CIGANO BEIJO VERSUS TENENTE JERÔNIMO
por Asséde Paiva & Geraldinho - publicado no Benficanet em 27/10/2014

Verídica, comovente, aventurosa e trágica vida de um cigano no Brasil antigo

1314 acessos.

Volta Redonda, fevereiro de 2008

Revisão abril, 2010

Revisão junho, 2014

 

“O nome literatura de cordel provém de Portugal e data do século XVII. Esse nome se deve ao cordel ou barbante, em que os folhetos ficavam dependurados, em exposição. No nordeste brasileiro, mantiveram-se o costume e o nome, e os folhetos são expostos à venda pendurados e presos por pregadores de roupa, em barbantes, esticados entre duas estacas fixadas em caixotes”. Nota de rodapé da Editora Luzeiro, em seus livros de cordel, de autores vários.

 

 
Após parte 1
Segue abaixo continuação...

67
Mas também desconfiou,
Talvez fosse papeada.
Seus olhos cheios de brilho,
Viram ela desarmada.
Com esta linda mulher
Não tenho medo de nada.

68
Olhou caprichosamente
Pra a mais linda criatura.
Seu coração disparou,
Diante da formosura.
Fez ela aquele beicinho
Provocou nele loucura.

69
João avançou para ela,
Puxou-a para um abraço,
Ela esquivou, saiu fora
Deu-lhe o maior cansaço.
Na queda que ele sofreu
Quebrou o dente e um braço.

70
Jogou-a no chão molhado
Pela chuva de verão.
Foi uma luta medonha
Arranca rabo do cão.
Como cortar a madeira
Sem acha, serra ou facão.

71
Ela esquiva, não cedia,
Mordia mão e goela.
Ah, meu Senhor! que porfia,
Da hiena e da gazela.
Inconquistável ela, diz:
“Vou comer tua moela”.

72
E tão escorregadia
Jararacuçu silente.
Meia orelha de João,
Despedaçou com o dente.
“Para mim, seu sangue quente,
É gole de aguardente”.

 
73
Embora digam que não,
Eu sou boa rapariga:
Trago o sol no coração.
Trago a navalha na liga
Comigo não tira farinha
Fazendeiro de uma figa.

74
Ele quis alisar seu colo
Mas ela fera ferida
Arrancou-lhe meia língua
Com uma feroz mordida.
Ai, João esbravejou:
Me machucou a maldita!

75
Lá de cima do rochedo,
Ela lamentou a sorte.
No vazio do abismo,
Projetou-se para morte.
Era u’a mulher selvagem,
Resistiu um monstro forte.

76
Rugia a água do rio
No momento de pavor.
Ficaram todos perplexos,
Deveras, foi um terror.
E os jagunços gelados,
Face aquele horror.

77
Neste momento tão triste
A natureza chorou.
A água que agitava
De repente acalmou.
Grito de Inês Maria
No abismo ecoou.

78
A serra silenciou,
O sol parou de brilhar,
O céu, claro, esmaeceu.
A tragédia teve lugar.
Beijo achou que ouviu
Sua querida lhe chamar.

 
79
Inês Maria findou-se
Depois de tanto lutar,
As folhas das bananeiras
Pararam de abanar.
Assim, a bela sereia
Voltou pro fundo do mar.

80
As nuvens lá na montanha
Que faziam serenar,
Circularam uma rocha
E se puseram a chorar.
No peito do pobre Beijo
Dor imensa sem parar.

81
João Gomes sem orelha
Curvado como bateia.
Muito sangue escorria
Do seu peito à areia.
Homem virulento, mau
Tinha podridão na veia.

82
Beijo viu tudo aflito
A desgraça da querida,
Daqui pra frente pensou
Não tenho pena da vida.
Não há remédio que cure
O sangrar desta ferida.

83
Ele era só agonia,
Vira toda rebordosa.
’Tava na mata fechada
Sob uma figueira-rosa.
“Vingo minha amada
Desta besta rancorosa”.

84
O cigano não chorou,
Vingaria a guerreira.
Com uma ira profunda
Aprumou a cartucheira
Mirou em João Gomes,
Um rato na ratoeira.
     
