As vogais em convenção discutem assunto de
magna importância.
Em silêncio, “A” pega o bloco de papel e escreve:
* q** *c*nt*c*r** s* d*s*p*r*c^ss*m*s d* t*xt*? V*m*s p^r *st*r*sc*s, *m n*ss*
l*g*r, d*p**s r**p*r*c*r, h~* d* r*c*nh*c*r n*ss* v*l*r.
Passa a nótula adiante, nem uma vogal entendeu. Elas
contestavam o tratamento subalterno recebido das consoantes. Em mesa-redonda
concluíram ser indispensáveis por natureza e iriam mostrar quão relevantes
eram à luz do dicionário, pois estavam certas de que superavam as
consoantes, não em número, mas em importância.
A quebra o silêncio traduzindo o significado do
parágrafo supra com todas as letras: O que aconteceria se
desaparecêssemos do texto? Vamos pôr asteriscos em nosso lugar, depois
reaparecer, hão de reconhecer nosso valor.
Sou prima inter pares: a primeira vogal, artigo
definido, pronome pessoal, oblíquo e demonstrativo; substantivo,
interjeição, prefixo, preposição, indicador de gênero feminino. Sou casca de
banana, nos deslizes dos escritores, como crase. Também padrão de excelência
(classe a, categoria a, série a). Estou no correio
eletrônico: @, utilizado nas mensagens entre internautas.
E (vogal) intervém, e expressa alinhamento e
contentamento:
–– O texto lido por A, pleno de estrelinhas parece
mensagem em código, mistério para leigos. Só equipe especializada em
criptografia poderia decifrá-lo. Encaminharemos abaixo-assinado pedindo a
instituição do dia nacional da consciência vocálica. Viva para monotongo,
ditongo e tritongo! O mundo se curvará ante nós. Quero título de nobreza
construindo belíssimos polissíndetos como conjunção e, e a
badaladíssima interjeição é! Nem uma das vogais pode ser verbo senão
eu. É pôr acento agudo em mim e me transformo em é, do verbo ser, sem
esquecer de que também sou vogal temática, prefixo e sufixo; estou na
internet, através de e-mail, e-book, e-commerce. E acrescenta:
Na verdade, quem é sábio lê nas entrelinhas. Um apedeuta notaria que os
asteriscos usados servem para indicar nossa ausência. Na frase normal, após
nossa defecção só existirão espaços em branco e, as consoantes perderão
sentido num vácuo epistolar.
I, a terceira vogal na sequência, conhecida como
linguiça, dá seu palpite, pois é parte interessada e nada modesta:
–– Ixe, ipre, irra! Se tamanho importa, saibam todas
vocês que sou substantivo: “fila i”; interjeição onomatopaica (iiii ou
ihihih!), indicando risos, relincho dos equinos e asininos; vogal temática
da terceira conjugação; também prefixo e sufixo. Em uma polêmica dizem: vou
pôr os pingos nos ii. Quem os põe noutra vogal? Ninguém, salvo na consoante
j.
J, anzol, escoteira, pescava no derredor, ao ouvir
seu nome zangou-se:
–– Cale a boca, você nasceu de mim. Esticaram-me na curva
da estrada e alguém gritou:
–– Ih, parece I...
–– Desde então, alternamos na mais sagrada sigla
quaternária: JNRJ/INRI (Jesus Nazareno, Rei dos Judeus).
De mansinho, vai chegando O e põe a colher de pau
no angu de caroço:
–– Pô, ah eu aí, uai! Parem esse debate. Importante eu
sou e estou na origem do universo. Lembrem-se do som do big bang:
oooooooooooooooooom! O cântico do mahá mantra (o grande mantra),
ooooooooooooooM. Escutem-me no carnaval: ôôôô-ôôôô-ôôôô! Sem mim a folia
seria chocha, sem cadência e eurritmia. Ad argumentandum tantum (só
para argumentar), sou interjeição de apelo alertando a existência de um
vocativo; substantivo; artigo; pronome demonstrativo e pronome oblíquo.
