SANTA SARA OU SARA E ASTARTÉIA

por Asséde Paiva
postado no Benficanet em 05/12/2015

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Nem o bem, nem o mal existem isoladamente
Filosofia cigana

 

O que vamos expor aqui não é novidade. Trata-se de sincretismo, ou seja a superposição e confusão entre divindades de religiões ou crenças diferentes as quais são veneradas e/ou adoradas como se fossem a mesma e nunca se pode saber onde delimitar fronteira segura entre duas entidades. Ao que parece isto acontece muito no Brasil, por exemplo: A Umbanda tem santos como orixás: Ogum (que no catolicismo é são Jorge); N. S.ra Das Candeias / dos Navegantes / da Glória é Iemanjá, na Umbanda; são Jerônimo, são José, são Sebastião ou santo Antônio = Xangô. Já, no Batuque, santa Bárbara é Iansã; santa Catarina é Obá; são Lázaro é Xapanã e assim por adiante. Não é de se admirar que os ciganos, (como povo milenar, que caminha pelo mundo) têm crenças que se misturam como é o caso de santa Sara. Para esclarecer bem o assunto transcreve-se, verbatim, trecho do livro Gypsies, de Jean-Paul Clébert, um dos maiores e sérios ciganólogos da França, quiçá do mundo e também um dos mais respeitosos da cultura cigana, como um todo. Antes, porém, pedimos vênia para publicar uma história do folclore cigano que nos leva há mais de 4000 anos a.C. lá no Egito, nos tempos dos Faraós.

 

Fará-un, deus dos ciganos

 

Sim, nós, ciganos, temos um deus; chama-se Fara-un. É parte deus, bom, e parte humano, menos bom. Vê se me entendes! Também faz maldades, mas é puro. A lenda nos diz que há muitos e muitos anos uma cigana deixou seu bebê na floresta. Passou o tempo e o neném ficou com fome. Um anjo apareceu e deu-lhe o peito para mamar. Alimentado pelo angelical alimento, o bebê cresceu e ficou parte cigano e parte deus. O anjo lhe disse que teria vida muita boa, exceto às sextas-feiras quando não poderia festejar, nem fazer nada. Numa sexta-feira, ele deu animada festa que incluía todo tipo de alimento e bebida, menos peixe, que tinha sido proibido. Um homem desalmado, que tinha ciúmes do Fara-un, compareceu e imediatamente reclamou do anfitrião que não havia peixe à mesa. Ele disse para embaraçá-lo, porque tinha como certo que o Fará-un não conseguiria compra peixe em hora tardia. Mas, quando o Fara-un foi e voltou com peixe, o homem, sendo mau, ficou zangado, tão zangado que bateu no Fara-un e este se dobrou de joelhos várias vezes. O anjo que havia alimentado Fara-un viu que ele tinha problema e soprou-lhe que deveria se defender com a faca escondida no bolso. Na próxima vez que o homem bateu, Fara-un lhe deu uma facada abrindo-lhe a barriga. Imediatamente, duas enormes cobras saltaram. Elas disseram ao Fara-un que se ele as comesse, ele seria duas vezes mais forte do que era. Fara-un, entretanto, vendo que elas eram o mal e impuras, não as comeu, mas matou-as. Desde então, assim tem permanecido o deus dos ciganos, nem muito bom, nem de todo mau, mas puro no seu interior. À luz da arqueologia histórica cigana, eles estiveram mesmo no Egito, por muito tempo. Quem sabe se ajudaram o Faraó a construir as pirâmides?

 

Agora, vamos ao texto de Clébert, que é originalíssimo:

 

Sara, a virgem negra

 

Há, de fato, duas Saras: uma da Igreja Católica e a outra dos ciganos. A primeira, serva das três Marias: Maria Salomé, Maria Jacobé e Maria Madalena. Supostamente, Sara veio com suas senhoras e aportou no vilarejo de Saintes-Maries-de-la-Mer (Santas Marias do Mar). A tradição data da época do rei René, o Bom (1448). Esta Sara não teve o direito de canonização e permanece na cripta; foi banida da própria Igreja. A Sara dos ciganos, por outro lado, deve ter sido uma cigana que viveu às margens do Rhône com sua tribo e deve ter saudado as três Marias quando chegaram.

