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Os senhores não poderiam estar construindo
aqui! Vociferou o Gerúndio. ––Saiam imediatamente, pois vamos derrubar esta
casa! Isto é área de preservação ambiental. Respeitem a ecologia!
À frente de todos estava o Imperativo
Negativo, que pôs o dedo no nariz do casal Mais-que-Perfeito Composto,
proprietários da casa, aliás, pobre casa.
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Saiam que “vou estar derrubando”, já!
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Por favor, foi tão difícil construir esta
casa, misericórdia! Vou ficar sem teto...
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Derrubo, sim. Tenho aqui a ordem de demolição
assinada pelo juiz, partícipe no passado de muitas sentenças de despejo.
Senhores agentes da Terceira Pessoa do plural, podem começar a remover os
móveis e os pertences, que a equipe de empreiteiros, bem azeitada vai estar
demolindo.
Enquanto o casal Mais-que-Perfeito, em
prantos, implorava, apareceu uma figura sorridentemente engravatada,
melíflua:
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Boa-tarde, casal Mais-que-perfeito! Não
chorem, seus problemas acabaram. Permitam-me apresentar-me: sou o Futuro do
Pretérito, outrora Condicional, corretor de imóveis e já analisei o caso de
vocês, aliás, peculiar, pobres trabalhadores de salário-mínimo, honestos,
porém. Com o contracheque de vocês dois combinados, podem adquirir uma
belíssima quitinete, onde Judas perdeu as botas, ou logo ali, segundo légua
de mineiro, onde não tem água, nem esgoto; mas a vizinhança é legal, só uns
tiros, vez por outra; uma bala perdida, aqui e acolá. Fica no buraco da
onça, em alagados.
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Obrigado pela ajuda, respondeu o senhor
Mais-que-Perfeito. Quanto vai nos custar esse tugúrio?
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Não se preocupem com o pagamento. Nada além de
500 prestações no valor de metade dos seus dois contracheques somados. No
futuro, caso vivam até lá, “vão estar recebendo” a quitação, com o saldo
devedor...
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Como é que é? 500 prestações... assustou-se a
cara metade, ou esposa do casal Mais-que-Perfeito.
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Isso mesmo. Vocês ainda podem vender um rim
cada um, né? As córneas, pelo que eu vejo, parecem boas... Aceitamos órgãos
em bom estado, de entrada e na entrega das chaves. Proponho um acordo: cada
cônjuge vende o rim e um olho e dá para se virarem. O Infinitivo Pessoal, o
proprietário do terreno e do imóvel, tem clientes para seus órgãos.
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Isso vai contra nossos princípios –– diz o
Imperativo Afirmativo categórico que a tudo assistia e resolvera intervir.
O Imperativo está indignado com a
proposta indecente do corretor, Futuro do Pretérito.
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Pessoal, diz o Infinitivo que também resolveu
participar do imbróglio. No pretérito, tudo era perfeito, agora, no
presente, com os sem-terra e sem-teto trazendo imensas reivindicações,
nossas autoridades atentas estão prontas para aplicar correção em tempos e
modos.
Ai dos partícipes em arruaças!
O governo ficava em cima do muro, ansioso pelos votos dos
lumpemproletários e leniente, o que configura a situação esdrúxula de agir
ou não agir, aplicar ou denegar a lei. Um dilema maior do que o de Hamlet,
na tragédia de Shakespeare. Que situação ridícula: o chefe da Nação põe o
chapéu, agita bandeiras dos sem-terra, e os sem-terra aproveitam para passar
o trator em plantações rentáveis dos cutrale. E ainda há os sem-vergonha.
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Afinal, quem são os cutrale? Para quê aquelas
lindas laranjeiras? Passemos o trator por cima delas... –– vocifera Verbo ad
verbum.
Para
que o país não se transforme em casa de mãe-joana, o (des)governo diz que
vai apurar tudo, doa a quem doer.
No futuro, transforma-se em pizza.
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Mas, assim fugimos do fulcro da questão, da
sua essência: o que fazer para ajudar a família Mais-que -Perfeita? Eu não
sei, que tal começar por conceder bolsa -família, seguida por um
auxílio-desemprego. –– Opina o Subjuntivo que tudo ouvia.
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Não quero essa ajuda, recusa o
Mais-que-Perfeito, tenho brio, prefiro cometer um delito, ser preso e
receber o auxílio-presidiário, que vale três vezes o salário-mínimo. Nada
pessoal senhor Gerúndio; Mais-que- Perfeito puxou o revólver e deu-lhe cinco
tiros, mandando-o para o infinito, resolvendo a pendência.
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Teje preso! –– É o Imperativo Presente que a tudo assistia.
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Nada disso, tenho direitos constitucionais, vou
apelar para uma ONG, pedirei asilo aos sem-terra, a turma dos direito
humanos me apoiará, sou sindicalizado. Um advogado impetrará
habeas corpus.
Confusão geral. A turma de
Subjuntivos fez roda protetora em torno do casal Mais-que-Perfeito; os
agitadores do Presente, e do Pretérito se disseram black blocks e
começaram a atirar pedras nas autoridades. A polícia jogou spray de
pimenta, bancos foram depredados e assaltados a título de direito de
manifestação. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não sabia de nada sobre
o ocorrido, mas se pronunciou contra. Estamos na democracia, pela ordem...
Vem o Presente pedindo calma. O Mais-que-Perfeito guarda
a arma. O Imperativo diz que haverá julgamento no futuro, mas que o
indigitado poderá invocar atenuantes, porque é réu primário com residência
fixa. Num futuro próximo, terá direito à liberdade condicional, poderá estar
saindo livre da prisão, pela leniência do sistema progressivo, e por bom
comportamento. Todo detento tem direito à ressocialização; que não funciona,
mas é assim. Igualmente, como é portador de necessidades especiais (vendeu
um rim), poderá pleitear cargos nas empresas e entidades públicas pelo
sistema de cotas, bem como frequentar universidades e garantir nossa opção
pelo atraso.
E logo que o Mais-que-Perfeito sair da prisão terá
emprego, vai encarar redução de salário, porque o auxílio prisional é bem
maior do que o salário de um trabalhador livre.
É samba do crioulo
doido mesmo. Nem tudo é perfeito, é preciso rasgar o verbo.
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