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por Asséde Paiva
(rosarense), bacharel em Direito e Administrador. Autor de Organização de cooperativas de consumo (premiado no IX Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em Brasília); Brumas da história do Brasil. RIHGB nº 417, out./dez. 2002; Possessão, São Paulo: Ícone Editora, 1995; O espírito milenar, Goiânia: Editora Paulo de Tarso, s.d. Trabalhou na CSN 35 anos.

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TIQUE-TAQUE E O MENINO

Pois é, me deu vontade danada de contar esta estória que se passou há muitos anos. Não chega a ser aventurosa; é emocionante. É sobre o menino que veio da roça. Vamos fazer viagem fantástica no tempo, este cavalo indomável que sei montar e marcar.

Foi num belo dia de sol quente entre nuvens brancas que o menino apareceu. Vinha com o pai que carregava mala; velha, desbotada, surrada, das que fica em canto da casa guardando bugigangas, até que seja alçada à posição de mala de viagem. Eu os vi subirem degraus iniciais da longa escadaria do educandário e caminharem devagar em minha direção. Eu estava no salão de entrada. Esperei-os impávido, ereto; sempre dou boas-vindas aos que chegam. Na entrada pareciam indecisos. Olharam em direção à Secretaria querendo ser vistos, e foram; de dentro, uma velhota de olhos míopes se levantou e veio a eles:

— Que quer senhor?

Mostrando alguma insegurança, rodando o chapéu entre dedos, o homem disse:

— Vim trazer meu filho para estudar no colégio, caso haja vaga.

— Ah, está bem, então vou chamar o diretor. Entrem naquela sala.

Ao meu lado, sobre o portal estava escrito "Recepção". Eles entraram e correram os olhos pelos móveis da sala: ao centro cadeiras empalhadas e uma poltrona com três assentos. Ao canto um cabide para chapéus, capas e guarda-chuvas. O senhor recém-chegado pôs o chapéu no gancho, mas o menino, inquieto, saiu da sala e voltou ao salão de entrada, ocasião em que o observei melhor. Magrinho, rosto fino, dentes limpos e proeminentes, cabelos pretos e traços tristes. Olhou-me, quase tocou minha cara redonda, muito branca. Ele fixou em meus braços finos como palitos, e que marcavam onze horas. E, de repente, nós estávamos interagindo, conversando.

— Bem-vindo! Com certeza veio estudar aqui, não é mesmo?

— Sim, vim! — respondeu-me ele, surpreso.

— Pode me chamar Tique-Taque, ou só Tique, como quiser. Seu nome não precisa dizê-lo; você é aluno, Aprendiz, neófito, calouro, iniciante, e vamos seguir muito amigos.

Chegou o diretor e interrompeu nosso diálogo, levando o garoto para a sala, onde o pai os aguardava.

— Sentem-se –– convidou-os cortesmente o diretor, indicando o sofá chippendale.

Dando início à conversa, às falas de praxe perguntou de onde eles vinham o que pretendiam. Satisfeito, julgando que o recém-chegado fosse grande fazendeiro no Triângulo Mineiro, o diretor abordou o desdobramento da crise do zebu.

Eu, Tique-Taque, ouvia tudo.

Notei que o pai do menino ficou meio desconfortável, porque nada sabia de crise, nem de zebu. Na verdade, ignorava o assunto, porque era apenas arrendatário do sítio Chalé, num lugarejo apagado no mapa. A conversa esfriou como almoço posto há horas.

O diretor mandou chamar a senhora que seria a responsável pela nova residência do menino, pois, segundo decisão do pai, ele ficaria interno já que não tinham parentes na cidade. Eu fui o primeiro a ouvir os passos ligeiros mulher sobre ao piso de madeira, no corredor. Ela passou por mim, sem maior deferência e foi ter aos três que a esperavam. Apresentada, pegou o menino pela mão e levou-o. Ao passar por mim, ele me dirigiu um olhar cúmplice e subiu as escadas do dormitório esbarrando a velha mala nos degraus. O menino seria levado ao quarto onde já estavam os novos colegas. A seguir, a mulher lhe indicaria o armário, a cama disponível, mostraria o banheiro coletivo, o ensinaria a estender os lençóis na cama, dispor toalhas de banho, como ordenar sapatos e chinelas; a hora de levantar, comer e deitar. Finalmente ela lhe mostraria a sala de aulas, bem como lhe apresentaria os colegas de quarto e de classe.

Eu, Tique-Taque, sei das coisas... Sou muito velho, atravessei o Atlântico com o senhor Reitor deste Colégio e vivo neste pedestal. Observo, ao correr do tempo, o entra e sai de professores, o ir e vir dos funcionários, a fuga de aluno gazeteiro e certos desentendimentos nada graves entre alunos. Vejo pais virem pagar anuidades e visitar os filhos. Vejo parentes, vez por outra, aparecerem para levar jovens à cidade e ao cinema. Meço o tempo que se vai entre meus braços de horas e minutos.

