CIGANO BEIJO VERSUS TENENTE JERÔNIMO
por Asséde Paiva & Geraldinho - publicado no Benficanet em 27/10/2014

Verídica, comovente, aventurosa e trágica vida de um cigano no Brasil antigo

1958 acessos.

Volta Redonda, fevereiro de 2008

Revisão abril, 2010

Revisão junho, 2014

 

“O nome literatura de cordel provém de Portugal e data do século XVII. Esse nome se deve ao cordel ou barbante, em que os folhetos ficavam dependurados, em exposição. No nordeste brasileiro, mantiveram-se o costume e o nome, e os folhetos são expostos à venda pendurados e presos por pregadores de roupa, em barbantes, esticados entre duas estacas fixadas em caixotes”. Nota de rodapé da Editora Luzeiro, em seus livros de cordel, de autores vários.

 

Uma epopeia cigana

 

Tema: cigano

Autores: A. Paiva & Geraldinho

Local: Volta Redonda, fevereiro de 2008

Estrofes: 214, em sextilhas, de sete sílabas (septilhas)

Esquema de rimas: xaxaxa

Observação: As letras repetidas indicam os versos que rimam entre si. Indicam-se com x os versos que não rimam com nenhum outro.

 

As estrofes são de autoria do poeta Geraldinho e de Asséde Paiva. Foram baseadas na história, em prosa, do cigano Beijo, de Asséde Paiva, que por sua vez, se louvou em fatos que se deram por volta de 1833. Beijo chamava-se Francisco Alves da Mota Sayão. Filho de ciganos foi muito valente e realmente enfrentou numerosos perseguidores, em muitas situações perigosas. Finalmente, morreu em combate épico, contra o tenente Francisco de Paula Pereira de Andrade (vulgo Jerônimo), em Morro Azul, próximo a Vassouras, RJ.

 

A ideia central deste cordel é transmitir, em versos rimados, algo sobre a cultura cigana. Assim, podemos registrar seu nomadismo; a vida em harmonia com a natureza; a beleza de suas mulheres, sua virgindade até o casamento, sua dança e sua fidelidade ao marido; o respeito aos mais idosos; o amor às crianças, a língua romani; suas roupas coloridas/estampadas; suas jóias; o olhar magnético cigano; a união do grupo; a sensualidade do homem cigano, sua valentia; a leitura da sorte, drab; o uso dos instrumentos músicos; a devoção a Santa Sara, no dia 24 de maio; o respeito à decisão do chefe, barô. A principal atividade comercial do cigano: troca de mercadorias, atividades circenses; especialidade em latoaria, selaria, ferraria, cestaria etc. O amor ao cavalo; a técnica em lutar com navalha. Acolhemos também a lenda de que os ciganos vieram das estrelas e são, portanto, os primeiros alienígenas habitantes da Terra. Finalmente, é de ressaltar a exclusão dos ciganos pela sociedade não cigana, isto é, o mundo dos gadjês, como eles dizem em romani.

 

Dados biográficos dos autores:

 

A. Paiva nasceu em Rosário de Minas. É bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB no 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, sd. Trabalhou na CSN 35 anos.

 

Geraldo Veríssimo Cunha Filho (Geraldinho) nasceu em Santa Rita de Jacutinga, em 1939. Mora em Volta redonda desde 1942. Estudou até a 5a série do primeiro grau. Trabalhou na CSN de 1961/1992, aposentando-se como balanceiro-anotador. É poeta temporão e compositor.

 

Introdução

1
Ó Deus, senhor dos poetas,
Me faça um abençoado,
Fortaleça minha mente
Neste meu novo tratado,
Pra contar uma história
Há muito tempo passado.

2
Beijo filho do vento,
Cigano sempre contente,
Não tinha medo de nada,
Muito esperto e valente.
Quando era encurralado,
Feria a boca com o dente.

3
Porte altivo e flexível,
E com juba de leão.
Músculos desenvolvidos,
Usava brinco e cordão.
Pegava varão de ferro
Envergava com a mão.

