O que eu sou é um nada;
isto dá para mim e para o meu gênio
a satisfação de olhar a minha existência no ponto zero;
entre o frio e o calor,
entre a sabedoria e a estupidez,
entre alguma coisa e o nada, como um simples talvez.
(Werk)
Plaft! Plaft! Os tabefes fizeram aquele barulho de saco cheio d’água quando
arrebenta no chão. Atordoado, o atingido deu dois passos atrás em equilíbrio
instável.
— Sai daqui, pilantra! — Rugiu o brutamonte e deu um empurrão final, jogando
o coitado para além da calçada, onde estatelou, de prancha, no meio-fio.
— E não volte mais, senão!... — Deixou
pairando no ar a ameaça de mais surra.
— Rá! Rá! Rá! — relinchou para o colega
leão-de-chácara.
O coitado levantou-se devagar, sacudindo a
poeira invisível da calça amarfanhada, disse meio grogue: — Eu sou homem,
não aceito desaforo! Comigo, não! — E tentou avançar. Foi, porém, detido por
braço forte. Alguém lhe sussurrou no ouvido: “Não tente, vai apanhar mais.”
O bêbado, pois ele estava totalmente alcoolizado, contentou-se em repetir: —
Eu sou home! Não levo desaforo
para casa... — E arrematou: — filho-da-puta!
O sujeito que o acudira levou-o meio arrastado
a atravessar a avenida Rio Branco. Estavam frente à boate Assírius, de onde
fora retirado à força, por importunar a clientela.
A Cinelândia, naquele tempo, fazia jus ao
nome, pelas luzes feéricas, pelos cinemas, bares, boates e pela intensa vida
noturna. Ao atravessarem a rua 13 de Maio, o ébrio perguntou, trôpego nas
palavras:
— Por que está me ajudando? Não te conheço! —
Notou que o solícito estranho era jovem, forte, usava chapéu com abas caídas
e tinha um brinco enorme na orelha esquerda.
— Por nada, sei não, é simpatia. Não gostei da
covardia que fizeram com você.
— Leia aquela tabuleta: Bar Cigano! — exclamou
o bêbado, apontando em direção à rua Senador Dantas — tomemos uma pinga,
minha garganta está seca como o Saara.
—Vote!
cigano coisa nenhuma — respondeu o estranho, com cara de nojo — aquilo é um
pé-sujo de última categoria. Porém, o Amarelinho[1]
é bom, você precisa de um café bem forte e amargo. Chega de álcool, por
hoje.
Aproximaram-se do balcão, o ajudante pediu um
café especial para o bêbado e uma mistura excêntrica, que chamou de bomba
atômica, para ele.
O borracho sorveu com relutância o café sem
açúcar e foi chamar-pelo-gregório meio derreado no meio-fio, abraçado no
poste: uuuuuóóóóóó.
O socorrista
degustou cachaça misturada com Cinzano[2],
conhaque São-joão-da-barra[3]
e gotas de Fernet[4].
Voltou a ajudar o mamado que estava torto como um poste abalroado.
— Como te chamas, amigo? — perguntou o
estranho.
— Eu sou Ninguém. Pode me chamar assim. Eu sou
nulo! Sou zero, ou melhor, sou um homem invisível, tenho este dom; o dom da
invisibilidade... ninguém me vê...
— Não entendi, explique-me, por favor!
— Ninguém gosta de mim, nem as putas me
toleram. Então eu sou um poço de fracassos. Todos os dias tenho que jogar
meus fracassos no poço sem fim.
O bom samaritano o interrompeu: — Tem onde
dormir?
— Não! vou ficar aqui mesmo.
— Você precisa de um pouso. Vamos procurar um
hotel. Oh! belo anel o seu. Vende? — perguntou, enquanto examinava a pedra
engastada no aro de ouro.
— Qual é o seu nome? — perguntou João-ninguém.
— Josaphat ou Josa. Me chame como quiser.
— Por que usa dois nomes?
