por Asséde Paiva
(Rosarense), bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos.
 
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CANDINHO
  

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A vida: uma fenda de luz que a morte, como um zíper, torna a fechar fulminantemente.

Asséde Paiva.

 

Era em 29/1/1962

Candido Ferreira Barroso (Candinho), meu conterrâneo eu o conheci muito bem. Éramos amigos e mineiros. Antes de virmos para Volta Redonda, nós morávamos em localidades próximas, isto é, a mais ou menos sete quilômetros de distância: eu, em Paula Lima; ele, em Ewbank da Câmara, bairros/distritos de Juiz de Fora. Ambos mudamos para Volta Redonda em busca de emprego seguro e cuidar do nosso futuro, pois pensávamos em melhorar de vida e ajudar nossos respectivos pais, que ficaram em Minas Gerais. Tive mais sorte e logo fui admitido na Companhia Siderúrgica Nacional – CSN. Naquele tempo, nos idos de 1955, empregar-se na siderúrgica era nosso sonho de consumo. A CSN pagava um dos melhores salários do Brasil, perdendo apenas para o Banco do Brasil. Hoje, chegando aos 73 anos, a CSN não é antiga; ela tem história: matriz de técnica; foi a maior siderúrgica integrada da América Latina; empresa de ampla visão social etc., e a doce Pittsburgh Fluminense.

Pois bem, eu empregado há quase um ano, e Candinho ainda lutava para garantir um lugar ao sol. Ele era fraco em português e aritmética, condição única que empresa exigia para admissão ao seu quadro de pessoal, como servente. Cheguei a dar alguma orientação a ele sobre as quatro operações, e como escrever uma carta-bilhete solicitando emprego.

De vez em quando, batíamos papo na venda do Juju, onde ele fazia hora, enquanto o emprego que tanto queria não acontecia.

Candinho era charmoso, tinha boa aparência, muito simpático e comunicativo.

...E o tempo corria e um dia, da janela da minha casa, assisti a um colóquio entre ele e bela moreninha de cabelos cacheados. Não havia excessos, só "amasso” carinhosos, nada inconvenientes. Como não sou fiscal de costumes, deixava os amantes inebriarem-se a gosto. Ah, o amor!

Brinquei certa feita, com Candinho sobre seu namoro, ele me disse estar apaixonado pela menina e pretendia noivar breve e se casar, assim que amealhasse algum dinheiro.

Meses se passaram, e Candinho finalmente “fichou” na CSN, precisamente no Departamento de Aciaria – DAC, onde se transformava, por processo físico-químico, o ferro-gusa liquefeito, em aço carbono, de grande uso na indústria pesada. Vez por outra, nós cruzávamos: ele vindo do turno de zero hora, e eu indo fazer compras no armazém do Dinho. Morávamos na mesma Rua 208. Eu trabalhava no Departamento Industrial de Vendas – DIV. Trocávamos rápidos cumprimentos e seguíamos a vida.

Pois bem, Candinho não completou um ano de casa...

Em nosso costumeiro ir e vir, ele me falou que no seu turno (zero as oito) ia tirar uma “pestana”, pois o carro misturador/transferidor de gusa líquido na sua área estava em reparo geral. Assim, ele podia descansar enquanto o pessoal do Departamento de Refratário – DRE trabalhava. Candinho pretendia viajar a sua terra natal no dia seguinte, para buscar papéis úteis pro casório futuro. E parecia muito feliz.

Estava escrito que algo muito grave ia acontecer...

Ele sonhava as quatro e quinze da madrugada nevoenta e fria.

E foi seu último dia de sono... no Planeta Azul.

Quatro horas da manhã... O Auxiliar de Enfermagem Ettore Dalboni da Cunha, lotado no Departamento de Segurança Industrial – DSI olhou para o relógio na parede e deduziu que em menos de quatro horas findaria seu turno de zero hora, e iria para casa descansar, embora aquela noite não fora cansativa: alguns curativos, injeções, medidas de pressão ou de temperatura e “conversa fiada” com os atentos operários que o procuravam. Assim, resolveu entender um colchonete para repousar os ossos. Nem chegou a deitar, porque a boca do inferno explodiu: língua de fogo destruiu o telhado; a cadeira da enfermaria caiu, a mesa virou, papéis voaram e vidros estilhaçados para todos os lados. Gritaria e pedidos de socorro; um pandemônio. Ettore pôs-se de pé e logo chegaram feridos: uns andando; outros, carregados. Ele fazia o possível a fim de minimizar o sofrimento geral. Para alguns traumatizados mentalmente, ele dava copo d’água, com açúcar, mentindo, caridosamente, que ministrava poderoso medicamento.

Mas o que acontecera?

O serviço de reparo do misturador terminara e iniciara-se a rotina normal. Um operador de ponte-rolante desceu enorme dupla de ganchos, presos em viga transversal, para pegar a panela cheia de gusa líquido, pesando quase setenta toneladas e levá-la ao forno Siemens Martim, onde se operava a transformação do gusa em aço, mediante adição dos ingredientes redutores: carvão, manganês, calcário, oxigênio, dolomita etc. Aconteceu uma desgraça: um dos ganchos da ponte-rolante ficou mal posicionado no munhão da panela e, assim foi alçado, mas despencou de uma altura de trinta metros. Embaixo, havia uma poça d’água, e o gusa liquefeito caiu sobre ela, acarretando enorme explosão: ferro, fogo, metais e vapor para todos os lados. Instantaneamente, morreram 12 empregados carbonizados, que viraram pequenas massas negras, informes. Alguns só reconhecidos pelas arcadas dentárias e pela análise dos cartões de ponto.

Entre os desaparecidos, nosso conterrâneo Candinho.

E aqui termina a história trágica do amigo; entretanto, ele deixou sua herança genética, pois enamorados e apressados comeram a cereja do bolo da festa de casamento antes da hora, e sete meses depois nasceu o filho de Candinho e Geralda.

 

A morte não é nada,
Eu somente passei para o outro lado do caminho.
Eu sou eu, vocês são vocês.
O que eu era para vocês, continuarei sendo.
Me deem o nome que vocês sempre me deram.
Falem comigo o que vocês sempre fizeram.
Vocês continuam vivendo no mundo das criaturas, eu estou vivendo no mundo Criador.
Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir daquilo que nos fazia rir juntos.
Rezem, sorriam, pensem em mim, rezem por mim.
Que meu nome seja pronunciado como sempre foi, sem ênfase de nenhum tipo, sem nenhum traço de sombra ou de tristeza.
A vida significa tudo que ela sempre significou.
O fio não foi cortado. Por que eu estaria fora de seus pensamentos agora que estou apenas fora de suas vidas?
Eu não estou longe, apenas do outro lado do caminho...

Texto publicado no Benficanet em 22/03/2019

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