Anoitecia.
Chovia torrencialmente...
Ninguém sabia o nome certo do homem e ele jamais o dizia. Chamavam-no
Zumbi. Simples, ingênuo, bom e sem história. Vagueava pelas ruas e becos
do arraial de Paula Lima, dia inteiro e, à noite, sumia para seu pouso
que a todos era desconhecido. Às vezes, desaparecia algum tempo e ia
deambular na vizinhança de Chapéu D’Uvas, na fazenda do Zé-tenente. A verdade é que ele vivia nos povoados de Chapéu, Ewbank e Paula
Lima, conforme fosse sua conveniência. Zumbi não fazia mal a ninguém, só
queria ajudar... gastava os parcos trocados na venda do “seu” Nenzinho,
onde bebia tragos generosos de pinga. Ele nunca ia ao chão, mas ficava
muito chato e conversava lançando perdigotos e batendo com a mão no
peito do ouvinte. Há gente que não gosta desses toques e um deles era
“seu” Nenzinho, o vendeiro. Nenzinho era brincalhão, porém só ele podia
brincar com os demais e achava um desrespeito ser tocado por Zumbi.
Certa feita ficou muito irritado e expulsou o bebum da venda. Zumbi,
após atravessar a rua, virou-se e deu uma banana pro “seu” Nenzinho, que
pegou o que estava à mão: uma lata de azeitona e jogou-a no malcriado.
Zumbi quis dar o troco, apanhou a lata que lhe chocara na cacunda e
dispôs-se a devolvê-la. Nenzinho pegou a garrucha na gaveta e atirou:
não em Zumbi, na lata de azeitona. Zumbi, muito assustado subiu a rua
correndo, a lata escorrendo o caldo pelo furo, foi se aninhar no adro da
igreja. E naquela venda ele nunca mais pôs os pés,havia outras
disponíveis. Continuou prestando serviços à comunidade e ajudando os que
precisavam: capinado uma horta, levando um recado pra namorado, fazendo
entrega de gêneros,executando serviços braçais, humildes e bebendo seus
traguinhos em cada botequim aberto. À noite, retirava-se para seu
misterioso tugúrio e quando se lhe perguntavam pela toca, respondia que
era protegido das almas. Coruja que não “gava” o toco pau nela...
–– Zé-zum! Zé-zum! Zé-zum! –– eram os meninos de rua: “Baú, Fura ôio e
Ambrósio” que atazanavam Zumbi, imitando-o no andar desengonçado. Nada
que alguma pedrada não resolvesse. Zumbi só as atirava para assustar.
Bom Zumbi, belo coração, pobre como o Homem de Nazaré.
Entre os povoados de Paula Lima e de Ewbank ficava o cemitério de
Ewbank. Tranquilo, modorrento, na paz do Senhor. Era numa encosta:
embaixo, ficava a cachoeirinha; em cima, entre as águas e o campo santo,
passava a estrada de rodagem.
A
velha estrada aproveitava os meandros de caminho novo do Brasil-colônia.
Como dissemos no início, a noite era tempestuosa... relâmpagos cruzavam
os céus intumescidos d’água, trovões ribombavam, e a noite escura bebia
do aguaceiro. Na altura do morro da Cachoeirinha descia a enxurrada.
Naquele tempo, não há muito tempo, a estrada Juiz de Fora-Belo Horizonte
era macadamizada e, nos períodos chuvosos, transformava-se num imenso
lamaçal, onde veículos, principalmente caminhões atolavam. Fazendeiros
havia que mantinham juntas de bois para ajudar a desatolar veículos nos
pantanais formados. Uma viagem de Juiz de Fora a BH durava até 16 horas;
hoje em dia, faz-se em três horas e meia.
Pois bem, dizíamos que a noite era um breu, raios clareavam a noite e o
muro branco do cemitério que ponteava aos clarões. Mateiros afirmavam
ver luzes nas tumbas. Aliás, havia discussão entre os homens rudes das
matas: o porquê do muro em cemitério.Pessoas de fora, não queriam
entrar; os de dentro, não podiam sair. Um paradoxo sem resposta.
A
chuvarada indicava fortemente que caminhões e carros estacionassem e
reiniciassem a viagem no dia seguinte, mas havia os apressados: um
caminhoneiro enfrentou as agruras do tempo e, após uma talagada de boa
cachaça mineira,em Paula Lima, seguiu viagem. Aconteceu que após passar
pela fazenda do Cité, de Quinquim Felício, a mais ou menos dois
quilômetros da Cachoeirinha, e do cemitério, o caminhão começou a ratear
e por fim enguiçou de vez. Após inúteis tentativas e do barulho
característico do motor reticente, o motorista decidiu utilizar a
manivela, tendo cuidado de deixar o veículo em ponto morto. O motor
chegou a roncar e estremecer e voltar a parar. O motorista levantou o
capô, curvou-se tentando descobrir apalpando aqui e ali, evitando partes
quentes...
A
chuva amainara; o cemitério tranquilo estava... entretanto, uma luz de
vela bruxuleou ao lado de uma catacumba abandonada, no topo do morro. Um
vulto desceu ziguezagueando entre tumbas. O fantasma trazia um capuz e
protegia a chama da vela com uma das mãos em concha. Um mocho voou das
ruinas da capela abandonada com pio horroroso... E a aparição chegou ao
portão do cemitério, onde o motorista tentava consertar o veículo. Aí,
Zumbi, pois era ele, o portador da luz, falou:
–– Ô moço, quer uma ajudinha?
Dizem que o
chofer está correndo até hoje.
Verdade verdadeira,
a lenda é bem viva em Paula Lima. Perguntem ao seu Nenzinho...
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