SOBRADOS E MUCAMBOS


por Asséde Paiva
postado no Benficanet em 12/01/2016

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O sociólogo Gilberto Freyre é autor de nomeada. Um dos mais famosos livros de sua autoria é Sobrados e Mucambos. Nós vamos dar uma analisada nesse livro com vistas ao que ele prolata sobre ciganos, eis que é nosso mister há longos dez anos: ler e analisar tudo que nos vem às mãos sobre este povo tão sofrido, excluído e desprezado. Assim, vamos ver o que nosso sociólogo tem a dizer sobre isto. Preliminarmente, vamos nos concentrar só na obra supracitada, e também queremos desde já deixar claro que não temos pretendemos contestar o sociólogo, mesmo porque não temos conhecimento para tanto; se mal comparando, nossas ponderações equivalem a uma pulga picando o elefante, isto é, não valem nada; porém, se ficarmos calados, estaremos colaborando para que injustiças prevaleçam e isto não podemos deixar que aconteçam. Para evitar citações repetitivas vamos combinar que estaremos sempre nos referindo à edição de Sobrados e Mucambos Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil, Coleção documentos brasileiros, três volumes. Livraria José Olympio Editora, 1951. Assim limitaremos a citar, no corpo de nosso texto, as páginas e notas nas quais focalizaremos o olhar.

 

No livro, ora sob nossa ótica, GF cita os ciganos nestas páginas: 132, (nota sete), 141, 158, 165 (nota nove), 201, 202, 203, 477, 490 (nota 134), 491, 631, nota 37; 790, 791, 792, 823, notas 76, 77e 78. Todas as referências são desairosas quanto aos ciganos, como se provará através de suas leituras que serão transcritas verbatim.

 

Da p. 132, parte do capítulo I transcreve-se:

 

“O comboieiro era o judeu usurário...” “O comboieiro era hediondo vampiro”. O mineiro temia-o; fugia dele; mas afinal “a necessidade ou novas esperanças o lançavam em suas garras” (sete). As aspas não são minhas, são de GF.

 

A nota sete que está na p. 201 nos ensina:

 

D’Assier –– op. cit. págs. 260-264. Franceses, alemães, principalmente judeus, e, em certas especialidades os ciganos acabaram suplantando os portugueses como mascates.

 

 A p. 141 está no capítulo I O sentido em que se modificou a paisagem social do Brasil patriarcal durante o século XVVII e primeira metade do XIX. Vamos transcrever o que nos fala sobre ciganos:

 

[...] E muito fidalgo de casa-grande do interior foi caloteiro em toda extensão da palavra; e não vítima dos judeus da cidade. Em vez de roubado, na cidade, ele é que roubou nas remessas de açúcar ou de café. Houve enfim, muito velhaco e espertalhão escondido por trás de barbas patriarcais e engabelando, com suas manhas, comissários, agentes de cobrança e até ciganos, vendedores de cavalo pelos engenhos. (grifamos).

 

Embora o texto acima não seja tão injurioso aos ciganos, está implícito que GF considera os nômades espertalhões, no mínimo. Tiramos algumas ilações favoráveis aos ciganos: não são comissários, nem agentes de cobrança; só vendem cavalos.

 

A p. 158 está inserida no capítulo II O engenho e a praça; a casa e a rua.

 

[...] a casa (falava do paulista) que ligou a essa paisagem não foi a grande e estável, de pedra e cal, mas a palhoça quase de caboclo, o casebre quase de cigano, o mucambo quase de negro...

 

À p. 165, ainda no capítulo II, GF diz:

 

[...] Em algumas regiões, a boca do povo os foi chamando ‘gringos’ ou por serem alourados como os ingleses ou por se parecerem, nos modos, com os ciganos  outros que, desde dias remotos, foram denominados ‘gringos’ no Brasil.

 

GF nos falava dos mascates, principalmente judeus, franceses e italianos, pois eram louros. E também chamava os ciganos de gringos. Nesta confusão, sobraram para os ciganos as culpas e para os outros, os lucros. Mas GF nos remete à nota nove, que transcreveremos parte, a seguir, porque é extensa e é íntegra à p. 202:

 

Os negociantes ambulantes estrangeiros, no Brasil, passaram a ser conhecidos, em certas áreas por ‘gringos’ dentro da velha tradição peninsular de denominar-se ‘gringo’ o cigano ou o vagamundo...