4
Olhos de pobre faminto,
Lábio grosso, molhado,
Dente reto muito claro,
De ouro encastoado
Ombro forte, tórax amplo
Adônis amorenado.

5
A visão resplandecente
Com fulgor de luz solar,
Vê ontem, hoje, amanhã.
Tem sabença milenar.
E lê no livro da vida
Segredos que quer guardar.

6
Ele bem apessoado,
Sarado, muito traquejo.
Podia tirar a sorte
Da moça no realejo.
Por ser alto e varonil,
Tinha nome de desejo.

 
7
Por que o nome de Beijo?
Por dar beijos a granel.
Ao vingar sua mulher,
Foi fugitivo revel.
Ninguém pegava o homem
Tão veloz qual um corcel.

8
Das mulheres queridinho
Todo dia e toda hora.
É assim que crescia a fama
Do cigano mundo afora.
Quando bem pertinho delas
Não pensava ir embora.

9
A noite foi à cidade
Trocar a mercadoria,
Vender tachos e panelas
Selas, bridão, lataria.
Levou viola e pandeiro,
Pra despertar euforia.

10
Reuniram-se na praça
Começaram a folia
O pessoal ajuntado
Bate palma, assobia
Os requebros das ciganas
Dão o tom na alegria.

11
As jovens assim que viram,
Pularam pela janela,
Todas queriam provar
Do vendedor de panela.
De sabor de arroz doce,
Com cravo e pó de canela.

12
Arrancou leves suspiros
Com a melopeia tocada.
As mulheres conspiravam,
Embora descontroladas.
Umas diziam pras outras:
“Neste Beijo dou bocada”.

 
13
Porém, tinha um porém,
Porque ele era casado
Com a mais linda romi
Daquele povo acampado.
Não podia esquecer
Seu anjo enciumado.

14
Chamava-se Inês Maria,
Doce princesa, amada,
Tão bela como um botão
De rosa desabrochada.
Ela dizia pra ele:
“Querido, estou gamada”.

15
Todo homem a cortejava,
Todos lhe queriam bem.
Ela era fiel ao Beijo
Jamais cedia a alguém.
Só pensava no amado
Não se ligava em ninguém.

16
Formavam par ofuscante,
Quando o casal balançava
Ao soar das castanholas,
Quem via só invejava.
Ela caía em seus braços
Excitada desmaiava.

17
Às vezes Beijo sumia
Como uma ave avoante.
Ela escondida ficava
Tristonha, muito distante.
Até se sentia fraca,
E sem força o bastante.

18
Ela não se descompunha,
Só na solidão estava,
Sabia que cedo ou tarde
Ele, nômade, voltava.
Ela, em canto escondido
Lacrimosa o esperava.
     
19
Quando ele, penitente
Voltava ela encontrar
Eram suspiros e ais!
E se reconciliavam,
Com apertos mui gentis,
Tristezas evaporavam.

20
Momentos felizes, mágicos
Quando se viam frementes.
Beijocas, abraços mil,
Sorrisos malevolentes.
Brincavam tal tico-tico
Ciscador em galhos rentes.

1ª Jornada

21
No arraial de Rosário
Pequenino como ovo
Beijo tocou violino
Arrancou palmas do povo
“Toque mais uma vez moço,
Por favor, toque de novo”.

22
O grupo foi viajando
Na estrada de poeira,
No sopé duma montanha,
A Serra da Mantiqueira.
Onde águas cristalinas
Escorriam na pedreira.

23
Para atravessar o morro
E chegar do outro lado.
Encontrar grupo amigo
Que por lá tá acampado.
Também confraternizar
Como é acostumado.

24
Pararam ao pé da Serra
Para poder descansar,
Dessedentar animais,
Também se alimentar.
E respirar o ar puro,
Para tornar viajar.

 

25
Montaram as suas tendas
Perto da fralda da Serra.
Onde o verde do campo
Cobre com manto a terra.
Gavião caracará,
Cantando grito de guerra.

26
Vige a lei da natureza
Embelezando o lugar.
Pássaros e borboletas
Lá revoam pelo ar.
Tangarás e sanhaços,
Põem-se logo a bailar.