 

“Uma do nosso povo que recebeu a 1a Revelação foi Sara, a Kâli. Ela era de família nobre e era chefe de sua tribo às margens do Rhône. Ela conhecia os segredos que lhe foram transmitidos. Próximo ao Rhône as tribos trabalhavam com metais e se dedicavam ao comércio. O Rom [cigano] naquela época praticava uma religião politeísta e uma vez por ano eles carregavam nos ombros a estátua de Ishtari (Astarté) e iam ao mar para receber sua bênção. Um dia Sara teve visões que lhe informaram que os santos que tinham presenciado a morte Jesus viriam e que ela deveria ajudá-los. Sara os viu chegar num bote. O mar estava revolto e o barco ameaçava naufragar. Sara jogou seu vestido nas ondas e usando-o como uma balsa, flutuou em direção aos santos e ajudou-os alcançar a ilha. Os santos batizaram Sara e rezaram o Evangelho entre os gadjé e os Rom.

 

Mas antes de continuar é necessário recordar a essência da famosa peregrinação de Saintes-Maries-de-la-Mer. Nos dias 24 e 25 de maio, de cada ano, os ciganos costumam seguir esta peregrinação católica. Pois foi, na verdade, a Igreja que primeiramente instituiu esta comemoração, da chegada das três marias, após o rei René ter ordenado que se fizessem investigações. Uma tradição mais antiga, de fato registrou a chegada das três marias, mas não havia certeza em relação ao local onde elas haviam desembarcado. O local já mencionado, do qual estamos tratando, foi sucessivamente chamado de Notre-Dame-de-Rats, Três Marias, e Sainte-Marie-de-la-Barque (Santa Maria da Barca). Ratis significava “ilha da madeira” do celta rads — a menos que derive do latim raris, “balsa ou jangada”. As escavações ordenadas pelo rei René foram bem sucedidas, pois abaixo do coro da Igreja primitiva (a data de sua construção é desconhecida), foram descobertas as supostas relíquias dos santos. A peregrinação que se registra desde o século XV, logo floresceu.

 

A aparição oficial de Sara aconteceu um pouco depois e no Autor da última vida de M. Olier encontra-se a seguinte frase: ‘Num peito de bronze foram posteriormente encontrados... vários vestígios humanos que se acredita serem de Sara, uma seguidora das Santas Marias.’ Em 1521, Vincente Phillipon, em seu piedoso romance A lenda das Santas Marias Jacobé e Salomé, registra a presença de Sara, apontando seu papel: a fim de ajudar suas senhoras ela saiu por toda Camargue salvando almas. O dia 24 de maio foi escolhido em honra dos santos, os ciganos (presentes em Arles, em 1438) misturaram-se com os peregrinos. Mas no início eles não reconheciam Sara-la-Kâli. De acordo com outros escritores, foi somente em 1496 que os despojos da “serva” foram inventados.

 

Por que os ciganos escolheram Sara? Talvez por seu papel não imposto. Também, talvez por conta de seu apelido, “A egípcia”. Mas se continuarmos com a tradição cigana que teria Sara como uma deles e chefe tribal, nós podemos considerar a possibilidade de identificá-la como uma Virgem Negra.

 

O nome dado a Sara pelos ciganos — “a Kâli” — significa na língua deles “mulher negra” e “mulher cigana”.  Assim como o nome Sara para a Igreja é o da esposa de Abraão, isso traz junto uma série inteira de deusas-mães[1], das quais há os Saraii do Cáucaso, o mesmo povo que poderia ter dado seu nome a Sara bíblica.

 

O louvor cigano a Sara é extremamente interessante, especialmente porque esta é uma de suas poucas atividades na qual o gadjé pode estar presente facilmente. Até 1912, somente os ciganos tinham o direito de entrar na cripta da igreja. Eles passavam uma noite inteira lá e esta vigília não deixava de ser rodeada de mistério, especialmente aos olhos do Santo Padre que, naquele ano, foi permitido estar presente. Sabe-se que a cripta que geralmente é inundada com água, que penetra, abriga três elementos: à esquerda, quando se entra, há um velho altar, o altar pagão (alguns dizem que era para sacrifício de touros em adoração à Mithra, mas não há provas disso; no centro há o altar do 3º século cristão; e à direita há a estátua de Sara. Esta ultima não me impressiona datá-la como anterior ao século XVII. André Delage teve a oportunidade de examiná-la várias vezes, visto que sua restauração e conservação é creditada a ele: “Esta estátua, em gesso, e não em madeira, conforme foi afirmado algumas vezes, não é, entretanto, muito antiga. É um gesso moldado num corpo que eu chamaria ‘padrão’, com uma cabeça onde toda evidência mostra não estar na mesma escala nem pela mesma mão que modelou o corpo. Em minha opinião, ela deve ter substituído uma estátua de madeira que era muito mais antiga.” Desta não permanece nem um traço. A atual estátua obviamente foi pintada de preto. Se ela claramente apresenta manchas no rosto, isto é devido aos contínuos retoques que pouco a pouco obliteram a pintura abaixo.