85
Na escuridão da mata
Findou a barbaridade.
Puxou gatilho certeiro
Bem na fronte da maldade.
O semeador de nuvem
Há que colher tempestade.

86
Com furo na testa larga
Aquele ser do Averno.
Caiu inerte, sem vida,
No abismo eviterno
O corpo foi para as águas,
Alma reta ao inferno.

87
Foi então que a matilha
Do morto, sem meio termo,
Entrou em grande peleja,
Com Beijo, naquele ermo.
Balas na noite escura,
Ele não era estafermo.

88
Morreram muitos bandidos
Naquele campo maldito.
A maioria fugiu;
Um ficou louco, aflito.
Ainda Beijo domado,
Derrubou alguns, no grito.

89
Não o mataram na hora
Para poder torturar.
Depois uma morte cruel
Eles queriam lhe dar.
Fazê-lo sofrer bastante
E depois o pendurar.

90
Não lhe foi atenuante
O fim de Inês Maria.
A do latifundiário,
O juiz ponderaria.
Pois a morte dos ciganos,
Não tinha qualquer valia.

 
91
Beijo muito machucado,
Pensou chegar sua vez
Na cidade de Palmira
Foi trancado no xadrez.
Ficou numa solitária,
Acho que mais de um mês.

92
No xilindró conheceu
Um sagaz prisioneiro,
Que tinha conhecimento,
Um pouco de curandeiro.
Ficou cheio de esperança
No instante derradeiro.

93
O feiticeiro o curou,
Beijo ficou muito forte,
Agora ele podia
Fazer a própria sorte.
“Vou sair desta cadeia,
Vou-me embora pro norte”.

94
Ocorreu o julgamento,
E Beijo foi condenado
A morrer naturalmente,
Na forca dependurado.
Mas esqueceram de que
Estava recuperado.

95
Beijo ouviu a sentença
Sem sequer pestanejar,
Ficou pensando a maneira
Da cadeia se safar.
Sentou-se tranquïlamente,
E pôs-se então a cismar.

96
“Eu cá sou boi de engorda,
Para esperar a morte?”
Arrancou barras de ferro,
Ele era mesmo um forte.
Usou toda esperteza,
Não ficaria pro corte.

 
97
Libertou o curandeiro,
Fugiram serenamente,
E sem ser reconhecido
Pelo guarda, lá presente.
Indo eretos, empinados,
E bem tranquilamente.

98
O cigano era ousado,
Forte como o rei leão,
Jurou nunca mais parar
No fundo duma prisão.
“Prisão é para cachorro,
Eu não sou cachorro não”.

99
“Se preso, prefiro a morte
Do que ser prisioneiro.
Nasci livre, vou ser livre
Sou cigano verdadeiro.
Posso estar ir e vir
Entre tendas e terreiro”.

100
Beijo se tornou então
Um bandido revoltado
Infernizou muitas vidas
De polícia e delegado.
Subia e descia a Serra,
Caminho e povoado.

101
Atacava comboieiros
Com fogo, pedras, pauladas.
Libertava os escravos
Que tinham mãos amarradas.
Depois caía nas brenhas,
Planejando emboscadas.

102
Ele mandou mensagem
Para os da legalidade,
No dia que ele cruzou
A fazenda da Herdade.
Estou cansado daqui,
Ficando pouco à vontade.
             
2ª Jornada

103
“Vou pra longe destas plagas,
Noutro local aninhar.
Saio da Serra Mantiqueira,
E vou pra Serra do Mar.
Quem quiser falar comigo,
Pode ir me procurar”.

104
“Dou todos por avisados
Pra que não haja murmúrio.
Que não falem mal de mim,
Ou volto neste tugúrio.
Ai de quem tagarelar
Viverá com mau augúrio”.

105
E lá na Serra dos Órgãos
Encontrou um companheiro
Amigo do Mão de Luva
Começou ganhar dinheiro
Faiscava ouro em pó
Vendia pra capangueiro.

106
E escondido nas brenhas
Com os outros companheiros.
Todos de muita coragem
Estupendos e guerreiros.
Os antigos combatentes,
Tornaram-se garimpeiros.

107
Agora, eu vou contar,
Tudo muito detalhado.
Porque o cigano Beijo
Lutou tão desesperado,
Foi como que ele morreu
Com chibalé enroscado.