27
O sabiá-laranjeira
Planta-milho no matão.
O juriti seresteiro,
O belo corrupião.
Fazem uma serenata
Que provoca comoção.

28
O bem-te-vi debochado,
Cantava de brincadeira.
Via-se aqui e acolá
Na Serra Mantiqueira
Macacos fazendo festa,
No cacho da bananeira.

29
Risos, saraus, seguidilhas
No local dos viajantes.
O grupo se agitava,
Rodopios estonteantes,
Curtindo muita alegria,
Só dois ou três vigilantes.

30
De repente, ali surgiu
O demo naquela Serra,
Mandachuva João Gomes,
Famoso dono da terra.
Não aceitava intrusos
Se preciso, ia à guerra.

 
31
Com a turma de capachos,
Foi serpenteando o monte,
E chegando de mansinho,
Passando por uma ponte,
Com ar de poucos amigos
Parou bem perto da fonte.

32
Rodeou o acampamento
Pronto pra uma demanda,
Gritou “saiam já daqui!”
Pra mostrar que ele manda.
Olhem o senhor supremo,
O guardião desta banda!

33
As fazendas do governo
O homem tomou de mão.
Roubara outros terrenos
Milionário era então.
Era um ser tão desprezível
Assassino e ladrão.

34
Podia matar os ciganos,
Na maior facilidade.
Ele pensou fazer isso,
Só por animosidade.
Porém, nem tudo estava
A sua mercê ou vontade.

35
Focou a moça pensou
Ó, meu Deus! Olha que vejo
A rosa desabrochada
Provocou o meu desejo.
Quero conquistar a mulher
Sem medo, dó e sem pejo.

36
A jovem é semelhante
À visão duma sereia.
Saindo dos verdes mares
Com pé leve na areia.
Ou voando pelos ares
Como a ave que norteia.
             
37
Cabelos pretos, ouriçados,
Tal revoada de abelhas,
Moedas na testa e braços
Pechisbeque nas orelhas.
Ela se abriu num sorriso
Como chuva de estrelas.

38
Lábios grossos vermelhos
Mordiscavam uma rosa,
Com andar malicioso
Sorriso de gente prosa.
João pensou debochado:
Vou morder a flor mimosa.

39
Olhos pretos, profundos
Envolvidos em mistério
Pareciam diamantes
Que chispavam no citério
João baixou a cabeça
Não suportou o cautério.

40
João mediu o senhor
Que estava vigiando.
“O que tão fazendo aqui
Minha terra, repisando?
Tudo que veem é meu,
Saiam, estão estorvando”.

41
O barô, disse humilde:
“Nós estamos de passagem,
Rumamos pra Carijós,
Cedo seguimos viagem.
Homem fique sossegado,
Não comemos a pastagem”.

42
Para cruzar a montanha,
Tem de pagar travessia.
Quem não paga não passa
E não quero arrelia
Passe dinheiro pra cá
Ou volte pra atrás na via.

 
43
E a cigana sorriu
Prevendo a patifaria.
Sabia que, certamente,
Pintaria covardia
Vou lidar com esta gente
Me chamo Inês Maria.

44
“Pai, que querem os caras?”
Perguntou, com ironia.
“É o dono desta terra,
Minha filha, Inês Maria”.
Ela com mãos nas cadeiras
Com charme e poesia.

45
O carrasco João Gomes
Lúbrico, ela queria,
Disse: vocês vão ficar
Sem pagar a estadia.
Seu intuito porém era
Conquistar moça que ria.

46
“Hoje é maio vinte quatro
De dezoito, trinta e três
Em nome de Santa Sara
Podem ficar mais um mês.
Prometo que meus homens
Não bulirão com vocês”.

47
O coronel enlevado,
Com jeito de Lúcifer,
Matutou consigo mesmo:
Vou seduzir a mulher.
Eu viro mundos e fundos
Sou pro que der e vier.

48
Os dias foram passando
Com total tranquilidade.
Os ciganos se reuniram
Pra ler sorte na cidade.
Puseram melhores roupas
Foram pra localidade.