 

Durante a vigília, os ciganos não (ou não mais?) praticam ritos especiais. Eles se contentam em ficar olhando, geralmente descalços e com a cabeça descoberta. Alguns deles cochilam ou dormem ao longo das paredes. Quando presenciei uma dessas cenas novamente passei pela mesma impressão mental que costumava ter nos templos da Índia, onde a fé permanece profundamente e sem mudanças, aos pés dos ídolos.

 

Aqueles que chegam, devotam-se a Sara em dois atos do ritual: o toque e o pendurar de roupas. As mulheres especialmente tocam a estátua respeitosamente ou beijam a bainha de seus muitos vestidos. Elas penduram roupas ao seu lado, roupas que elas compraram, desde um lencinho de mão, a um lenço de seda; uma camisola ou um corpete. Às vezes é apenas uma questão de rasgar peças de roupa. Finalmente, eles tocam a Santa com vários objetos representando os ausentes e doentes (fotos, medalhas... ou alguma peça de roupa). De fato, este toque é como esfregar. A cerimônia não é original. O rito de pendurar roupas é conhecido entre os dravidianos, no norte da Índia que “acreditam, de fato, que as roupas de uma pessoa doente tornam-se impregnada com a doença e que o paciente será curado se sua roupa for purificada, entrando em contato com uma árvore sagrada”. Assim, entre eles são vistas árvores ou imagens cobertas com trapos ou fiapos, que eles chamam Chitraiya Bhavani, ‘Our Lady of Rags’ [Nossa Senhora dos Trapos]. Lá existe também uma ‘árvore para farrapos’ (sinderich ogateh) entre os Quirguizes do mar de Aral. Poderiam se encontrar, provavelmente, outros exemplos desta profilaxia mágica.

 

A segunda parte da peregrinação cigana consiste na procissão até o mar e na imersão simbólica, comum a todos os cultos das grandes deusas da fecundidade. A mágica da imersão induzia chuva. É claro que obter chuva parece menos importante para nômades do que para sedentários e maridos. Entretanto, apesar do fato dos nômades precisarem de grama para seus cavalos, os ciganos parecem ter servido anteriormente como intermediários neste ritual de fecundidade. De fato, inclusive recentemente na Bélgica e países da Europa Central “os ciganos costumavam participar de certos festivais com data fixa, um deles um pouco antes do Domingo de Ramos... e nos períodos de grande seca. Eles iam em grupos e ficavam em frente às residências dos grandes e ricos proprietários e dos mercados... e lá dançavam o tempo todo pedindo que caísse chuva, para beneficiar as suas lavouras. Os espectadores então iam pra frente com recipientes cheios de água que despejavam nas cabeças das mulheres que dançavam...” O autor deixa claro que as mulheres ficavam totalmente encharcadas. Com seus ‘trabalhos’ terminados, eles pegavam uma moeda de prata e iam embora para recomeçar em outro lugar.

 

É evidente que a imersão simbólica de Saintes-Maries-de-la-Mer não mais pretende produzir chuva. O ritual da fecundidade (no qual vimos que até Ishtar[2] participava) tornou-se uma bênção do mar por uma súbita adaptação da igreja. Os ciganos seguiram esta transformação mas, nesta evolução, eles conservaram o arquétipo da mãe-deusa e da Virgem Negra.

 

Ruth Parkington lembra que as três Marias ainda são homenageadas pelos ciganos na pequena vila Miguières, próxima de Chartres, e que curas mágicas (ou miraculosas) são observadas e testemunhadas lá. Mas Sara, diz ela, desapareceu do culto. Entretanto, observando os trabalhos de Saillens sobre virgens negras, vemos que Chartres não é apenas possuidora de uma virgem Negra desde tempos antigos, mas, além dessa há Santa Ana, protetora dos nascimentos e minas (do mundo subterrâneo). [Aditamos nós: temos também aqui, no Brasil, Nossa Senhora Aparecida, que é negra. NT]. [......].