— Esquece, isto é assunto de meu povo... Tenho
um terceiro nome que minha mãe soprou em meu ouvido quando nasci, serve para
espantar os maus espíritos. Só ela sabe.
Josa forçou o bêbado a se levantar, segurando-o pela cintura.
— Conheço o hotel São Paulo, não é longe, fica
à rua Gomes Freire. Lá é barato e bom. Tem algum dinheiro?
— Não, não tenho, fui roubado na boate pelas
mulheres que dançavam furando aquele cartãozinho de minuto em minuto.
— Está bem, pagarei como empréstimo. Se você
não tiver dinheiro, me entregará esta pedra verde. — Referia-se ao anel que
o bebum usava.
Dirigiram-se ao hotel, atravessando o
Tabuleiro da Baiana, no largo da Carioca. À rua de mesmo nome, perto do bar
Luís, um convite quase irresistível do bicudo:
— Adoro chope escuro, tomemos um só.
— Fecha a boca, imbecil! Está babando na minha
camisa, pudim de cachaça!
Passaram pela praça Tiradentes, do outro lado,
no
39, a
gafieira Estudantina tocava o xote
No-meu-pé-de-serra. O borracho queria ir,
foi dissuadido. Adentraram na visconde do Rio Branco, percorrendo-a até
quase o fim. O Hotel ficava na esquina desta rua, com Gomes Freire.
Considerando a aparência, o hotel parecia regular, mais para cabeça-de-porco.
— Antes de entrar, me conte um pouco da sua
história — pediu Josa. O outro não se fez de rogado, porque bêbado gosta de
confidências. Aquele lamuriava e chorava ao mesmo tempo. Tatibitate,
desenrolou sua vida.
— Meu nome é
Oziel, o zero; zero à esquerda da vida. Desde que me lembro sou
absolutamente nulo e excluído. Na escola, não me chamavam para brincar; nos
jogos, me deixavam de fora; no futebol, fui perna-de-pau; o exército me
dispensou por excesso de contingente. — Parou para tomar fôlego. — Nas
reuniões, ninguém pede minha opinião e, nos negócios, meus sócios sempre me
passam pra trás. As garotas nunca me querem; jamais tive uma namorada e nem
na zona sou chamado para fazer-neném.
O michê[5]
para mim é mais caro. Que vexame! Quanta vergonha passo... Se não sou um
zero absoluto, que sou??? Imagine, como filho do meio, todos os favores e
benefícios meus pais davam para o primogênito ou para o caçula. Para mim, só
obrigação e serviços. Zombavam da minha maneira de ser: retraído, inibido,
complexado e sempre nos cantos, conversando com seres imaginários. Eu sofria
e como! Trabalhava, trabalhava e às vezes apanhava. Meu pai me expulsou, não
saí na hora, mas quando quis, fugi de casa. Agora sou espectador da vida.
Assisto os acontecimentos, não participo... O ditado que diz : “Há sempre um
chinelo velho para um pé cansado” é maroto, conversa fiada.
— Não é tão mal assim, eu nunca tive um anel
como o seu, sei que é valioso. Você é o tal que é infeliz no amor e feliz no
jogo?
Ele deu um gemido ou rosnado de pura revolta.
— Sou infeliz em tudo que me meto. Deus deve ter esquecido de mim quando me
pôs no mundo. Este anel, por exemplo, não ganhei, nem comprei: achei-o na
praia, as ondas o trouxeram para mim. Mandei avaliá-lo e sei que é caro.
Ninguém o compra, nem aceita troca, porque pensa que é roubado ou falso.
Anel de pedra-verde na mão de pobre é caco de garrafa.
Chegaram ao hotel, onde o porteiro, pelo
aspecto do futuro hóspede, exigiu o pagamento adiantado. — Se não tem
dinheiro, deixe o anel como garantia. — Ele também notara a beleza da jóia e
sabia ser cara.
— Não é preciso — disse Josa — pago a diária
para ele. — Sacou da carteira uma nota de duzentos cruzeiros. Ele parecia
abonado.
O porteiro recebeu, deu o troco e entregou-lhe
a chave presa num enorme pião. — Para que não esqueçam a chave no bolso —
disse a guisa de explicação.