 
108
Morro Azul, em Vassouras,
Neste Rio de Janeiro,
Em uma luta de bravos
Naquele plano maneiro,
Numa luta mano a mano
Morreu o valente guerreiro.

109
Francisco Paula Pereira,
Tenente lá do sertão,
Disse que pega serpente
Com a sua própria mão.
Apelidado Jerônimo,
Lá naquela região.

110
Francisco Mota Sayão
O cigano encorajado,
Sangue fervente na veia,
E homem desacismado,
Enfrentava mil perigos,
Dava conta do recado.

111
Na fama deitou na cama,
Havia um oponente.
E foram encurralados
Por soldados dum tenente.
A cobra então ia fumar
No lombo daquela gente.

112
Foram pro Morro Azul,
Sob um fogo infernal
Perto duma fazenda
E imenso bananal
Esconderam muito bem
Sem armas, sem arsenal.

113
O tenente Jerônimo,
Jerome, de apelido.
Disse eu pego, ou eu mato
O caminhante atrevido.
Se ele não vem, eu lá vou.
Tudo será decidido.

 
114
E ainda provocante:
Intimou com muitos gritos,
“Fugitivo salafrário!
Vou te fazer em detritos.
E vou mostrar que pau podre,
Não dá casca nem palitos”.

115
Beijo disse em bom som:
“Sou cigano inclemente,
Vamos num corpo a corpo
Não respeito o tenente.
Carne fresca igual a sua
Eu como gostosamente”.

116
Porque sou cigano Beijo
Fui batizado Sayão
Eu quebro pedra no peito
Tomo veneno e limão
Vou te fazer em pedaços
Porque sou um furacão

117
Tenente opõe no ato
Tu és cobra caninana
Rasteja aqui agora
E dá um beijo na lama
E meia-volta volver
Sujeito que só tem fama

118
O militar afrontou
Eu tenho fogo na veia,
Quero te pegar com vida,
Te devolver pra cadeia.
Lá te segurarei firme
Para tunda de correia”.

119
Beijo disse: “eu não vejo
Um macho na minha frente.
E ninguém me põe na cela,
Seja soldado ou tenente.
Que se cumpra o meu destino
E também da minha gente”.
             
120
Com o audaz comandante,
Doze homens bem armados;
Do outro lado, o do Beijo
Só homens desesperados.
Sim, eram todos leais,
Morreriam baleados.

121
O militar bem depressa
Em seu ginete montou,
Esporeou nas virilhas
O animal relinchou.
Beijo expert em cavalo
Assoviou, ele upou.

122
O grais escoiceou o vento
Pingolindo arretado!
Levantou soprando as ventas
Escarvou por todo lado.
Os soldados observaram:
“Ô animal enfezado!”

123
O Tenente tinha esporas,
De metal bem folheado.
Arreio de couro cru,
Bonito bem trabalhado,
Relho de cabo de chifre,
Com bonito anel dourado.

124
Beijo viu que era gogó,
E pensou num embaraço;
Abriu as pernas, bem largas
Como se fosse compasso.
Esperou pelos soldados
Para lhes passar um laço.

125
O tenente gritou: “fogo!”
Começou a confusão.
Era bala que zunia
De clavina e mosquetão.
O pipocar aterrava
Passantes no boqueirão.

 
126
Beijo viu a desvantagem
Se tombar para seu lado.
E alguns homens correram
Do tiroteio travado.
Estando com pouca gente
Sentiu-se desamparado.

127
Então puxou a navalha
Da bota que lhe calçava,
Saltou pra fora da vala
Onde nada o alcançava.
Expôs-se de corpo inteiro,
No meio da piaçava.

128
Caminhou bem devagar
Para poder ver direito.
Cruzou os braços e riscou
Com a cacherim o peito.
Comigo é tudo ou nada
Agora não tem mais jeito.

129
Mostrou que nada temia
Riscou de cima pra baixo,
Do corpo sangue brotou,
Como água rio abaixo.
“Aquele que me enfrenta
É um ganjão de penacho”.

130
O tenente deu um tiro
Bem na sua direção.
Visando acertar o tronco
Em cima do coração.
Errou porque o cigano
Estava de prontidão.