 

A respeito de ‘gringos’ convém lembrar que os ciganos foram, na sua especialidade –– a venda de escravos e cavalos , os primeiros vendedores ambulantes que se tornaram conhecidos em trechos remotos do Brasil.

 

Agora vemos que GF lança, sem muito cuidado, a pecha de vendedor de escravos, nos ciganos. Temos tese Brumas da história do Brasil ciganos e escravos a verdade onde contestamos esta idéia. Página 203 lê-se:

 

Em seu Vocabulário Pernambucano (publicação póstuma do vol. XXXIV da Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, Recife, 1937) o citado Pereira da Costa dá como ‘gringo’, no Brasil, ‘certa ordem de estrangeiro de baixa esfera, como o italiano, o árabe, o turco, e particularmente o cigano’...

 

No capítulo V, O sobrado e o mucambo, à p. 476/477, nota 45, lê-se:

 

Na área mineira, chegou a ser quase absoluta a vitória dos atravessadores e negocistas sobre os produtores, o próprio governo da Capitania, tão exigente na cobrança da siza para Sua Majestade sobre as rendas dos bens de raiz dos moradores estáveis (conforme se vê por carta de 30 de abril de 1718, do mesmo Códice n. 11), recomendando ao procurador dos quintos de Vila Rica e a outros não procederem com demasiado rigor para com os mercadores vindos do Rio de Janeiro ‘negociando com fazendas em pé’ (Carta de 13 de fevereiro de 1719, do mesmo Códice n. 11).

 

Eram as vantagens para os negociantes evidentemente destinadas a proteger os reinóis contra os homens da terra. É claro que entre os reinóis não estavam os ciganos, objeto de medidas severas da parte das autoridades tanto na área mineira como noutras áreas coloniais.  Veja-se João Dornas Filho, Os ciganos em Minas Gerais, Belo Horizonte, 1948.

 

Observe-se que a defesa dos ciganos neste texto é feita por Dornas Filho, não por GF. Observe-se ainda que os ciganos sempre foram os perseguidos e em adição conclui-se que disposições protegiam os reinóis, isto é, os portugueses. E fazendas em pé, significavam escravos, logo o tráfico era feito por reinóis.

 

E nas p. 490/491, nota 134, no mesmo capítulo V, em tela, lemos:

 

Aos ciganos ou gringos, quase sempre encarregados de administrarem esse comércio de homens ou escravos, pouco incomodava a ofensa que a nudez dos negros causasse aos moradores cristãos dos burgos por onde se fazia a importação de operários para as indústrias e de trabalhadores para as lavouras do Brasil. Donde reclamações que, ainda nos últimos tempos do Brasil-Reino, foram aparecendo nos jornais, contra o escândalo: “Roga-se a alguns dos Senhores Negociantes de Escravos da rua do Valongo queirão ter a bondade de vestirem os escravos que dezembarcão para os armazens; pois he inteiramente indecorozo em huma corte civilizada andarem pelas ruas publicas individuos de hum e outro sexo nús e outros quase nús, com tanta offença da modéstia e escandalo das famílias que teem a infelicidade de morarem naquella rua...” Mas o problema moral da nudez juntava-se o da doença, comum como era a da importação ou venda de negros doentes, alguns dos quais os ciganos tratavam de fazer passar por bons e válidos aos olhos dos compradores menos meticulosos ou menos perspicazes... (Diário do Rio de Janeiro, 21 de março de 1822).

 

Pondo esta informação sob lupa vemos que o jornal citado não fala em ciganos, quem fala é GF. Os senhores compradores e vendedores de escravos eram brasileiros e portugueses entre outros.

 

A p. 631, nota 37, capítulo VI, O brasileiro e o europeu, nos diz:

 

Aceita a informação de Pereira da Costa de que os ciganos eram chamados ‘gringos’ no Brasil (Ms, na Biblioteca do Estado de Pernambuco), é fácil aceitar-se a transferência dessa designação para os ingleses, judeus alsacianos e outros tipos exóticos que, a partir dos primeiros anos do século XIX passaram a percorrer pontos mais afastados do país.

