Pois bem, os chapeuduvenses após cansativas
labutas semanais tirando areia do Rio pro ‘seu’ Henrique
Dias, seja trabalhando como roceiros ou retireiros de
fazendeiros, ou mesmo na soca de linha, sob comando do
feitor, ‘seu’ Cândido; todos, ou quase todos, iam ao campo
suar a camisa, jogando bola que naqueles tempos heróicos
usava câmara de ar e era costurada por fora.. Os que não
jogavam assistiam, papeavam e tomavam uma cachacinha ou
conhaque, enquanto xingavam o juiz de ladrão. O campo era
situado numa área gentilmente cedida pela família dos
Teixeira de Carvalho. Quando não era só treino e havia jogo
dito ‘oficial’, a convocação se fazia afixando os nomes dos
titulares e reservas no quadro envidraçado, no prédio da
venda de José Mansur, onde todos sabiam quem iria jogar e
qual era o time Visitante. Num grande quadro-negro, na orla
do campo, mais ou menos na altura da linha divisória, ficava
os nomes Aymoré X Visitante. Pequenas e
pretas placas de metal, numeradas, ficavam amontoadas ao
lado de um auxiliar, que as ia substituindo no grande
quadro, à medida que surgiam gols. Do outro lado do campo,
rancho protegia os assistentes/torcedores dos raios de sol.
Curiosamente, não havia torcida feminina: o futebol era
machista. Os torcedores cantavam o refrão: Jorge Mansur
e Chico Sinhana / Resolveram combinar / não deixar bola
passar / pro Aymoré ganhar. Confesso que esqueci (já se
passaram 65 anos) com quantos times Aymoré jogou, foram
muitos. Um jogo ficou retido na peneira furada do tempo, foi
um amistoso entre nosso time e o timaço de Benfica.
Nós achávamos que éramos os bons, porém, o de Benfica era
muito melhor e levamos uma surra de seis a zero (6 a 0). Foi
uma senhora goleada. Vimos que nosso time não era páreo para
o de Benfica. E acho que o nome era Benfica
mesmo. Nesse fatídico dia, vi Jorge Mansur, um paredão,
levar uma canetada e cair sentado, desolado, patético, no
gramado. Lamento não me lembrar nitidamente das cores do
uniforme do Aymoré, talvez fossem camisas alvinegras e
calções brancos, parecendo com o do Tupy, de Juiz de Fora.
Nosso clube tinha sede social num salão, ao lado da linha
férrea e no mesmo casarão dos mansur, bem em frente à
estação ferroviária. Aos domingos e à noite acontecia o
arrasta-pé, onde dançávamos ao som da sanfona de oito-baixos
de João (José) Lourenço, ou outro sanfoneiro disponível.
Tenho saudade de senhora Antônia (falávamos s’Antonha), que
me ensinou os primeiros passos, ao som de Asa Branca, de
Luís Gonzaga. Também não esqueço de que éramos observados
severamente pelos nossos pais que, após as oito horas ou, no
máximo, as nove, nos expulsavam para que pudessem se
divertir. Claro, eu saía irado da vida, mas esta era lei; a
lei dos pais, dos mais fortes, na base do manda quem pode,
obedece quem tem juízo, dura lex, sed lex. Tínhamos
que deitar cedo, levantar cedo e trabalhar. Nossa vida era
cheia de verbos: campear, ordenhar, curar, amansar, cercar,
segar plantar, regar, colher etc. Vida na roça não é mole
não; são, de fato, 365 dias por ano, de trabalho. Se, acaso,
tivéssemos de tirar leite, que era o nosso mister, só
descansávamos, aos domingos, após meio-dia. No arraial de
Chapéu rotineiramente era assim: domingo, à tarde, futebol;
à noitinha, ‘footing’(passeio) ou vaivém, na imensa
plataforma da estação do trem de ferro, onde surgiam os
namoros e talvez casamentos e; ao escurecer, dança na sede e
sala de troféus do Aymoré. Quais eram as meninas, nossas
parceiras a bailar? Não sei! Vagamente, lembro-me de
Hercília, Selma, Elza, Ivone, Maria José, Aparecida,
Imaculada, Lola, Lecy, Letícia ou Lucy, Lurdes, Conceição,
Arlete, Salete entre outras. Minha queridinha, mais bonita,
brotinho, flor, nada direi pra não encher a sua bola: A
dela. Decifra-me ou te devoro...