Duzentos
e três, o número estava gravado no pião.
O elevador estava quebrado, subiram uma escada
de ferro, em caracol. O quarto era o
último do corredor; as portas, em duas bandeiras, abriram com simples
empurrão. Josa ajudou o novel amigo a se despir, aliás, ele estava mal das
pernas. Deu-lhe um banho de chuveiro bem frio e jogou-o na cama. Ele caiu
como um saco de farinha, quase desmaiado.
— Até amanhã! Voltarei para levá-lo a passear
por aí. Tranque bem a porta e cuidado. — Avisou enquanto o som dos passos
diluía no corredor.
No dia seguinte, Josa reapareceu lampeiro.
Oziel, o João-ninguém, tinha ficado até a tarde sem sair do quarto,
curando-se da carraspana. Perdera o café da manhã.
— Descansou muito, vamos almoçar e passear por
aí! — Intimou Josa.
Na portaria, pagou mais uma diária antecipada
e saíram. O porteiro olhara com avidez para a pedra maravilhosa, no
indicador da mão esquerda de Oziel.
Depois de lauto almoço no restaurante
giratório da praça Tiradentes, perambularam por ruas diversas, sem norte.
Pegaram ônibus, destino Copacabana, para verem as moças de maiô. Desceram na
avenida Prado Júnior em direção ao Lido. Admirando as vitrines chegaram à
praia e se sentaram nos bancos do calçadão. Compraram cocos numa barraca e
enquanto se deliciavam com o ir-e-vir das beldades, tomavam água em
canudinhos.
— Aquela ali! — disse Josa — é um chuchu; não,
é uma uva, está dando-bola para mim. Vou atacar...
Oziel olhou à esquerda, donde vinham três
moças. Quando elas se aproximaram, Josa, serelepe, levantou-se rapidamente e
entabolou uma conversação. Oziel, ao lado, permaneceu quieto. Enquanto durou
o bate-papo, ele pouco se aventurou a dar algum palpite, de fato era
solenemente ignorado pelo grupo. Ao se despedirem, uma delas marcou encontro
com Josa. Oziel, como sempre, foi menosprezado.
— Viu como sou invisível? — interrogou Oziel.
— Elas nem se dignaram a notar que eu estava lá, nenhuma flertou comigo. É
assim, meu caro, não existo! Minha invisibilidade é inegável. Sou aquele que
segura as cartas pros outros jogarem!
— Ah, boboca pessimista, seja atrevido, sem
ser estúpido! As meninas gostam de rapazes ousados, falantes, desinibidos,
bem trajados e preferencialmente endinheirados.
Nos dias que se seguiram, passearam pelo Rio
de Janeiro em pontos turísticos: Corcovado; Pão de Açúcar; Zoológico e
outros lugares. Foram a boates; ao baile no Bola-preta; também à rua Alice,
em Laranjeiras, para conhecerem as meretrizes classe “A” ou chiques; foram
ao Mangue, onde fornicavam as ‘meninas’, classe “B”, da Vila Formosa. Entre
todas, Josa reinava, soberano, porque tinha charme ou it. Por outro lado,
Zero, sem chance, enraivecia-se. Era zero mesmo... Definitivamente zero,
nulidade.
Certa feita, numa quermesse no outeiro da
Glória, Oziel se dispôs lutar, conquistar uma garota e para destravar a
língua, superar a introversão, excedeu-se no álcool. Algumas moças, fazendo
footing, se aproximaram. Oziel,
para se vangloriar, tomou a dianteira e pôs-se a falar, coisas de rapazes em
paquera, banalidades. Em instante, uma das moças cortou-lhe o discurso e
disse desdenhosamente para outra, em mortal humilhação e ferina indireta
para ele:
— Maria, és tão antipática, não vou com tua
cara de jaburu!
— E nem eu com a tua, baranga, bucho! —
retrucou Oziel alterado, e tartamudeou algumas besteiras adicionais. Sabia
também ser desaforado, se desafiado.