131
Beijo anteviu o tiro
Caiu sobre o pé direito.
A bala passou riscando
Nas costas, não fez efeito.
E debochou do tenente,
“Você é mesmo sem jeito!”

 
132
O tenente, rijo bradou:
“Quero ver se livra desta!”
Atirou mais para baixo,
A bala raspou-lhe a testa.
Beijo tornou provocar
“Isto é bala de festa”.

133
Beijo lhe disse raivoso:
“Não fique longe, canalha!
Seja homem me respeite
Sinta o gosto da navalha.
Quero ver se boto fogo
No teu cigarro de palha”.

134
“Venha me enfrentar só
Deixa esta cambada ver.
Sentirás, então, que sou
Osso duro de roer.
Ninguém se meta na luta
Que a mó está pra moer”.

135
Homens, devemos de ser,
Bravos, eu acho que sim.
Com a minha sevilhana
Vou cortar teu borzeguim.
Pois quero ver o tenente
No chão, comendo capim.

136
“Nascer, viver e morrer.
Esta é a lei da existência,
Porque, lutador enfrento
A morte com insolência.
Confesso que com você
Já perdi a paciência!”

137
“Pra cidade dos pés juntos
Tu vais logo e não minto.
Tu estás cacarejando,
Galinha chamando pinto.
O corte desta navalha
Vai te enviar pros quinto”.
138
O tenente replicou:
“Vamos brigar neste horto.
Farei de ti picadinho,
Um de nós acaba morto.
Tua cara é tão feia,
És filho do capiroto”.

139
Pulou da sela pro chão
Chamou embate fatal,
Desembainhou a catana
Xingou cigano chacal.
“Quero ver o teu churrasco
Na ponta do meu punhal”.

140
Dispostos e preparados,
Combatem à outrance,
’Tá escrito nas estrelas
Findavam naquele lance.
O segredo da vitória:
Nunca fuja e avance.

141
Eles eram sim, machões,
Tinham têmpera de ferro,
Prontos pra dar o bote,
Não venceriam no berro.
E Beijo provocou o outro:
“Eu mato, mas não enterro”.

142
Espada de aço níquel,
Cabo branco, de marfim.
No quartel era chamado
Temível espadachim.
Tenente diz “vou a ti
Não precisas vir a mim”.

143
Beijo guardou a navalha,
Desenrolou o chicote.
Um silvo cortou o ar,
Tenente sem laçarote;
Mas Beijo continuou
E cortou-lhe no cangote.

 
144
Tenente caiu de lado,
Só viu o couro cantar.
Com a espada na mão,
Em giro cortava o ar.
Rolou no chão, desviou,
Do Beijo a chicotear.

145
“Luta aqui cabra da peste!
Não venha com chicotada.
Sou um tenente de guerra,
Não tenho medo de nada.
Este relho, vagabundo,
Corto com a minha espada”.

146
Cigano diz ao tenente
“Tua lâmina chinfrim,
Não tem gume e quase cega
Ela é muito ruim.
Eu vou lhe dar uma sova,
Te fazer comer capim”.

147
“Com a chibata garanto,
Que na minha mão não falha.
Depois lhe dar uma coça,
Vou te picar de navalha.
Findarei com tua raça
E com teu fogo de palha”.

148
Deu-lhe uma chicotada
E lá se foi o penacho.
Outra lambada de mestre
Enroscou lhe no cachaço
Beijo o chicote puxou
Tenente foi para baixo.

149
Só que Beijo não contava
Com o fio do cutelo.
Tenente só com dois golpes,
Despedaçou o flagelo.
E agora estava livre
Para dar um golpe belo.

 
150
“Eu sou cobra venenosa,
Vamos brigar no cascalho.
A onça vai beber água,
E vou te sentar o malho.
Você é um arlequim,
Parece com espantalho”.

151
Cara a cara eles ficaram,
Procurando o xeque-mate.
Como dois escorpiões
Combatendo o bom combate.
Beijo provoca o tenente
“Vou rasgar o teu zuarte”.

152
Na esquerda o tenente,
Segura chapéu na aba,
Para garantir seu lado
Que a coisa estava braba,
Ele parecia insano,
Da boca descia baba.

