(Tesouro de pensamentos)
SELETA SOBRE CIGANOS


por Asséde Paiva
postado no Benficanet em 26/01/2016

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“There’s night and day... sun, moon, and stars...

wind on the heath. Life is very sweet...”

(George Borrow, apud Clifford Lee, in Gypsies, National Geographic, 1970, p. 5)

 

Eis o que nos ensina Clifford Lee (à p. supracitada): Nós nunca mudamos. É difícil alterar um povo que se satisfaz com o que tem e deseja somente ser o que sempre foi.

 

 

Os poemas, pensamentos, axiomas, trovas outras coisas que se seguem, bem como textos, frases feitas são de autores de nomeada e seus nomes são anotados após cada documento. Ficaremos gratos àqueles que nos informarem mais dados sobre os criadores de tão belas palavras sobre o povo cigano. As frases (A. Paiva) são do organizador deste trabalho.

 

O mais antigo documento de que temos notícia sobre ciganos em terras portuguesas é uma poesia de Luís da Silveira, intitulada “As Martas de D. Jerônimo”, publicada no Cancioneiro Geral a pp. 295-296 do t. III da referida edição. Pode indicar-se o ano de 1510 como data provável desta composição. Luís da Silveira chalaceia de umas mangas estreitas e forradas de martas muito velhas, que D. Jerônimo de Eça mandou fazer em Almeirim:

 

Queyxa-sse Luys Teyxeira,

tem já mil concrusões postas,

que lhe tiraram das costas

estas peles de toupeyra.

Nam sabe per que maneira

lhe fizeram tal engano;

diz c’ou ele foy Çiguano,

ou muy fina feyticeira.

(In Etnografia portuguesa de J. Leite de Vasconcelos)

 

***

 

Não devemos deixar de ser cigano...

Porque somos primitivos;

Porque somos lendários;

Porque somos limpos, em nossos costumes;

Prque somos folclóricos;

Porque somos místicos;

Porque somos os desertos e os campos;

Porque somos de cor bonita;

Porque temos vestes alegres;

Porque somos sábios;

Porque somos ricos de dons dados por Deus;

Porque somos símbolos da liberdade;

Porque somos indomáveis;

Porque sem nós, algo faltaria na terra.

(In A Bíblia dos ciganos de Hugo Caldeira)

 

***

Pois o cigano é o mais honrado dos mortais perante um companheiro de raça ou um amigo. (Frederico G. Brepohl, apud Ático Vilas-Boas da Mota)

 

***

 

I have thought that we chals and cuckoos are alike in many respects, but especially in character everybody speaks ill of us both, and everybody is glad to see both of us again.

[Penso que ciganos e cucos são parecidos, de muitos modos, especialmente no caráter. Todos falam mal de nós e todos ficam alegres em nos rever.]

(Jasper, um cigano, conversando com George Borrow, in Romani rye.)

 

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Eu tenho orgulho de pertencer a um povo que nunca declarou guerra, porque nós, os ciganos, nunca tivemos necessidade de ter um território, nós não eliminamos nem empurramos outras populações para nos instalarmos em seu lugar. (In Savina, obra de Mateo Maximoff – Amok Teatro)

 

***

Eu pertenço a este povo mal conhecido que a calúnia ligou a seus pavores de criança. (Idem, ibidem)

 

***

Porque eu nasci cigano da cabeça aos pés, o mundo é minha casa, o céu é meu teto, a terra é meu chão. (Idem, ibidem)

 

***

O gadjo não compreende o cigano: ele quer que o cigano trabalhe. (Idem, ibidem)

 

***

A maior embriaguez é a liberdade. Levante-se na aurora e não se esqueça de que o pior do dia sempre chega de surpresa. (Idem, ibidem)

 

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Ser cigano é ter uma carne, uma alma, paixões, uma pele, instintos e desejos outros; é ver o mundo com outros olhos, com a música no sangue, uma altivez selvagem, a alegria misturada com as lágrimas; a tristeza, a vida e o amor desconfiados; é evitar a rotina e a normas que castram; é, graças ao canto, embriagar-se de vinho e de beijos; é transformar a vida em nova arte cheia de capricho e liberdade; é recusar o jugo da mediocridade; é tudo apostar num único lance; é saborear, se dar, experimentar. É viver. Isso é tudo. (Idem, ibidem)