Constrangimento geral; o céu, plúmbeo; o ar,
pesado; sorriso de deboche congelado; uma puxou a outra e saíram de fininho
e rápido, com risos contrafeitos, deixando-os sós. Oziel fechou os olhos
“Não sou tão feio assim, será que sou...?” Pediu ao mundo que se abrisse aos
pés e o engolisse de vez. Mas a terra não se abre para qualquer um, então
sobrou para ele imensa e profunda raiva de si mesmo. “Por que fui nascer?”
Josa falou, conciliador: — Você deu uma
resposta dura, acho que foi até grosseira. Ela mereceu, mas deste jeito
jamais arranjará namorada. Seja terno, homem! Mulheres, carinho e flores
combinam muito.
— Da próxima vez que acontecer, serei mais
gentil — disse Oziel, com uma ponta de ironia. Simulou dor de cabeça para ir
embora.
— Leve este dinheiro para pagar o hotel. — O
amigo estendeu-lhe uma nota de cem cruzeiros que ele pegou, pois para isto
não tinha mais pudor.
No fim da semana, Josa convidou: — Vamos
conhecer um bar verdadeiramente cigano. Está pronto? Quer ir?
— Sim, vamos, então!
Na rodoviária, à
praça Mauá, tomaram ônibus para São João de Meriti. Era daqueles que faziam
o trecho Caxias—Meriti, linha do interior da Baixada. Em Parada de Lucas,
deixava a avenida Brasil e seguia pela antiga Rio—Petrópolis até Caxias.
Cortava a cidade, e daí em diante rodava, em estrada de terra macadamizada
até São João de Meriti. Em um ponto denominado Fazenda Velha[6],
Josa tocou a campainha, solicitando a parada do ônibus. Saltaram. Local
desabitado com, no máximo, dez casas.
— Ainda não é
aqui, temos chão pela frente. Vamos à Covanca[7],
a pé.
Seguiram numa estrada vicinal, estreita,
sinuosa como cobra em movimento e com pouquíssimos habitantes. Uma casa
aqui, outra acolá e mato, assa-peixe, leiteira malícia.
— Andamos uns cinco quilômetros, onde estamos?
— perguntou Oziel, já um tanto cansado e com medo daquele ermo.
— Perto! — respondeu curto, Josa. — Já
passamos a Vila São João.
Mais uma hora de caminhada, pouco menos, após
curva acentuada, desceram pequena elevação, viram luzes tremulantes, Josa
falou: — É aqui!
Oziel reparou
que estavam perto de uma carroça fracamente iluminada. Havia muitos carros
de passeio ao derredor. Sob a claridade do luar, algumas tendas toscas. Duas
lanternas tremeluziam nas laterais da carroça, como que os convidando a
entrar. Dentro vinha o som de guitarra, alto, harmonioso, tocando ária
cigana. Oziel estava ansioso e trêmulo, esperava outra derrota. “Quem espera
sempre alcança”. No frontispício estava escrito em grandes letras:
U vurdon[8].
Tinha cores deslumbrantes, fortes, desenhos em arabescos.
Josa deu três palmadas rápidas, linda moça
afastou o reposteiro de pesada lona e veio atender. — Olá! Por onde tem
andado? Quem é ele? — apontou Oziel, com aquele ar displicente e de
pouco-caso.
— Viajei, depois fiquei na cidade dias, este é
meu companheiro, chama-se Oziel, viemos assistir seu show. — Estendeu-lhe
nota de cem cruzeiros. Explicou ao amigo que com pagamento adiantado podiam
comer e beber à farta.