Por isso, digo, redigo que falar só de futebol é chato;
então, peço vênia aos leitores para contar um caso de
amores, num paragrafozinho:
Ocorreu séria desavença entre meu tio
Jovelino com a Alvir, filho de Aníbal Zacarrão, que nos
trouxe grandes tribulações. Antigamente era assim: Se um da
família se indispunha com alguém de outra família, todos
ficavam ‘de mal’. E deixamos de conversar com o pessoal dos
zacarrão. Porém, o fato permitiu nossa versão caipira, e em
dose dupla, da história do amor de Romeu e Julieta. As
filhas de sô Aníbal eram lindas e ressalto entre elas Atilde
(Tidoca) e Edmeia. Tidoca, sim, era linda como a gota de
orvalho no inhame. Em nosso lar, meu irmão, Expedito e
Agostinho (meu tio), adolescentes plenos de saúde e
hormônios à flor da pele, na casa dos 16 e 20 anos,
ignorando e independente da inimizade existente entre os
minga e os zacarrão, moços e moças se enamoraram. Mas como
encontrar e trocar as tais juras de amor? Sem problemas,
para quem está apaixonado: O rio Paraibuna passava ao lado
de nossa casa, após caprichosa curva e corredeira, sob um
pontilhão, costeava os fundos da casa de sô Aníbal. Meu
irmão e tio arranjaram uma canoa e por ela se dirigiam até
ao fundo do quintal da família dos zacarrão e, com todo
respeito, namoravam Atilde (Tidoca) e Edmeia. É...
Shakespeare fez escola, nos rincões de Minas gerais. Fim do
paragrafinho amoroso.
Voltando ao tema futebol, certa vez, formei um time de
garotos: Aymoré-mirim lhe chamei. Esqueci nomes de meus
colegas do time, porém, Becão era o bom, mas não era ‘beque’
mas, sim, goleiro e de Valtinho, filho do feitor da soca de
linha férrea; este, sim, era 'beque', ou ‘stopper’,
zagueiro, uma muralha. Dos jogadores/meninos do time de
Paula Lima só restaram os nomes de meu amigo Didinho, Baú e
de Vicente (pé torto); dos demais, esqueci inapelavelmente.
Formado meu time, à época escrevi ‘Convocação dos moleques’,
no quadro de avisos, fomos jogar contra o pessoal de Paula
Lima. Ah, meu Deus, que massacre! Levamos histórica surra
com o placar de onze a zero (11 a 0). Antes do final do
jogo, os adultos invadiram o campo, acabaram com nosso
vexame. O jogo terminou no que chamávamos e chamamos
‘pelada’ entre adultos e menores de ambos os povoados. Nosso
Aymoré-mirim nasceu e morreu com um único jogo e voltamos às
inocentes ‘peladas’, antes dos jogos oficiais do time de
adultos. Certa feita fui centroavante e fiz um gol no Becão.
Eu era um ‘perna de pau’, muito ruim de bola que, no meu
caso, era quadrada. Então, me dediquei às atividades
intelectuais, acho que me dei bem; mas, isto é outra
estória. Pois é, nos idos de 1944/1946 eu era um menino
fraquinho, franzino, miudinho, introspectivo, medroso e
qualquer um me punha para correr. [Nesta vida: quantas
corridas levei / quanto trabalho passei / quanta rasteira
tomei / quantas barreiras pulei].