 

***

O mundo gira e, no giro do mundo, civilizações se perderam e até se tornaram lendas. Os ciganos continuam girando no mundo, com o mundo. E longe de se tornarem lenda, contam as lendas do mundo. (Sérgio Ricardo de Souza, in Ciganos rom — um povo sem fronteiras)

 

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A tua raça de aventura/ quis ter a terra, o céu, o mar./ Na minha, há uma delícia obscura/ em não querer, em não ganhar.../ A tua raça quer partir,/ guerrear, sofrer, vencer, voltar./ A minha, não quer ir nem vir./ A minha raça quer passar// (Cecília Meirelles)

 

***

“Real Gypsy folk music uses no instruments. Singers are accompanied by stamping feet, clicking tongues, the tapping of spoons, and the rapping of knuckles on tables”. (József Vekerdi) [A verdadeira música folclórica cigana não usa instrumentos. Os cantores são acompanhados pelo bater dos pés, estalidos de língua, batida de colheres e golpes rápidos das juntas dos dedos nas mesas.]

 

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“For the gypsy, there exists only one rule: There are no rules”.

 

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Nós, o povo cigano, não queremos sua piedade, sua indiferença, sua animosidade. Mas queremos muito a sua compreensão, tolerância, respeito e paz. (A. Paiva)

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Deixaremos as epopéias

para cristãos e otomanos:

Sobreviver tem o seu épico.

Que diga o povo cigano.

 

Nem cobiçamos a terra

nem guerreamos, nós ciganos.

Viva nosso povo, ileso

entre cristãos e otomanos!

(Ion Budai Deleanu, in Canção do bulibacha)

 

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Hoje é muito importante;

ontem, passou;

amanhã, só o vento saberá;

pois o vento de amanhã soprará amanhã.

(dito cigano)

 

***

 

Buena-dicha:

Mustra la mano, señura,

No hayas ningun recelo.

Bendígate Diuz del cielo,

Tú tienez buena ventura,

muy buena ventura tienez.

Muchuz bienez, muchuz bienez,

Un hombre te quiere mucho,

Otroz te hablan de amurez;

Tú, señura, no te curez

De dar á muchuz escuto.

(Gil Vicente (In Auto de humas ciganas, 1521)

 

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Yó soy rico

Porque toda la riqueza

La alegria y el pan

Lo encuentro en mi liberdad.

(J. C. de Luna)

 

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Cigano de mal-andar

quem te dá acolhimento?

Procuras pátria e um lar,

filho da estrada e do vento.

 

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E tudo por que? Por ser eu cigano. Os ciganos não têm olhos?

Os ciganos não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões?

Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas,

não estão sujeitos às mesmas doenças,

não se curam com os mesmos remédios,

não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno

que aquecem e refrescam os não-ciganos?

(Aplicação de “O Mercador de Veneza”. Ato III, de Shakespeare)

 

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Eu o vi onde você nunca esteve,

E onde nunca estará.

E ainda naquele mesmo lugar

Você pode ser visto por mim

Pois dizer o que desconhecem

É a arte dos romanis.

(In Magia cigana, de Charles Godfrey Leland)

 

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Se arrancarmos seus adornos, permanecerá sua pele. Se trocarmos sua pele, ficará seu sangue. Se fizerem transfusão desse sangue, permanecerá o mais importante, imutável, eterno: a alma cigana. (Pedro Paulo Seródio Garcia)

***

À semelhança dos ciganos de hoje, que sempre são empurrados para as periferias das cidades, José e Maria tiveram que caminhar ainda mais. Seguiram em direção aos campos, fora da cidade. Certamente alguém gritou como gritam hoje certas associações de bairros, delegacias, prefeituras e até entidades religiosas, todos se achando donos do mundo: “Fora, fora daqui! Procurem outro lugar. Prá fora!” (Murialdo Gasparet)

***

Somos senhores dos campos, dos semeados, das selvas, das fontes e dos rios: os montes oferecem-nos fartura de lenha, as árvores frutas, as vinhas uvas, as hortas hortaliças, as fontes água, os rios peixes e as tapadas caça, sombra os penhascos, ar fresco os vales e casas as covas. Para nós as inclemências do céu são aragens, refrigério as neves, banhos a chuva, música os trovões e tochas os relâmpagos. Para nós os terrenos duros são colchões de penas macias; o couro curtido de nossos corpos servem-nos de arnês impenetrável que nos defende; a nossa ligeireza não a impedem grilos, nem a detêm barrancos, nem a contrastam paredes; o nosso ânimo não o torcem cordéis, nem o menoscabam garruchas, nem o asfixiam tocas, nem o domam poltros. (Miguel de Cervantes, apud Olímpio Nunes)