Lola, assim se chamava a moça, afastou-se para
o lado e mandou-os entrar. O interessante é que não havia cadeiras. Somente
tapetes, esteiras e almofadas dispostas em torno de um palco de madeira,
longitudinal à carroça. Os frequentadores lado a lado, circundando o
tablado, gritavam e riam e batiam palmas. Bravo! bravo! Uns assoviavam. Dois
indivíduos passaram a tocar freneticamente suas guitarras espanholas. Os
tilintidos, os pastrim pins
reverberavam e penetravam nos ouvidos de Oziel. Era melodia agradável. Uma
mulher sensual coleava, saracoteava e rebolava entre os convidados, com um
copo de estanho e garrafa de vinho na mão. Sorria, despejava o líquido nos
copos dos fregueses. Era uma cigana ou pelo menos aparentava ser, pelos
brincos e outras bijuterias que usava, bem como pelo vestido longo,
estampado, amplo decote e mangas fofas.
— Ah, Faraona! — gritavam os clientes — dê-nos
um gole de vinho! — Todos foram aquinhoados, menos Oziel porque era
invisível...
Significantes eram os enfeites nas paredes:
pequenos tachos, frigideiras, panelas e chaleiras, de estanho e/ou cobre. A
metade da cobertura (logo se saberia o porquê) tinha uma variedade de
utensílios de cozinha pendurados, além de ânforas, bilhas, moedas, estrelas,
luas e sóis de cobre.
Afastando a cortina de chita estampada de
flores, pisou no palco a dançarina saltitante, vestido bufante, coberto de
refolhos, tirando tralalás das castanholas, distribuindo sorrisos a
mancheias. Seus pés esvoaçavam. Batia forte com o salto de madeira na tábua,
fazendo um som peculiar, imitativo do flamenco. Seu corpo contorcia-se
sensualmente, o povo extasiado mantinha os olhos vidrados, fixos nela.
Alguém lhe estendeu um pandeiro, livrou-se das castanholas. Rodopiava,
pulava e vibrava as soalhas metálicas. Abandonou o pandeiro e tamancos,
passou a produzir estalidos com os dedos (ou com a língua) como um revólver
calibre .38 e batia com os pés no assoalho de um modo peculiar. As miçangas
de ouropel, em sua tiara, rebrilhavam à luz das lâmpadas.
Súbito, metade
da cobertura puxada por dois homens (no sistema de engrenagens e roldanas)
deslizou sobre a outra suave e lentamente. As lâmpadas se apagaram, o
interior da carroça foi inundado pela luz da lua. Momento de êxtase, de rara
beleza, magia e encantamento. Antes do reiniciar o show ela perguntou: —
Quem quer bater cartas, ler as mãos, ver a sorte na borra de café? Na
bola-de-cristal, quem vai?
Daj[9]
está na ofisa[10].
Oziel estava completamente tomado pelo
inesperado e fascinado pela beleza morena de Lola, que aumentara sob o luar.
O sorriso dela mostrara os dentes perfeitos, alinhados. A filha da Faraona
hipnotizou a todos. Fim da apresentação, as luzes foram religadas, moedas e
notas voaram para a moça. Ela veio sentar-se ao lado de Josa e puseram-se a
conversar sem dar a menor atenção a Oziel, porque ele era invisível, não é?
Inesperadamente ele se levantou e falou trêmulo: — Vou saber o porquê
da minha mala suerte — e sem que
ninguém o detivesse, sumiu atrás do cortinado da
ofisa.
A sibila e ele se olharam. Os olhos dela,
negros, maravilhosos, candentes como dois carbúnculos, desnudaram-no da
cabeça aos pés. Ele sentiu a alma desvelada, nos mais recônditos
pensamentos. Viu que era muito bonita, tinha os dentes encastoados
em ouro. Sorria,
matreira. Ele baixou os olhos timidamente. O que se passou? Segredo, mas
Oziel mostrava semblante menos taciturno quando voltou. Em sua cabeça
ecoavam as palavras da vidente: “Ainda encontrarás um grande amor, pois as
cartas não mentem jamais”.
No ápice da festa, gritaram os fregueses: — A
dança do fogo! A dança do fogo!
Todos abandonaram a carroça e correram para
fora, até aqueles que estavam nas tendas saíram. As moças, capitaneadas pela
faraona, dançavam loucamente, ao som de uma concertina. Depois, cansadas,
foram se sentar. Aí, os homens as substituíram. Quando os primeiros raios de
sol faziam amanhecer, cerravam-se as cortinas da noite, clientes,
convidados, artistas se dispersaram.