Eu e o Aprendiz que veio da roça, fizemos sólida amizade. O apelidei Companheiro. Meses, anos se passaram. Um dia ouvi passos perdidos no corredor, e os distingui como sendo os dele.

— Até que enfim você reapareceu, Companheiro. Pensei que havia se esquecido de mim.

— Não, você é amigo, meu primeiro amigo. Tenho andado por aí tentando novas amizades, mas está difícil; sou pouco comunicativo, tímido demais, desconfiado e arisco; afinal, sou bicho do mato, como dizem. Meus colegas internos gostam de tagarelar, enquanto prefiro ficar na biblioteca lendo, pesquisando, estudando, escrevendo. Tique-Taque, o que está escrito no alto da parede?

— Virtude e Perfeição. É nosso lema.

— Tique-Taque, eu tenho medo. Nosso fiscal de disciplina é muito bravo, ele usa bengala. Quando a gente pede borracha, caneta, lápis ao colega, ou faz um cochichozinho, ele dá bengaladas na mesa que estrondam no meu ouvido e me fazem pular na carteira.

— Paciência, Aprendiz! Ele é deficiente, tem a perna atrofiada. Foi pólio. Fica irritado por ser diferente e em muitos casos é desencorajado a participar de esportes e outras brincadeiras. Merece compreensão por desabafos.

— Tique-Taque, ele é chefe do dormitório também. Zela pelo silêncio, após o apagar das luzes, e não se pode dar pio que a bengalada reboa pelo corredor. A gente até cobre a cabeça de susto.

Tempos depois o garoto voltou a visitar-me e continuamos nossa conversa.

— Sabe de uma Tique-Taque? Estou assustado, quase fui expulso.

— Quê aconteceu?

— Estava na classe, assistindo à aula de História Sagrada, creio que o professor é muito impaciente... e muito duro, tem Deus na boca e longe do coração. Aliás, mudando o rumo da prosa, este colégio é enorme.

— Sim, e todo branco. Costumam chamá-lo Gigante Branco, foi construído por um Grande Arquiteto, mas falávamos da quase expulsão, quando o assunto mudou.

— Um colega fez brincadeira jogando gaivota de papel na sala, que foi direta ao traseiro do professor. Ri, justo quando ele se virou para mim. Pegou-me pelo braço e levou-me ao Reitor. Falaram em língua disgramada, que não entendi.

— Inglês, meu filho, é inglês! Você vai aprendê-la. Eles são conterrâneos, falaram no idioma da terra deles.

— Fui trancado em sala minúscula, esperando com o coração aos pulos, refletindo meu destino. Ouvi o Reitor falando zangado: "Esses desgraçados!", e foi à Secretaria, examinou minhas notas ótimas. Voltou mais pacificador, conciliador, me deu conselhos, me liberando para assistir às aulas, mas não me livrou do castigo: um mês sem saída aos domingos, com estudo dirigido em sala especial, a sala dez.

— Agora, tudo bem, não é?

— Sim...

— Saia daqui, e rápido! diz Tique-Taque. Passou o primeiro vigilante, vêm aí o Mestre e o Secretário.

Eles passaram sem importuná-los. Ufa! O menino falou:

— Já vou terminar. Alguns colegas de classe ou de dormitório são atrevidos, me põem apelidos infames. Não vou repeti-los porque tenho vergonha. Para zombarem de mim até me obrigaram a medir o quarto com um palito de fósforo. Dias atrás, fui atropelado por estudantes que corriam para o café da manhã. Ninguém me ajudou nem me perguntou se tinha machucado. Levantei-me muito magoado pela indiferença deles. E me deram gelo...

— Gelo. Esta brincadeira é nova, explique-me, rapaz.

— Falam 'dar gelo' quando grupinho de colegas combina não "ouvir" alguém por tempo indefinido. Isto me doeu demais. Tem mais, mas chega de lamentações.

— Você deve confrontá-los!

— Não posso. Tenho muito a perder.

— Aguente firme, quer ir embora, voltar para a roça?

— Deus me livre! Lá tem trabalho o ano todo: aos sábados e aos domingos, mesmo nos feriados e dias santos de guarda. Vou ser doutor para curar os doentes. Ah! Tique-Taque, que tolo fui! Papai me deu cinquenta cruzeiros para comprar material esportivo, alguns livros e um Atlas escolar. Pus a nota no bolsinho da camisa e fui brincar na hora do recreio. Perdi o dinheiro. Outros o acharam e gastaram com sanduíches, chocolates e refrigerantes. Eu, com fome os vi alegres, bebendo e comendo do meu dinheiro.

— Que falta de sorte, hein, amiguinho! Quem não cuida do que é seu...

E dois anos se passaram. O Aprendiz tinha um grande mestre, que lhe ensinara as funções do esquadro e do compasso. Estudos, muita disciplina, boa alimentação, esportes, ginástica, biblioteca (onde ele passava horas e horas). Havia colegas bons e maus, ele tinha que suportá-los.