 

***

 

Ao longo dos séculos, apesar de constantemente expostos a múltiplas influências e pressões, conseguiram preservar uma identidade própria e demonstrar notável capacidade de adaptação e sobrevivência. Com efeito, quando consideramos as vicissitudes por que passaram ¾ pois a história que vamos relatar é em grande medida a história do que os outros fizeram para destruir a diferença ¾ somos forçados a concluir que a sua maior proeza [dos ciganos] foi precisamente terem conseguido sobreviver. (Angus Fraser)

 

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Senhor! me dá uma dica

 

Senhor,

Me dá uma dica

Que me conduza a ti,

À tua paz, ao teu perdão e à tua glória.

 

Me perdi no caminho que conduz à tua morada.

Sei que teu jugo é suave e o teu fardo é leve.

Sei que os simples herdarão a Terra.

Sei que hoje mesmo o bom ladrão estará contigo no paraíso.

Sei que perdoaste a adúltera e expulsaste os vendilhões do templo.

Sei que ressuscitaste Lázaro e bebeste da água da Samaritana.

 

Mas

Me ensinaram na infância que, em certo momento,

Tu te sentiste desamparado pelo Pai.

 

Como teu irmão, peço,

Me dá uma dica.

Não é necessário me mostrares os furos dos cravos, como a Tomé.

Nem me perdoares a pouca fé, como a Pedro.

Basta uma dica, um sinal inda que hermético,

Submerso, suscetível de leituras, múltiplas leituras

E herméticos comunicólogos.

Eu me garanto, decodifico e te acharei.

Basta uma dica.

(Paulo Macedo Verani, cigano do grupo Catumbi)

***

Não sou dessas bandas;

Não nasci aqui.

A roda da fortuna girando, girando;

Trouxe-me para aqui.

 

***

Minha estrada se compõe do céu estrelado. Viajei por anos-luz, até encontrar-me neste planeta.

 

***

As raposas têm tocas, e os pássaros do céu, ninhos, mas o Filho do Homem (Jesus) não tem onde descansar a cabeça (Mt 8, 20). Vede como Jesus era semelhante a vós. Como está próximo de vós! (Paulo VI, em 1975, falando a 2500 ciganos)

 

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Ustilê or trique

duque orobabas

nu pandebrê a chinibén gori

ta or nu sastraba

 

Este lenço em que choravas,

tomei-o na minha mão;

tapei com ele as feridas,

o lenço deixou-me são.

 

***

 

[....] não existe uma única nação no mundo que tenha tido uma história mais trágica, mais dura, mais sanguinolenta que a dos rom. Podemos dizer que atravessamos todas as penas mencionadas por Dante em seu Inferno. O grande poeta Antônio Machado tem razão em dizer: Entoai um canto, caro povo, ao Cristo que está sempre sobre a cruz e espera que o seu sangue seja lavado. E eu devo dizer que o Cristo Rom espera ainda ser libertado. (Rajko Djurié, presidente da União Romani Internacional)

 

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Prohasar man opre pirende. Sa muro djiben semas opre chengende.[1] “Enterrem-me em pé. Passei de joelhos toda a minha vida.” (Nicolae Gheorge, líder cigano).[2]

 

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Por cima o céu, por baixo a terra, no meio os ciganos. (ditado cigano)

 

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Pára cigano!... Mas tua estrela é ainda sem casa, sem pouso, sem pátria. (Alexandre Bittencourt)

 

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Os ciganos são os fantasmas de nós mesmos. (Jean Aicard, apud Ático Vilas-Boas da Mota)

 

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O cigano Roupalimpa passando montado numa mula rosilha, as em álacre vermelho raparigas buena-dicheiras. Loucos, a ponto de quererem juntas a liberdade e a felicidade. (Guimarães Rosa)

 

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Cigano não tem que ficar trabalhando dia e noite, igual gadjo, porque somos descendentes de Adão e outra mulher, antes de Eva. Não temos nada a ver com essa história do pecado original. (Juan González)

 

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No entanto, dentre os ciganos de quem se indagou sobre a participação de seus antepassados no comércio de escravos, alguns se mostraram incrédulos “Onde você leu isto?” “Quem inventou esta história sobre ciganos?” e outros disseram desprezar tal atitude — comércio de escravos — parta de quem partir. (Cristina C. Pereira)

 

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A liri es ye crayi nicobó a liri es calé = A lei dos reis tem destruído a lei dos ciganos.