U entra no debate vaiando:
–– Fiau-fiau, úúúú! Exijo coliderar ou
tranco a pauta! Sou a última vogal, mas está escrito no Livro dos Livros que
os últimos serão os primeiros...
E saudoso do passado de glória citou os pinguinhos que
faziam tremer os iletrados. Quanta saudade do qüinqüelíngüe... Era admirado
pelos cultos e temido pelos ignorantes.
Então, consultaram o Aurélio Séc. XXI (cujo nome
indica a relevância das vogais, porquanto acolhe todas: Au* é* io). O
Aurélio registrava na contagem de páginas, A com 247, e U, com
18. No quesito quantidade, A venceu U.
Alguém no fundo do auditório pediu pela ordem: era Y
que para chamar a atenção do plenário, levanta os braços como se rendendo.
–– Represento nesta augusta assembleia a
moderníssima geração Y, também conhecida como “milenial”. Fui defenestrada
do abc por anos, agora retorno do ostracismo, com honrarias. Tenho
foros na lexicografia, com restrição, mas sem solidão. Quem traz Y no nome,
tem um quê de nobre. Reino em palavras estrangeiras; sou cromossoma Y;
estrela anã, Y; marco da geração nerd; Y de Ítrio. A Academia Brasileira de
Letras (ABL) me tem como semivogal ou vogal.
Havia ciúme explícito entre as vogais, porém A
resolve apaziguar:
–– Nós temos força extraordinária através dos tempos,
observem-nos na imperial sigla AEIOU = Austriae Est Imperare Orbi
Universo (É destino de a Áustria dominar o mundo inteiro). Somos
verbalizadas aeiouar para representar o uivo do vento, em Grande
Sertão Veredas. Também expressamos emoções humanas (aiaiai,
ah-ah-ah, eee, iii, ôôô, uuu).
Concordam que são imprescindíveis ao léxico, ainda lhes
falta muito para que vivam independentes. A insana dissidência trouxe
Incalculável prejuízo à lexicografia. O número de verbetes é reduzido
drasticamente. Ninguém lê com clareza; falam pidgin. Pensavam levar a
comunicação em nível de grunhido: de ortofonia para cacofonia.
Luminares das letras deploravam o desatino obscurantista:
“Adeus poesia, conto, cromo, crônica, romance e fábula!
Adeus novelas, cantigas, trovas, jograis e acalantos! Sonetos, nunca mais!”
As consoantes, principais interessadas na clareza da
comunicação, convocaram reunião de cúpula. Houve encontros vocálicos,
consonantais e hiatos. Na discussão, ameaças mútuas: consoantes sinalizam
com a bomba “H” (Hiato/nica); vogais fazem bravatas com a bomba “A” A/fônica
(para o eterno silêncio); a letra “H” acha que é momento de reflexão, diz
que falará na hora “h”. A coitada corre o risco de ser eliminada por mudez
crônica.
Consoantes chutam o pau da barraca:
–– Podemos sobreviver sem vogais! Somos siglomaníacas
desde a antiguidade damos como, por exemplo, a que aterrorizava os bárbaros:
SPQR Senatus Populus Que Romanus = Senado e o Povo Romano, inscrita
nos estandartes das legiões romanas, e em milhares outras que dispensam
vogais.
Vogais pirrônicas exigem rendição; rechaçadas, se
exaltam:
–– Nós somos autossuficientes, podemos cassar os fonemas
das consoantes. Somos suas bengalinhas, não há som nas letras consonantais,
são afônicas por natureza.
As consoantes não são tolas, desconfiam das insurgentes e
da cilada em andamento; antecipam-se à jogada desleal. Alegando serem
garroteadas no direito fundamental de existir impetram Mandado de Segurança,
pela manutenção dos seus fonemas, concedido pelo juiz Alofone, que exarou no
writ:
“Defiro. Vogais fazem terrorismo linguístico com
irreparável prejuízo lexicogênico”.
Vogais, ranzinzas como que, conspiram e decidem abandonar
a cimeira na maior algazarra:
A aaaa! –– dando gargalhadas;
E êêêêê! –– mostrando insatisfação;
I ....iiiiiiii! –– relinchando como cavalo;
O ..ôôôô! –– cantado refrão de escola de samba;
U....úúúú! –– com vaia tonitruante;
Y ...comandando todas: aeiouypsilón! –– Orneando tal
onagro.