Em consequência, Josa e Oziel tornaram-se
assíduos naquele bar extravagante, tão peculiar, mágico, místico. Oziel,
sempre pessimista, dizia que jamais conseguiria despertar interesse nas
mulheres. Discretamente, Daj passou a ser generosa com ele, enchendo-lhe mais a caneca de
vinho. Curioso, isto ele não notou, tão convencido de que era portador de um
repelente de amor. Sofria. Seria sadista? Um dia ele disse ao amigo:
— Vou parar de andar contigo. Você capitaliza
todos os olhares, eu não sou mais que uma sombra ao seu lado, não posso
competir. Prefiro ficar com minha frustração, com minha transparência,
enfim, isolar-me. Tenho inveja de você.
Josa zangou-se: — Já estou cansado de suas
lamentações. Se quiser ficar só, fique! Então, trate de me pagar. Se não tem
dinheiro, me dê o anel.
Oziel ficou muito magoado, pois era carente e
não esperava aquela demonstração de raiva sobre ele. Virou as costas, largou
o amigo falando sozinho, saiu.
— Volta Oziel, estou brincando, que
pavio-curto!...
Ele seguiu adiante. Desorientado, deixou o
bar, suas luzes e alegria. Como vivia à custa do amigo, para voltar à cidade
teve que se virar pedindo carona aos donos dos carros que passavam. Chegou
ao Hotel, cansado, abatido e desolado. Foi barrado na portaria, porque o
porteiro mais uma vez exigiu pagamento adiantado.
— Não tenho dinheiro — disse — mas amanhã vou
vender este anel e pagarei até o último tostão e me sobrará muito.
O porteiro deu uma olhada com pouco-caso,
sabia que o anel era de esmeralda, precioso. Mentiu: — Isto não vale nada,
mas pode ficar por hoje. — Deu-lhe a chave do quarto, o de sempre, 203.
Tarde, muito tarde era. Talvez quatro horas da
manhã. Um vulto esgueirou-se pelo corredor, indo ao quarto 203. Sorrateiro,
abriu a porta com chave-mestra e ligeira pressão. Oziel, que naquele momento
estava tendo um pesadelo (sonhava que estava voando e ninguém reparava
nele), acordou. Com olhos sonolentos, semicerrados, viu o intruso.
Perguntou: — Josa? — O mundo desabou-lhe à cabeça, estrelas pipocaram.
Desmaiou.
Quando acordou, no dia seguinte, tinha os
cabelos empapados de sangue e uma enorme e latejante dor de cabeça. Levantou
ainda tonto, foi à pia, lavou o rosto, limpou o sangue coagulado, aí se
lembrou de que algo acontecera. Apalpou-se, nada havia quebrado, mas ao
esfregar as mãos notou a falta do anel. “Bem aquele tratante do Josa veio
aqui à noite e roubou-me”. Vestiu-se e foi comunicar à portaria o fato.
— Como assim! é golpe seu, está sem dinheiro e
não quer pagar a diária!
— Olhe o galo que tenho na cabeça, juro que
fui roubado! — exclamou Oziel.
— Vagabundo!... fora daqui! — O porteiro
empurrou-o para a rua.
Mais uma vez, Oziel estava sem dinheiro, sem
amigos, sem a jóia, sem lenço nem documento.
O tempo passou e Oziel, decadente, tornou-se
mendigo, dormindo entre batentes das portas e nos bancos de jardim, no hotel
das estrelas. Na madrugada, remexia sacos de lixo procurando restos para
comer. De dia, se obtinha alguma esmola, comprava um pão e tomava café; se
não, ficava com fome mesmo. Fome de pobre se adormece com cachaça.
O mundo dá muitas voltas e Oziel tornou-se
viandante. Um dia, se viu nas proximidades do bar cigano. Quanta recordação
lhe veio à mente. “Por que fora lá?” Estava escrito... Josa e ele não se
reviam há muito.