 

Primeiro não aceitamos, a priori, que ciganos fossem conhecidos/chamados gringos. Secundo, não conseguimos, apesar de nossos esforços, localizar o manuscrito citado nesta nota de GF. Tércio, os ciganos são totalmente diferentes em cor de pele em relação a ingleses, judeus, italianos e outros. Os ciganos são de tez escura os outro têm pele clara.

 

A p. 790, do capítulo IX, O oriente e o ocidente, reza:

 

Não nos esqueçamos dos ciganos –– outra mancha colorida de remoto orientalismo, na paisagem do Brasil. Ao nosso sistema patriarcal não se adaptaram esses nômades senão como marginais: como pequenos e às vezes sádicos vendedores de escravos nas cidades e como negociantes ou trocadores de cavalos, consertadores de tachos, caldeiras e máquinas de engenho, no interior. Donde, talvez, o nome de gringos por que foram se tornando conhecidos em algumas áreas (76), como, depois, os ingleses e outros estrangeiros de aparência rebarbativa, empenhados em atividades mercantis e, ao mesmo tempo, mecânicas. Kidder encontrou ainda na Bahia o subúrbio denominado Mouraria por ter sido zona reservada a ciganos (77).  Desde 1718 que el-Rei de Portugal banira para o Brasil várias famílias de ciganos, proibindo-lhes apenas o uso de sua língua, a fim de que esta desaparecesse e com ela o viver à parte e às vezes parasitário de tais gringos. Trinta anos depois, verificava-se que não era menor o dano que eles causavam ao Brasil do que o causado a Portugal.

 

Onde mais daninhos se revelaram no Brasil patriarcal, foi no roubo de cavalos e bestas aos mineiros, a despeito de todas as precauções tomadas contra tão astutos ladrões; e é possível que fossem autores de roubos misteriosos de meninos de cor, para serem levados como escravos (78). Também houve entre eles assassinos célebres como, no Rio de Janeiro, Joaquim Alves Sayão (o ‘bujo’) e Antonio da Costa que se serviam para seus crimes, de ‘armas prateadas’ (79). Em compensação, teria sangue de cigano o poeta Castro Alves (80) que numa de suas poesias cantou a beleza da mulher oriental sob a forma não de cigana, mas de judia, num disfarce, talvez consciente, de sua admiração ou ternura pela figura materna. E dos ciganos –– vários dos quais, passada a fase de marginalidade socialmente patológica, dissolveram-se no conjunto brasileiro , em certas áreas, como a cearense, é que parece haver a sociedade patriarcal absorvido  naquela área e na baiana donde se comunicou a outros trechos do país, sob formas pálidas  o rito da camisa nupcial, isto é, o de se fazer da camisa vestida pela noiva na noite de casamento e manchada de sangue, troféu da virgindade. Debret, curioso de informar-se a respeito dos ciganos do Brasil, soube do costume ainda dominante entre eles nos princípios do século XIX, da camisa bordada, de núpcias, ser, na manhã seguinte ao casamento, apresentada às pessoas mais respeitáveis da família como ‘trophée de l’hymen’ (81). Ainda hoje, em trechos do Brasil cultural ou socialmente mais presos ao passado patriarcal-pastoril, notam-se práticas semelhantes que Debret fixou como característica do patriarcalismo cigano em nosso país. Era natural que os dois patriarcalismos se interpenetrassem nesse e noutros pontos como do culto às imagens de santos com laços de fitas e moedas, que Debret registrou como pitoresco ciganismo no Brasil (82). No Brasil que ele conheceu nos primeiros anos do século XIX seria ciganismo. No Brasil de hoje, pode ser considerado bom e autêntico brasileirismo.

 

E na p. 792 (ao falar de judeus) GF nos ensina:

 

[...] O contrário dos ciganos que ostentavam nos cintos, no trajo, no cabelo, no pescoço, nas orelhas, nos braços, nos dedos, nos pés, tudo que era seu: ouro, prata, jóias, pedras preciosas...

 

Agora, precisamos transcrever as notas 76, 77e 78, supra, para não perder o fio-da-meada, às p. 826:

 

Nota76 Pereira da Costa –– ‘Ciganos’, Ms na Seção de Mss da Biblioteca do Estado de Pernambuco.