 
49
Que espetáculo bonito
Dava o casal ofuscante.
João estando presente,
Mudou até o semblante.
Diante da dança bonita
Babava como bacante.

50
O coronel magnata,
Grosseiro, almofadinha
“E não vai demorar nada,
Esta mulher será minha.
Levarei pra minha casa
Vai trabalhar na cozinha”.

51
Noutro dia mandou dar
Recado por mensageiro,
Que Inês Maria fosse
Falar com o fazendeiro.
Ele queria dar um golpe
Prendê-la no seu celeiro.

52
Beijo foi que atendeu
O enviado maneiro,
Leu o bilhete, calmo,
Espere aí no terreiro.
Foi procurar o barô
Seu chefe e conselheiro.

53
Eles queriam matar
Aquele tal recadeiro,
Cortar pescoço e cabeça,
Mandar para o sesmeiro.
Preferem agir direito
Pois quem mata é açougueiro.

54
Falou o chefe, o barô,
O rei no acampamento:
“Vamos fingir que ela vai
Amanhã no aposento.
Só assim, ganhamos tempo
Saímos deste relento”.
             
55
“Na madrugada iremos,
Sem mesmo negacear.
Quando a noite esvanecer,
Deixaremos o pó no ar.
Só sentirão nossa falta
Quando o dia clarear”.

56
Mandaram logo o recado
Por aquele leva e traz,
Noutro dia ela iria
Almoçar com ferrabrás.
Beijo em poucas palavras:
“Leve a resposta, rapaz”.

57
Arrumaram suas coisas
Tudo bem ajeitadinho.
Quando foi à meia-noite
Saíram bem de fininho.
Ciganos riam, diziam:
“Quem rói o pau é ratinho”.

58
Mas João, astucioso,
Imaginou marmelada,
Convocou todos varões
Pra fazer uma cilada.
“Amanhã ninguém escapa
Se cruzar a minha estrada”.

 
59
Na metade do caminho
Havia um escarpado.
Lá rugia cavernoso
Um rio encachoeirado.
Passar é chupar a cana
Sem poder beber o caldo.

60
Pois João lá construíra
O seu posto de peagem,
Para atravessar o rio
Pagavam a passagem.
Ou a madeira descia
Como se fosse massagem.

61
João Gomes, encrenqueiro,
Com peões esperariam.
Bem atrás duma porteira
Eles se reuniriam,
Pra impedir os ciganos.
Que por lá não passariam.

62
Houve grande tiroteio,
Capanga contra cigano.
Nômades retrocederam
Estudaram um engano.
Estavam de calças curtas
Como que faltando pano.
63
“Mentimos que entregamos
A nossa dançarineira.
Inês Maria vai só
Até àquela tranqueira.
Ele ao vê-la, certamente,
Cometerá uma asneira”.

64
“Quando, então distraídos,
Nós cruzaremos a nado.
Ela, em disparada irá
Nos encontrar doutro lado.
Porque destino de trouxa
É de viver enganado”.

65
Muito, muito constrangido,
Beijo deixou-a tentar.
Era a salvação de todos,
Não havia como escapar.
Jogar o anzol nas águas
É pra quem sabe pescar.

66
João Gomes pode ver
Seu sonho realizado.
Aquela linda mulher
Caminhando pro seu lado.
Bateu no fundo da alma
O coração disparado.
     
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Significados de alguns verbetes

Agni = na mitologia védica é divindade do fogo, e também fogo para os ciganos.
Barô = chefe cigano, em romani.
Cacherim = punhal.
Capangueiro = indivíduo que comprava ouro e diamante, nos garimpos, nos tempos do Brasil Colônia e Império. Contrabandista, atravessador.
Catana = espada.
Citério = relativo à beleza feminina.
Chibalé = adversário, contendor, não cigano.
Cramulhão = demônio.
Churi = navalha, em romani.
Gadjê / ganjão / gadjô = não-cigano, em romani.
Gamada = roubada, apaixonada. Entre ciganos é costume simular o roubo da noiva.
Grais = cavalo, em romani.
Outrance = a todo transe; luta até à morte.
Romi = moça cigana, em romani.

 
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