 

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A lei dos ciganos tem só três mandamentos:

 

1.      Não vos separeis dos rom.

2.      Sede fiel aos rom.

3.      Pagai vossas dívidas aos rom.

      (In Richard Francis Burton)

 

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O homem faz o dinheiro, o dinheiro não faz o homem. (Provérbio cigano)

 

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E Deus colocou sinais nas mãos dos filhos do homem para que todos conhecessem as suas obras. Jó 37, 7. Assim, as ciganas se dizem autorizadas por Deus a lerem a sorte.

 

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Sovê abri (Dormir ao relento)

 

Gosta da noite como se fosse sua

Meu povo livre que em viagem vai

Seu canto triste rasga o ar da rua

Seus olhos choram quando a lua sai.

Hora do amor e da verdade crua

A noite é noiva virgem quando cai

Mas quando chega a alvorada nua

A virgindade sua com o sol se vai.

Silenciosa hora das partidas

Já eras antiga antes de meus avós...

Tu, que nos trazes lembranças queridas,

Só tu quem sabes como somos nós.

(Yargo Ragari)

 

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Era outra vez. Outro parque, outro circo, ciganos e patinadores. O circo chegou à cidade. Era uma tarde de sonhos e eu corri até lá. (Antônio Bivar)

 

***

 

Pois os ciganos foram os primeiros homens, feitos quando o mundo foi feito. E não morrerão. Permanecerão para sempre, neste mundo ou em outro; nesta época ou em outra. Pois trazem em seus corações a Palavra do Saber. E a palavra é viderimôs. [sobrevivência] (Adaptado de William L. Gresham, in Os ciganos da estrela)

 

***

...Porque os ciganos são filhos-do-vento, senhores da estrada, do fogo, do ferro, do martelo e da roda. (idem, ibidem)

 

***

 

 

A ética cigana:

 

·                    Respeito à família como instituição suprema da sociedade cigana

·                    amor aos filhos, consideração e respeito aos velhos

·                    hospitalidade com alegria

·                    honrar a palavra dada e fidelidade à Lei cigana

·                    liberdade como condição natural da vida

·                    solidariedade para com os membros da etnia cigana

·                    cumprimento das decisões tomadas pelos maiores.

 

***

O centro da moralidade cigana é a família, pequena ou grande, e para defendê-la, criou-se todo um código interno que tutela os direitos de sangue, de matrimônio e de valor. Entretanto não existe obrigação moral, com relação aos que estão fora do grupo. Juan de Dios Ramirez Heredia (cigano erudito, espanhol, do grupo calom) oferece uma espécie de decálogo deste código moral interno.

            Segundo este código, é pecado para um cigano, in Renato Rosso — Ciganos um povo de Deus:

 

1. Não ajudar outro cigano

2. violar os direitos de outro cigano

3. faltar com o respeito para com os mais velhos

4. faltar à palavra dada entre ciganos

5. abandonar os filhos

6. a separação conjugal por traição

7. a maternidade antes do matrimônio

8. a falta de pudor no vestir e os modos de comportar-se

9. furtar num lugar sagrado

10. ofender a memória dos mortos.

 

***

Os ciganos

 

Um dia, lá do Oriente,

De onde tudo começa,

Partiu meu povo contente,

Caminhando sem ter pressa.

 

Quando partiu? Ninguém sabe.

Por que partiu? Ninguém diz.

Partiu quando deu vontade.

Por que partiu? Porque quis.

 

Então aqui aparecemos,

Sem nunca saber quem somos.

Nosso passado esquecemos,

Só interessa o que somos.

 

Dizer que pátria não temos

É uma grande insensatez.

A nossa pátria, sabemos

É maior que a de vocês.

 

Sua pátria é um país somente,

A nossa é toda essa terra,

Que Deus nos deu de presente,

Por nunca fazermos guerra.