 

Este documento não foi localizado.

 

Nota 77 Kidder –– op cit., II, pág. 43.

 

Nota 78 Exemplo: no Diário do Maranhão, de 16 de maio de 1856, José Antonio Pereira de Lima, residente e lavrador na povoação do Pinheiro, Termo da Comarca de Guimarães, fazia público que no dia 27 do mês anterior ‘se sumirão trez crianças de sua fazenda Santa Maria, sita em, S. Bento. Estas crianças sahirão a brincar para a estrada que passa em frente da fazenda e segue pra diversas partes a horas depois do almoço e ao jantar he que as mães dão por falta dos filhos e sahindo ellas pelas estradas em procura delles só vião os rastos até certo ponto e dahi em diante nada poderão encontrar...

 

Não aceitamos as observações do grande Gilberto Freyre, onde se lê ciganos, leiam-se portugueses, brasileiros e judeus. Ou se quiser omitir a etnia/raça, citem-se as ocupações: negociantes, tratantes, comissários, consignatários, intermediários, mascates, comboieiros, tropeiros etc.

 

O Almanak Laemmert nas várias edições publica listas desses intermediários e sempre são portugueses e brasileiros. Pelo menos são nomes tipicamente nossos. Ex.: 1852, p 468. Negociantes de escravos ladinos: Custódio José de Magalhães Bastos, Joaquim Antônio Bastos, Manoel José Pereira Guimarães e outros. Escritórios e Casas de Consignação de Compra e Venda de Escravos: Godinho & Cia., José Antônio dos Santos Araújo, José Jacintho de Almeida, Victor Lúcio Vieira e outros. Chega?

 

É pena que G. Freyre tenha aceitado sem maiores pesquisas que os ciganos eram traficantes de escravos. A Biblioteca Nacional,[1] no Rio de Janeiro tem listas desses traficantes, representantes, proprietários, consignatários e armadores de resgate de escravos. Eles usualmente faziam abaixo-assinados pedindo mercês, privilégios ou benesses ao rei. Seus nomes representam a “fina-flor” da gente lusitana. É preciso ser muito ingênuo para acreditar que por detrás daqueles nomes tinham ciganos.

 

E no Arquivo Nacional [AN IJ6 165, Polícia, 1831-1832], lemos que Vicente João Barreto era Despachante de Escravos.

 

Em nosso livro Brumas da história, ciganos & escravos no Brasil, analisamos a problemática cigana e provamos sobejamente que eles tiveram inexpressiva participação no comércio escravista. Este torpe comércio foi realizado por nossos antepassados (portugueses e brasileiros), e por aqueles que realmente mandavam pelo poder do dinheiro os judeus. Nada contra este ou aquele traficante, mas que assumam. Unicuique suum.

 

Que cada um tire suas conclusões, a nossa é a seguinte: Gilberto Freyre foi preconceituoso contra ciganos, ele ignorou que eles:

 

Ajudaram alargar as fronteiras do Brasil;

Trouxeram para o Brasil o pandeiro, o violão de sete cordas e castanholas;

Contribuíram para o lundu, o fado e o samba (Ver capítulo III de Sociologia da vida quotidiana, de José Machado Pais);

Enriqueceram nosso idioma com numerosos verbetes;

Foram (no dizer de Mello Morais Filho) o cimento da nossa brasilidade, da nossa mestiçagem;

Deram grandes homens ao Brasil (JK (o presidente pé-de-valsa), Castro Alves, Guerra Peixe, Laurindo Rabelo e outros);

Contribuíram com 5000 trovas para nosso cancioneiro popular;

Desenvolveram nosso lado místico, nosso comportamento alegre;

Enriqueceram nosso folclore (dança do urso, pastoris, modinhas de roda, cigana do cajueiro);

Foram agentes da justiça ou meirinhos honestíssimos;

Influenciaram os trajes de nossas baianas;

Foram e são grandes divulgadores das artes circenses;

E com sua cultura peculiar, enriquecem a nossa brasilidade.

 

FINIS



[1] Ver na Seção de Manuscritos II-34,27,15 ou II-26,4,112. Também II-34,26,19.

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