Josa agora era gerente do bar, casara com
Lola, a filha da Faraona.
Naquele dia, as
parcas[11]
resolveram juntar os três indivíduos: Oziel, Josa e o porteiro. Josa viu
entrar o homem parecido com o porteiro do hotel São Paulo, resolveu lhe
perguntar por Oziel. O cliente não o reconheceu e levantou a mão para pedir
vinho. No dedo, um anel de esmeralda brilhava. Josa sabia de quem era, foi
direto:
— Roubou o anel do meu amigo, hein! entregue,
já! já! — Começaram a lutar. O gatuno foi dominado com a ajuda de outros
fregueses. Josa tomou-lhe o anel, pondo-o contra luz para melhor observar.
Era inconfundível a jóia.
— Miserável! onde está Oziel? que maldade fez
com ele?
Um segundo após
entra o mendigo Oziel, irreconhecível por longa barba e cabelos desfeitos.
Ele não viu o porteiro, ladrão, sob duas ou três pessoas mas, sim, a jóia na
mão do amigo. Tirou conclusões apressadas, erradas, injustas. Voltou-se
sobre seus passos e desapareceu de vez, na escuridão. Não se sabe como
chegou à avenida Brasil, distante dez quilômetros. Pegou o primeiro ônibus
que atendeu ao sinal. Era um velho Aktiebolaget[12],
sacolejante, arfante. E Oziel, pensativo, entrou.
“Eis o que acontece quando se acredita em
amizade, nunca tive nada na vida, seja dinheiro, amores, amigos, ninguém me
considerou como gente, fui vencido em tudo que tentei, quando pensei que
tinha encontrado um amigo, ele se revelou um ladrão. Que mais posso esperar
desta vida? A cigana errou a predição: Não conhecerei o amor. Estou me
sentindo velho, doente, cansado e desgostoso. O que me vem pela frente? É
possível cair mais? Marginalizado pelo destino, tenho medo, sou covarde,
mesmo... Deus tem uma missão para mim? Qual? Pois bem, renuncio a qualquer
missão, sou livre, tenho o livre-arbítrio”.
Nesta lucubração arrevesada, Oziel se deu por
vencido e com os costados na praça XV, justamente no escadório que descia ao
nível do mar, para o ir-e-vir dos pescadores às suas escunas e traineiras;
para o embarque e desembarque de passageiro. De pé, no parapeito, olhava
para o infinito. Então, tomou a última decisão. Cabeça oca. “Cabeça vazia,
oficina do diabo”. Desceu lentamente cada degrau em plano inclinado, até
seus pés tocarem nas águas da baía. Elas estavam frias, sujas, oleosas.
Avançou mais dois degraus. A maré vazante findara, ia começar a preamar.
Sentou-se calmamente, a água veio-lhe aos quadris. Esperou... água no
peito... esperou, inerte, água no queixo... A marola encheu-lhe a boca;
outra, empapou-lhe os cabelos.
Uma cigana passou cantarolando:
Você é uma carta
demais
No baralho da vida
Que o presente me
traz.
....................................
Interrompeu, pois observou, na sombra da água
turva, o redemoinho nos cabelos revoltos... “Seria o quê?” Rapidamente, sem
pensar, desceu a escadaria, segurou aquela massa difusa e puxou com força.
“Meu Deus! é gente e está vivo ainda” —
Socorro!
Maior foi a
surpresa da Faraona[13]
ao verificar que se tratava de Oziel, desde que o conhecia como freguês do
Vurdon.
— Ah, meu amor...
No baralho da vida, quem dá as cartas sou eu!
O Sol nascia tal como bola de fogo incendiando
o mar. Aquele dia prometia ser claro e belo... E Oziel finalmente, tornou-se
visível.
Vede bem: eu sou eu e além de mim não há outro! Sou
eu quem mata e faço viver. Dt 32,39
E, no dia seguinte, cinzas, brasas e tições
atestavam quão enorme e vazio era o vale da Covanca. Os
filhos-da-estrada-e-do-vento haviam partido, levando Oziel, ex-Zero.
FINIS