153
Beijo enrolou na mão
Sua colorida bandana,
Protegeu pulso e dedos
Da espada durindana.
Mas se esqueceu do peito
Aberto como ventana.

154
Foram então circulados
Que não podiam abrir,
Puseram fogo no mato,
Pra ninguém escapulir.
E muita fumaça negra
Pro céu começou subir.

155
Aço contra aço chocava,
As faíscas pelo chão,
Estrelinhas pipocavam
Como dia de São João.
Então os dois contendores
Achavam tudo um festão.
156
Tenente de sabre em riste;
Beijo, a navalha em ação.
Clavinas ensarilhadas
Todos de punhal na mão.
Beijo só por um milagre
Sairia vivo ou são.

157
Dois esgrimistas exímios,
Mas só um vencedor.
Quem derrotasse o outro,
Seria o tal matador.
Deus! O que ferido fosse,
Sofreria um horror.

158
O tenente no início
Deu tremenda cutilada.
Beijo se esquivou lépido,
Do volteio da espada.
E sorriu inda faceiro
“Você errou camarada”.

159
O luar esmaeceu
Tragado por fumaceira.
Soldados os iluminaram
Pondo achas na fogueira.
Beijo disse: “agora sim,
Clareou a brincadeira”.

160
Do combate furioso,
Mostravam algum cansaço.
E os dois tecendo os ferros,
Parecem seres de aço.
Beijo disse pro tenente
“Você está um bagaço”.

161
A espera do momento
Do golpe terminativo.
O primeiro que errasse
É morto definitivo.
E assim o nosso herói
Lutava pra ficar vivo.

 
162
Beijo então muito lesto,
Deu um golpe de primeira,
Tirou botões da fardeta
Desde a gola à algibeira.
Tenente pulou pra trás
“Não venço desta maneira”.

163
Por muito tempo bailaram
Como bruxas em coorte.
Giravam e se protegiam
Daquele golpe da morte.
Mas era questão de tempo
Quem teria menos sorte?

164
O tenente cutucava,
E Beijo se defendia,
Com a mão bem armada
Com muito gosto feria.
“Segura esta estocada
Cachorro late, não mia”.

165
O militar leve, ágil
Várias vezes o atingiu
Ponta e corte da espada;
Beijo, tão fraco, caiu.
O sangue espirrava longe
Onde a espada feriu.

166
O cigano estava tonto,
Sangrava do topo ao pé,
Esvaía em fraqueza
Tombou sobre um sapé.
Jerônimo zombeteiro:
“Dá cheirada no rapé!”

167
Beijo gritou pro tenente:
“Eu sou maior e feroz”.
Da testa corria sangue
Vermelho, quente, atroz.
“És homem fraco, sem brio,
Vai costurar com retrós”.

 
168
Tenente bem mais tranquilo
Tentou um golpe atrevido.
Mas, Beijo negaceou
Do tal lance ocorrido.
Ora defendia, ora atacava
Oh, que homem resolvido!

169
“Renda cigano teimoso!”
Gritou o tenente mordaz
Contestou Beijo irônico:
“Minha’alma está em paz.
Nesta noite decisória
Vai visitar satanás”.

170
Murró rat te lolyarel e phuv!
Ele jurou em romani.
Meu sangue avermelhe a terra,
Muito longe ou por aqui.
Sou filho das labaredas,
Afilhado de Agni”.

171
Tenente fura de prima,
Pica tal qual beija-flor.
Beijo com churi de níquel
Diz “eu sou toureador.
Tu com a espada longa,
’Ta tremendo de pavor”.

172
O tenente deu moleza
Beijo temperava o aço.
Então aplicou um golpe,
Quase arrancou um braço.
Ainda falou mordaz:
“Tu vai ver mais o que faço”.

173
A navalha cortou fundo,
Na altura do antebraço
O tenente sentiu o frio
Da coluna ao espinhaço.
Sua mão ficou dormente,
Parecia um regaço.
174
E recebeu novo golpe
Bem acima do gibão;
Seccionou-lhe o pulso,
O chapéu pendeu da mão.
Tenente perdeu as forças,
Em desmaio foi ao chão.