Nos dias de jogo do Aymoré, colhíamos em nosso imenso
laranjal, dúzias de laranjas e enchíamos uma carrocinha com
elas e outros produtos agrícolas. Eu, minha irmã, Aura e
eventualmente, meu primo Walter Leite, saíamos vendendo aqui
e acolá, puxando o carrinho, bem pesado. Está bem nítido em
minha caixa de segredos que, ao passar perto da venda dos
mansur, nós acelerávamos os passos, porque não queríamos
vender para dona Bahia, a matriarca dos mansur. Ela,
espertamente, retirava quinze ou mais laranjas (que
desapareciam nos enormes bolsos da saia) e pagava como se
fosse uma dúzia. A velha senhora, a dama de preto era
atraída pelos nhóinc-nhóinc abafado das rodas ferro
sobre os pedregulhos e nos fazia parar, autoritária. “Dona
Bahia, eu lhe perdoo a esperteza”. Ao chegarmos ao campo de
futebol, éramos rodeados por muitos, que chupavam tantas
laranjas, quantas queriam; e pagavam menos do que deviam
pagar. Impossível para nós, crianças, saber o quanto cobrar
de cada um. Aos espertos daquele tempo, dou-lhes minha
compreensão, porém, segundo as Sagradas Escrituras, a gente
colhe o que semeia ou, em outras palavras:
A semeadura é livre, a messe é obrigatória.
Ainda, com relação ao bravo Aymoré, tão bravo quanto os
índios que lhe deram o nome (aquele que morde), no início da
década de 1950 houve grande desentendimento no clube, porque
um jogador (esqueci o nome, talvez sô Vicente Laurindo),
reserva, sentiu-se prejudicado, se julgava ser bom o
bastante para ser titular, no primeiro time. Como o técnico
não concordou com ele, aconteceu o cisma. Desta cisão surgiu
outra equipe dissidente: o estrambótico Guará Futebol Clube.
Nome de um refrigerante em voga, na época, que tinha o lema:
Guará, Guará, Guará, melhor refrescante não há! O
primeiro e único presidente foi nada mais, nada menos do que
meu pai, João Minga. Papai pediu a José Vieira Tavares
cessão de um terreninho para campo do Guará. Tomou uma
espinafração do velho Vieira, que o mandou criar juízo e que
fosse trabalhar e cuidar da família, em vez de quizilas
futebolísticas. Assim, Guará morreu no nascedouro, sem ter
onde treinar ou jogar, porque o Aymoré corretamente não lhe
emprestou seu campo. Fim do Guará, fim da besteira de uns
poucos revoltados. E Aymoré continuou firme e forte, através
dos tempos. Muito mais tarde, soube que a família Teixeira
lhe tomara o campo. Ah, que maldade! Tempos depois, em
acordo, devolveu. Foram informações esparsas, porque há
muito eu deixara Chapéu D’Uvas. Caminhos ou descaminhos do
destino me levaram em ondas; ora calmas, ora turbulentas,
para outras praias e plagas.
Nos embates da vida somos marcados por momentos felizes ou
infelizes, que servem para nos dar a sabedoria de que tudo
que nos acontece é, em última análise, para nosso bem. No
outono da existência, ao olhar para nossas cicatrizes, temos
marcas indeléveis, doces recordações, como a estação
ferroviária de Chapéu; o Cruzeiro, no alto do morro, com
braços abertos, nos convidando à meditação e à oração; a
Igreja de são José; as festas ao padroeiro e as missões; o
rio Paraibuna (que abraça nossa terra, nossa gente) e seu
pontilhão assustador; a represa que levou 40 anos para
construção; a via férrea (transportando minério de ferro
para Siderúrgica Nacional; composições de gado para o Rio de
Janeiro; mercadorias diversas e trens de passageiros);
enfim, o povo maravilhoso de Chapéu D’Uvas. Símbolos que não
esqueço, porquanto, são ícones de um tempo que se foi...
Entre esses marcos, um sobressai mais nítido, mais
apaixonante, o brioso Aymoré Futebol Clube,
o qual eu elejo, com muito orgulho: Entidade
inesquecível.
E vou saindo devagar, devagarzinho, repetindo um trovador
anônimo:
Minha gente, eu vou-me embora, / mineiro está me
chamando / mineiro tem este jeito /
chama a gente e vai andando. //
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Pendências e desafios aos leitores, internautas:
I) Data da fundação do Aymoré;
II) Nomes dos fundadores;
III) Os 11 titulares, no período de 1947/48/49;
IV) Escudo, dístico ou brasão.
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