 

Somos um povo que canta

Feliz por saber viver.

O por-do-sol nos encanta,

Amamos o amanhecer.

 

O ontem, sempre passado

Amanhã sempre futuro

Vivemos despreocupados

O hoje que é mais seguro.

 

E assim, sempre de partida,

Ora no campo, ora na cidade,

Amamos a nossa vida,

Somos reis da liberdade.

(Zurca Sbano, in JB, 25/10/92)

 

Romani istina kaj si (Onde está a verdade cigana?)

 


Romani istina haj si?

Otkad dzanav andar ma

Tsahrentsa pó tem pirav

Rodav ljubvav te zagrlijaj

Cacipe taj sreca

 

Purilem e dromentz

Ljubab ni maraklen caco

Caco alav ni asundem

Romani istina kaj si?

 

 

Onde está a verdade cigana?

Tão longe quanto me lembro

Vago pelo mundo com a tenda

Buscando o amor e o afeto

Verdade e fortuna.

 

Envelheci na estrada

Sem encontrar o amor verdadeiro

Não ouvi a palavra justa.

Onde a verdade cigana?

(Rasim Sejdic, poeta zíngaro)


***

Temos por certo que Jesus foi o maior dos ciganos. Afinal, era um pobre galileu sem eira nem beira, andava descalço, como os ciganos, não tinha casa, como os ciganos, não tinha terra, como os ciganos, nem se agarrava aos valores materiais, como os zíngaros não se agarram. O quê fez Jesus dos treze aos trinta anos? Viajou à Índia para aprender com os budistas. E quê fez dos trinta e um aos trinta e três? Perambulou pela Palestina, pregando a boa-nova, fazendo milagres e dormindo ao relento. Na Bíblia lemos: “Eu tive fome e me deste o que comer, eu tive sede e me deste de beber”. Gostaria de saber quais seguidores de Cristo deram de ‘comer’ e ‘beber’ a um cigano, sem virar a cara para o lado? Quantos permitiram que ciganos pousassem em suas terras? Que Jesus era nômade não padece dúvida, pois está em várias passagens da Bíblia. Vejam estas: “Jesus percorria toda Galiléia, ensinando nas sinagogas o Evangelho do Reino, curando todas as doenças e enfermidades entre o povo... Grande multidão o acompanhava da Galiléia, da Decápole, de Jerusalém, da Judéia e dos países do outro lado do rio Jordão” (Mt 4-25). [....] “E andava por todas as cidades e aldeias” (Mt 9-35). Ele usava apenas uma túnica e que foi sorteada entre os soldados no Gólgota. Tão pobre como a maioria dos ciganos no mundo. (A. Paiva)

 

Ninguém tem como negar; Jesus veio para todos, mas nasceu entre os nômades e viveu como eles. Artista Maior no maravilhoso espetáculo do Universal Circus do Amor Divino, brilha à luz dos holofotes das estrelas e sob o infinito aplauso dos anjos. (Pedro Paulo Seródio)

 

 

Em tempos de reconciliação, de respeito aos direitos humanos das minorias e dos excluídos, é hora das várias denominações religiosas ou não, pedirem perdão aos ciganos. (A. Paiva)

 

***

Há qualquer coisa de extraordinário nos olhos do gitano: se o seu cabelo e a sua tez se tornasse tão loura como as do sueco ou do finlandês, e o seu ar de jóquei tão grave e cerimonioso como o do nativo de Castela-a-Velha, se ele se vestisse como um rei, um padre ou um guerreiro, ainda assim o gitano seria denunciado pelos seus olhos, se continuassem inalterados [....], os olhos do gitano não são grandes nem pequenos, e não revelam acentuadas diferenças, na sua forma, dos olhos dos outros homens. A sua peculiaridade consiste principalmente numa estranha expressão de fitar, que para se compreender, deve ser vista, e num leve vítreo que surge sobre eles, quando em repouso, e parece emitir luz fosfórica. Que os olhos dos ciganos têm algumas vezes um efeito peculiar, vê-se pela seguinte estância. [In Os ciganos de George Borrow]:

 

 “A gypsy stripling’s glossy eye

Has pierced my bosom’s core,

A feat no eye beneath the sky

Could e’er effect before.”