175
Pois viu horrorizado,
Que sua mão balançava.
Segura por pouca pele,
E louco, desconsolava.
Jurou pela sua honra
Que do golpe se vingava.

176
Beijo então aproveitou
Pro tenente provocar:
“É este homem de joelhos
Que pensa me derrotar?
Comigo não tira farinha
Ajoelhou tem de rezar”.

177
Soldados ameaçaram
O cigano sem defesa.
Tenente, porém, gritou:
“Ele não é uma presa!
A luta é só entre nós.
Covardia não põe mesa”.

178
“Reúna suas forças homem!”
Disse Beijo com descaso
“Vou cassar tua patente,
Tenente a soldado raso.
Militar como tu mereces
Meu desprezo e pouco caso”.

179
“E será seu fim, malvado!
Receba o golpe final,
Visite vosso pai e mãe
Lá na corte infernal.
E se não morrer aqui,
Morrerá no carrascal”.

 
180
Beijo mostrou-se ferino:
“Hoje, tu verás o cão.
Vais direto pro inferno
Pros braços do cramulhão,
Porque é uma salamandra
Vomitada por vulcão”.

181
“Você pensa em me matar,
E está muito enganado.
Seja espada ou trabuco,
Tenho o corpo fechado.
Cigano não morre nunca,
Cigano fica encantado”.

182
“Quando eu estou combatendo
Dou cartas jogo de mão
Na faca navalha e refle
Enfrento até o cão
E você tenente fajuto
Covarde ou valentão?”

183
Tenente diz para Beijo,
“Tu vai encarar Luzbel.
Provar o sabor da morte
Que tem o gosto de fel.
Sou lutador intimorato,
Tiro guizo em cascavel”.

184
“Eu vou te passar a peia,
És canalha xexelento.
Eu sou pau de dar em doido,
Te prendo e arrebento.
Por fora és bela viola,
Por dentro pão bolorento”.

185
Esfuzilou o adversário,
Muito encolerizado,
Deu um galeio pra frente,
“Morra, então, desgraçado!”
Enterrou até nos copos
Beijo estava fisgado.

 
186
A estocada profunda,
A lâmina perfurou
O peito do pobre Beijo,
E seu coração parou.
“Jesus, Maria, José!
Este ganjão me matou”.

187
Mesmo ferido de morte
Pelo golpe que levou,
Ele abraçou o tenente
E sua pança cortou.
Era o princípio do fim
A luta então acabou.

188
Ziiip... veloz como um raio,
A sevilhana foi fundo,
Das costas ao abdômen;
Pro tenente, fim do mundo.
Homens duros como pedra,
Amolecem num segundo.

189
Rio de sangue brotou
Dos cortes, já esgarçados.
Tripas iriam ao chão,
Caso fossem separados.
Pareciam se beijando,
Tal como dois namorados.

190
Os olhos, carvões acesos,
Tomaram mortal palor.
As luzes diminuindo
Apagavam o fulgor.
Terminava o embate
Sem vencido ou vencedor.

191
Como dois gladiadores
E de sangue ensopados.
Posseidon, Adamastor,
Morreriam enlaçados.
Eles ficaram famosos
E por outros imitados.
192
Suor e sangue na terra
Não apagou a memória.
Na cidade de Vassouras
Comenta-se a história.
Ficou na mente de todos:
Eles merecem a glória.

193
Campas estão lado a lado
Juntos como não se viu.
Na vida digladiavam,
A morte os chamou psiu!
Não acredita? Pergunte!
Há quem jure que ouviu.

194
Nos dias de sol ou chuva,
Noite clara ou escura,
Contam a história trágica
Dos dois titãs em bravura.
Com espada e navalha
Foram para a sepultura.

195
Olha a força do destino
Que nos une muitas vezes.
Beijo e tenente juntos,
Como irmãos siameses.
Devem ir para Olímpia
Residência dos deuses.

196
Marcou a campa, ou sepulcro,
A bela cruz trabalhada,
Lá na cova do tenente
Onde ela estava fincada.
E no túmulo de Beijo,
Pedra-sabão ovalada.

197
Com eles são enterradas
Armas, punhais e alabarda.
O tenente com a espada
Beijo com a espingarda.
Amarrada à sevilhana
Arma que lhe dava guarda.

