeição, por favor, acalme-se; intramuros, Sujeito Oculto a apontou dizendo que tens simbiose com substantivos como em oh! Deus; demônio! E outros.

E Interjeição, agora em crise introspectiva, perdeu sinal peculiar sinal (!), saiu de fininho para limites das classes de palavras. “Sobrei”.

Verbo esgotara todos meandros gramaticais, e voltou a perquirir Conjunção, que disse não poder perder tempo, tinha muito afazeres para coordenar outras orações ou subordiná-las a sua liderança.

Verbo, num beco sem saída, acusou Preposição de imiscuir-se em assunto alheio, fazendo ligações inconvenientes com partículas “de”, “para”, “por” “entre”, roubando a oportunidade de Adjetivo e Substantivo.

Para assegurar total isenção, Verbo formou comissão de notáveis figuras de sintaxe: Hipérbole, Metáfora e Metonímia, todas incorruptíveis. Após marchas e contramarchas, muitas reuniões e aliterações de posições, chegaram finalmente a veredito inesperado:

Falou Hipérbole:

–– Após extensa e exaustiva análise de provas e ovas, fatos e relatos, esta muitíssima honrada comissão concluiu definitiva, inapelável, inafiançável e venerável, que:

–– Fala logo!  morrendo de vontade de saber tudo, hiperbólica Hipérbole. –– Reiterou Substantivo.

Silêncio retumbante, constrangedor.

–– Substantivo é considerado culpado fazer ligações frágeis, volúveis, efêmeras e perfunctórias com variadas palavras. Classe... Sinceramente, ele nunca se preocupou em construir compromisso duradouro e certo com palavra alguma. E agora vem reclamar que foi abandonado por companheiros de jornada.

–– Protesto! –– Tentou reagir substantivo. Sou obrigado por usuários da língua a ser ora masculino, ora feminino, ora singular, ora, ora… alternativas me sufocam, me fazem perder o ponto e o juízo.

Hipérbole continuou:

–– Sim, usuários devem e podem usá-lo como convier. Aceite condição de comum ou abstrato, plural ou singular, macho ou fêmea, com regalias inerentes, apenas cumpra seu papel. Mais importante do que você é a comunicação entre pessoas, seja como quiserem que seja! Cada qual tem artigo e adjetivo que merece.

Metáfora cortante:

–– Você é “vadio”, “arroz de festa”, “vai quem quer”, promíscuo, sua condição de macho é questionável.

–– Alto lá! Retrucou Substantivo. Não precisa ofender minha moral. Quer dizer que Substantivo Próprio já era?! Tudo será Comum? Impossível aceitar. Ora, ora, não posso concordar com veredito insustentável.

Substantivo saiu mais desolado e confuso do que nunca da fatídica decisão. Em consequência, Verbo foi demitido por ter sido imperfeito em investigar. Todavia, ele contestou garantindo que em futuro próximo seria mais diligente, incondicional, afinal estava investigando desde pretérito tempo. 

Substantivo, irredutível, ciente de seu poder, mais concreto do que nunca, contratou Adverbio, tão amigos em locuções adverbiais.

Jactou-se advérbio:

–– Posso adverbializar qualquer classe, principalmente Substantivo, mas Artigo não dá!

Substantivo desaba:

–– É o meu fim… esse mundo relativista, sem moral e sem ética, nos transforma em seres sem identidade, sem definição, apenas vocábulo perdido na multidão.

Contudo, investigações posteriores localizaram os desaparecidos. Na devassa, Artigo Definido brincava carnaval, travestido de Interjeição, usando chapéu circunflexo e bengala, perfeito Arlequim; Adjetivo foi localizado felicíssimo, com atributo superlativo absoluto sintético. Disse ser muito valoroso e que sua definição como qualificativo estava fora de moda.

–– Vocês queriam tirar sarro de mim? –– inquiriu substantivo.

–– Sim, chefe.

–– Quase me acostumei sem vocês, ninguém sentiu falta do a e o. Quanto ao adjetivo, fiquei inseguro, desqualificado mesmo. Quanto ao Artigo, nesta aventura apareceu raramente. Alguém sentiu sua falta? Foi omitido deliberadamente. Será expletivo...

–– Agora, estamos juntos novamente. É lindo isso. –– Apaziguou Adjetivo.

–– Sim, o belo reencontro, a alegre união, a verdadeira amizade, a clareza, sem indefinição. –– Poetizou o Artigo que reapareceu com pompa e circunstância e prolatou:

O objetivo foi subverter a norma, não segui-la, daí, sequestramos, na história, o Artigo (O, A) e adjetivos, algumas frases ficaram bem claras; outras, um tanto truncadas. Os sábios estavam sugerindo preconceito linguístico.

Substantivo encerrou a história:

–– O desaparecimento de vocês me ensinou uma coisa: se tudo é discutível, devo aceitar desvios da regra. Se tudo se transforma continuamente, devo aprender com mudanças. Amigos, a presença de vocês me dava uma falsa sensação de segurança, de que cada coisa estava em seu devido lugar, como se o mundo fosse perfeito e todas as palavras felizes. Eu me achava melhor que os outros, era O Substantivo Próprio, o centro das frases, o umbigo da língua, o insubstituível. Agora, percebi o liame que interliga todos nós na infinita teia da comunicação, que é a teia da vida. Na verdade, somos conjuntamente responsáveis pela realidade que construímos a nossa volta.

Sintaxe/semântica em paz, e fim com sinal medieval de fim de texto. –––––––––

 
  
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