 

Os olhos resplandecentes de um cigano

Perfuram o âmago do meu peito,

Façanha que nenhum olho debaixo do céu

Poderia jamais ter efetuado.

 

“A people proscribed by opinion, and doomed by the laws to opprobrium and ignominy; a race which, driven from all liberal professions, has been for ages, and still is, robbed of its right to hold landed property; which, subjected to special and severe regulations, has learned at once to obey and yet to preserve a manner of independence; which, despite the contempt that  inspires and the hate that awakes and the prejudices wherewith  it is received and judged, still resists this contempt, his hatred, and finally all those causes which ought to disunite, loosen, and annihilate the family, the race, the nation;  such a people, I say, deserves the observer’s attention, if only from the fact of its existence.” (Jaubert de Passa)

 

Um povo proscrito por preconceito e condenado por leis ao opróbrio e à ignomínia; uma raça excluída de todas as profissões liberais; tem sido, por séculos, e ainda é roubada de seus direitos de propriedade e terra; que é sujeita a regulamentos severos e especiais; aprendeu a preservar enfim uma maneira de ser independente; e que apesar dos insultos e desrespeitos que recebe, do ódio que desperta e dos preconceitos;  e que onde quer que esteja é recebido e julgado; ainda resiste a esta aversão; finalmente, a todas aquelas causas que devem desuni-los, afrouxá-los e aniquilar a família, a raça, a nação;  este é um povo, eu digo, que merece a atenção do observador, ainda que seja somente pelo fato de sua existência. (Jaubert de Passa)

 

JOÃO DE TORRES, CIGANO DEGREDADO PARA O BRASIL, 1574 (grafia do original)

 

Dom sebastiam etc. faço saber que Johão de torres, çiguano preso no lymoeyro, me euju diser per sua petição que estamdo na villa de momtalluão morador e jmdo e vjimdo à castella fora preso he acusado pela justiça, dinzemdo que semdo ley deste Reyno que toda geração de çiguanos não vjuesem neste Reyno e delle se sahyssem em çerto tempo e por elle não ser sabedor da tall ley por jr he vyr há castella, fora preso he acusado pela justiça, elle he sua molher Amgylyna e condenado per sentença da mor allçada, elle em çimquo anos de degredo pera as gualles e açoutados publicamente, cõ baraço e preguão, e a dita sua molher se sahyrya do Reino em dez dias, visto como se não mostraua certidão de quamdo hally fora pobrjcada em momtalluão, homde forão presos, como todo se mostrua da sentença que oferecia. He por que dos haçoutes, baraço de preguão hera feita execuçam e a dita sua molher hera fora do Reyno e elle ser presente, estaua no lymoeiro, homde perecia há mjimgoa, e hera fraquo he quebrado, e não hera pera serujr em cousa de mar e muito pobre, que não tinha nada de seu, me pedya que ouuese por bem se sahyse loguo do Reyno ou que fose pera o brasyll pera sempre e podese leuar sua molher avendo respeito a pena que já tinha recebyda etc.; e eu vemdo que me asy dise he pedir emvyou, queremdo lhe fazer mercê visto hu parece como o meu pase (?), ey por bem e me praz se assy he como dis, de lhe cummutar os cimquo anos em que foy conenado pera as gualles, pelo caso de que faz menção, visto ho que halegua e declara, em outros cimquo anos pera o brasyll, homde leuara sua molher e filhos, visto outrosy com he feyta execuçam dos haçoutes; por tamto vos mamdo etc. na forma dada em allmerym a vii dias dabrill el rei nosso snr ho mamdou pelos doutores paullo affonso e amtonjo vaaz castello etc. dioguo fernandez a fez, ano do naçimento de nosso snr xpo de m ve lxxiiijo anos. Roque vieira a fez escreuer.

[Archivo Nacional, liv. 16 de Legitim. D. Seb. e D. Henr. fl. 189.][3]

 

Mas o primeiro cigano que veio para o Brasil chamava-se João Giciano, e para cá veio em 1568, com mulher e 14 filhos.



[1] Todos os verbetes em língua romani (cigana) estão em itálico.

[2] In Isabel Fonseca. Enterrem-me em pé: a longa viagem dos ciganos, p. 340.

[3] Apud Adolfo Coelho, em Os ciganos de Portugal. 2a edição. Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1995, pp. 199-200.

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