 
Jornada espiritual

198
Tão ferozes, no além.
O ódio superou a vida.
Tenente, alma penada,
Dá a Beijo arremetida
Seriam então seus fados
A luta eterna, renhida?

199
De passagem pelo umbral
Não fizeram uma parada
Pois estão digladiando
Sem dar uma descansada
Nem sabem que são espíritos
Com tanta raiva adubada

200
“Beijo diz, eu não morri
Também eu te enganei.
Nunca matei por gosto
A minha amada vinguei.
Agora estou deste lado,
Eu apenas me mudei”.

201
Tenente diz “sou órfão,
Fui criado no quartel.
Entrei como anspeçada
Vou chegar a coronel.
Encaro qualquer cigano
E nele passo o cinzel”.

202
E foram pro purgatório
Por matar com violência.
As almas atormentadas
Precisavam de clemência.
E percorrem o universo
Com muita impaciência.

203
Contudo ignoravam,
Serem escravos do mal.
Seguem em luta titânica
No mundo sideral.
Pois eram dois avantesmas,
Dominados pelo o Tal.

 
204
E seguiram travando
Uma luta imortal
Impossível de medir,
Em escala decimal.
Beijo esgana o tenente,
Chamando-o cobra-coral.

205
Espíritos benfeitores,
Doutrinaram os brigões,
Em nome do Pai Eterno
Cessaram as agressões.
A partir desse momento,
Tornaram-se dois irmãos.

206
E voaram pelos ares,
No vazio estelar
Vagaram dois anos-luz
Dia e noite sem parar.
“Para nós aqui há pouco
Espaço para brigar”.

207
Valei-me Nossa Senhora!
Medianeira de Jesus,
Ajudai aquelas almas
Encontrar Eterna Luz..
Baquear, pedir consolo,
Ao pé da sagrada cruz.

208
Beijo mostrou-se amigo,
E muita compreensão:
“Eu perante o Criador,
Quero pedir perdão
Vamos limpar o passado,
Aceitar a salvação”.

209
Sob a esfera luminosa,
Feliz conciliação.
O tenente e o cigano
Remiram da maldição
Pelo arrependimento
Alcançaram redenção.
210
Cessaram hostilidades
Com abraço fraternal.
E o perdão de Deus Pai
Foi dado, ponto-final.
E são bem-aventurados
Na mansão celestial.

211
Vou encerrar este épico
Que vi, juro por Deus!
No Monte Azul, Vassouras
Perto dos meus e dos teus.
Na espada e navalha
Foram dois filhos de Zeus.

 
212
Há uma lei da existência:
Que a morte não é o fim.
É preciso renascer,
Pra progredir, enfim.
É para que todos sejam
Puros espíritos, sim.

213
E muitos anos depois,
Da morte dos combatentes.
O mundo deu muitas voltas,
Vamos revê-los contentes.
Sob mesma tenda cigana,
Gêmeos adolescentes.

 
214
Desponta de outra tenda,
Estrela que alumia.
É uma romi dengosa,
As curvas em sincronia.
Seu nome vós não sabeis...
Vos direi Inês Maria.

215
E assim vai acontecer
Muitas vezes se deduz
Sempre haverá progresso
É mandado do Ser de Luz
O “Homem” do sumo bem
É o amado Jesus.
Significados de alguns verbetes

Agni = na mitologia védica é divindade do fogo, e também fogo para os ciganos.
Barô = chefe cigano, em romani.
Cacherim = punhal.
Capangueiro = indivíduo que comprava ouro e diamante, nos garimpos, nos tempos do Brasil Colônia e Império. Contrabandista, atravessador.
Catana = espada.
Citério = relativo à beleza feminina.
Chibalé = adversário, contendor, não cigano.
Cramulhão = demônio.
Churi = navalha, em romani.
Gadjê / ganjão / gadjô = não-cigano, em romani.
Gamada = roubada, apaixonada. Entre ciganos é costume simular o roubo da noiva.
Grais = cavalo, em romani.
Outrance = a todo transe; luta até à morte.
Romi = moça cigana, em romani.


 
© direitos reservados desde 2008 -  benficanet.com - contato@benficanet.com