O evento registrado na gramática histórica como a
estultice das vogais.
Após o caos inicial, assentado o pó do levante, as
consoantes se reorganizaram. W por ser transformista (pode ser dois
uu ou dois vv), pede a palavra:
–– Seguramente, informamos mais do que vogais; informação
é poder, somos maioria, temos proteção jurisdicional. Esse imbróglio precisa
acabar, e o nó desatado. Se não, instituiremos a linguagem dos berros,
silvos e assobios.
Decidem incrementar a comunicação por gestos, sinais, e a
leitura labial. A Linguagem brasileira dos sinais (Libras) é
revisada; ampliaram o uso dos números; aprovaram o internetês como escrita
básica: bs<beijos; blz<beleza; cmg<comigo; fmz<firmeza; hj<hoje; kd<cadê;
kkk<risos; ñ<não; nd<nada; p<para; pq<porque; pt<ponto; q<que; qq<qualquer;
t+<até mais; s<sim; vc<você; rsrs<risos; td<tudo; tx<táxi; vlw<valeu etc.
Frases eram escritas deste modo: Cpcbn, prncsnh d mr (Copacabana,
princesinha do mar). Incrementou-se a troca de bens: um sabão poderia
significar ‘vai tomar banho!’ Renasceu a linguagem das flores.
Consideraram a ausência de vogais como oportunidade para evolução e/ou
criação de novas palavras. É posta em marcha a Faculdade de Ciências Mímicas
e Letras Consonantais (FCMLC). Instituíram a escrita semítica (sem vogais),
e não houve o caos esperado para enorme decepção das reclamantes. Ocorreu
notável aumento da pantomímica. O corpo fala; utilizaram semáforos; adotaram
sinais matemáticos e pictogramas. Grande afluxo de quadrinhos (HQs). As
falhas em “br nc ”, no texto, indicavam a falta de vogais. Com dados
estatísticos, diziam-se imbatíveis como no siglema Petrobras: P tr br
s, autoexplicativo; e no logogrifo IKHYTS (do cristianismo primitivo), que
sem IY fica KH TS (Khristos Theos Sotero = Cristo, Deus, Salvador),
mantendo, pois, o sentido da mensagem sagrada.
Vogais se defendem apresentando termos como **r****´ =
uariuaiú, bailado indígena; b**~* = baião=dança, t*****´ = tuiuiú, pássaro;
quase indecifráveis sem elas, as vogais.
Tentativas para editar o vocabulário só de vogais
redundaram em imenso fracasso; o mesmo fiasco se deu com o glossário de
consoantes; ambos caricaturais.
Em assembleia extraordinária as vogais foram derrotadas e
se curvaram. O vento não é favorável para as travessas avoantes; pousaram na
pauta dispostas a reescrever o léxico. Humildes, reconheceram que a escrita
corria o risco de retroceder ao tempo dos fenícios. Valia a coexistência
pacífica.
U faz bela retórica, pois é elemento-chave no
apólogo:
–– Acabou o milho acabou a pipoca. Negar valor às
consoantes é como negar a luz do dia.
Na doce essência da língua portuguesa, as vogais têm
aconchego e colo. Aceitaram o retorno imediato ao dicionário, e em concerto
cantaram a plenos foles, aeiouy, xaxado harmonioso, porreta.
Convidado a falar, X desvendou a incógnita:
–– Somos irmãs siamesas e mutuamente dependentes.
Isoladas na grafia, somos patéticas e infelizes. Unamo-nos em corrente pra
frente para doce soarmos (com+soantes).
XY se unem em cromossômico e fraternal abraço para
conceber o DNA da vida; Z chancela o Novo Acordo Ortográfico
decifrando a equação fundamental da lexicografia: A–Z = Volp.
Da aporia, a euforia: uruputum-uruputum-uruputum zabumba
U na Avenida Vernáculo comemorando a magna concórdia P*nt*-f*n*l
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