Eis que o jovem reapareceu no salão de entrada do Gigante Branco, com fácies tristes.

— Ai de mim Tique-Taque! Deixei o internato, estava muito caro, meu pai me pôs numa pensão na cidade. Fiz novos colegas em outra classe, agora mista. Algumas meninas são muito bonitas, mas também não ligam pra mim, nem me pediram para escrever algo no álbum de recordações delas.

— E como se sente na nova turma?

— Excluído... Novos alunos, novos arranjos. Sou invisível para as meninas. Tique-Taque, nós nos veremos muito pouco; entre uma e outra aula darei um pulo aqui, pois estou mais longe, no pavilhão do externato. Os colegas de classe me puseram pó de mico. Resisti e não me cocei; não lhes dei este prazer de riem de mim.

— Não se aborreça, venha conversar sempre que se sentir só. Não faça da solidão sua companheira.

Esporadicamente o menino, agora adolescente, vinha me contar problemas vividos na pensão da cidade. As boas coisas, como a possibilidade de frequentar cinco bibliotecas em vários bairros, que lhe dava grande prazer. Também relatava as frustrações que tinha com a nova turma, onde se considerava rejeitado. Um dia ele veio cabisbaixo.

— Estou derrotado Tique-Taque. Meu pai "quebrou", perdeu tudo o que tinha.

— Como isto aconteceu?

— Ele vendeu o gado e passou o sítio. Com o bolso cheio de dinheiro achou que estava rico, descansou. Ele que falava "Saco vazio não para em pé" não praticou a lição e acabou tudo.

— Você vai parar de estudar, não é?

— Não! Papai vai pagar a mensalidade, e devo ficar em casa de parentes até o fim do ano. A novidade é que me apaixonei por linda fazendeirinha.

— Nesta situação, amar é bom demais pra você... serve de consolo.

— Sim, caso não tivesse sido descartado.

— E agora, que vai fazer?

— Sobreviver... com muita tristeza.

Em tarde nebulosa o jovem apareceu desesperado e com olhos vermelhos.

"Teria chorado, insônia, talvez", pensei.

— Tique-Taque, aqui tem bons mestres... mas uma professora é especialmente implacável.

— Diga logo, desembuche! Quero saber o nome.

— A mestra de Inglês me detesta. Por qualquer motivo me dá zero. Fala bem alto "zírou" e escreve no quadro-negro para que todos leiam e debochem de mim. Eu me sinto humilhado, ela quer me reprovar.

— Sei quem é. Aguente firme e seja vigilante, água aqui é cristalina e ‘lá fora’ não dá pé. Prepare-se para outros trancos que virão.

O ano terminou, meu amigo superou-se e conseguiu tirar a quarta série do curso ginasial. E ele veio para se despedir.

— Está saindo de férias?

— Tique-Taque eu saí das trevas da ignorância, vim procurara a luz, saio antes de alcançá-la, entrei pedra bruta, saio bem melhorado. É nosso último encontro... adeus!

— Não vai fazer o Científico aqui?

— Não! Vou trabalhar. Não há mais dinheiro algum... meu pai é pobre.

— Tente com o Reitor, amigo! Ele é compreensivo, um homem de bem.

— Não adianta. Ele pensa que tenho condições de pagar. Concede bolsas para alunos pobres que seguem sua religião. Sobrei. É o fim de meu sonho... não nos veremos jamais.

Arrastando em passos perdidos, desceu os degraus do Gigante Branco e sumiu rua abaixo. Eram onze horas e cinquenta e nove minutos. Certa força misteriosa imobilizou minhas agulhas. Lágrimas oleosas escorreram no mostrador, as engrenagens grimparam. Eu tinha de marcar doze horas e não consegui; o tempo dos homens congelou. Entramos no tempo de Deus.

Trinta e três anos se passaram, eis que se aproxima um venerável senhor de cabelos grisalhos, barba branca e aparada.

"Conheço sim este homem que acaricia meu verniz e o mostrador enferrujado... Eu pensava que ele descansasse no oriente eterno".

— Voltei Tique-Taque! Nunca me esqueci de você. Sou Kadoshi. Segui as instruções de minha professora que ensinava: "Por caminhos ásperos se vai aos astros". Lutei que lutei, sereníssimo irmão!

Relatou-me entre colunas suas vitórias, derrotas, alegrias, tristezas, acertos e erros. Falou-me da família muito amada que construíra. Contou-me tudo que lapida o homem e o faz justo e perfeito, e também tudo o que aconteceu e acontece a quase todos humanos no labirinto da vida.

Uau! As forças que seguravam meus ponteiros se foram. Destravado, bati palmas feliz doze vezes, às doze horas. Um minuto se passara no tempo de Deus; trinta e três anos no tempo do homem.

Sim... é possível viajar no tempo.

Fi.·.

 

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