 

Nerval relata, em Octavie, sua visita a uma senhora cigana da Itália em cuja casa assentava-se num trono, num local bem escolhido, uma madona negra. Isso não era um devaneio do poeta. Atualmente, ainda se descobre em caravanas ciganas a estátua de Kâli no altar-mor. Titã Parni, esposa de Matéo Maximoff, conseguiu boa reputação pintando e esculpindo efígies de deusas negras. Mas um estudo realmente cuidadoso do culto a Sara-Kâli entre os ciganos, ainda deve ser feito.

 

Finalmente, seria necessário comparar com Sara a Macarena, a Virgem dos ciganos espanhóis. Ela veste simbolicamente sete saias ou vestidos longos. Uma tradição judia enfatiza o papel destas duas madonas ao relacioná-las à doutrina cabalista da escola de Isaac, o cego, nascido em Beaucaire, no Rhône, que possivelmente contribuiu para este culto: Sara, na Cabala, significa ‘residência no exílio’ e leva o nome de “viúva caída”.

 

Vê-se facilmente que houve sincretismo das duas Saras: a Kâli (dos ciganos) e Sara (talvez filha de Maria Madalena). O interesse no fenômeno era de ambas as partes: aos ciganos interessavam ser aceitos pelos não ciganos; e estes, através da Igreja Católica, conquistavam mais prosélitos. No Brasil, o ecumenismo religioso é um fato digno de elogio, portanto, perfeitamente aceitável. Apenas para adicionar mais exemplos, anexamos estes obtidos na internet:

 

OXALÁ ALUFAN = Senhor do Universo (Deus)

OXALÁ GUIAN = Jesus Cristo

OXUN = Nª Srª da CONCEIÇÃO

OXUN Cobra Coral = Nª Srª de NAZARÉ

XANGÔ = São Jerônimo

NÃNÃ = Santa ANA

OMOLU = SÃO LÁZARO

OXOSSI = São Sebastião

IBEIJI = São Cosme e São Damião

EXU = Santo Antônio da Penha

 

Vale dizer que muitos católicos, no Brasil, acreditam em reencarnação, karma, conversas com espíritos dos mortos, e outras coisas pertinentes ao espiritismo. Qual católico ainda não foi ao Centro espírita ou ao Terreiro de Umbanda? Quem de nós ainda não leu a sorte ou mandou bater cartas? Quem não fez simpatia ou pediu benzedura?

 

O culto da Deusa-Mãe (ver nota dois, p. 3, deste trabalho) sobreviveu até a época dos romanos. As deusas locais eram facilmente assimiladas à adoração da Deusa-Mãe - Cybele, na Ásia Menor; Ísis, primeiro no Egito, depois em Roma; Gaia, na Grécia - por serem essencialmente a mesma divindade, a “Deusa dos muitos nomes”. Porém, o conflito entre os Deuses guerreiros patriarcais e a Deusa foi se intensificando. O triunfo dos tempos modernos tornou-se o triunfo do cristianismo e de um Deus Pai supremo. No final do Império Romano do Ocidente, os cultos à Mãe haviam se tornado dispersos, suprimidos, assimilados, distorcidos: deixara de haver a sensação profunda de confiança e de a ela pertencer que outrora haviam existido. (Retirado da internet).

 

Sara-la-Kâli, na arqueologia mítica cigana, corresponde a Astartéia, a deusa-mãe, e no cristianismo se confunde com Santa Sara, a de Saintes-Maries-de-la-Mer em Camargue, França, onde se realiza todos os anos, em 24 de maio,  a slava (festa), da padroeira dos ciganos. E tem mais, Sara seria filha de Maria Madalena com Jesus. Isto foi o tema de outro trabalho meu que tem o título Santa Sara.

 

A filha de Santa Maria Madalena: S A N T A S A R A

 

Vamos voltar há dois mil anos... ou mais, muito mais... Se quiserem podemos retroagir 5000 anos e chegaremos aos ciganos que ajudaram a construir as pirâmides do Egito. Porém, fiquemos nos tempos do Cristo.

 

Estava Jesus em pleno ministério sempre acompanhado por Maria Madalena, aquela que seria a discípula bem-amada. É daquela época que extraímos a mais bela lenda do povo cigano. Mas, antes falaremos de religiosidade dos ciganos, de maneira geral, que é incontestável. Os ciganos creem em Deus (Devel) e na entidade do mal (Beng). Fazem grandes peregrinações em 24/25 de maio a Saintes-maries-de-la-mer (França), em honra a santa Sara. No Brasil, além de Santa Sara, são devotos de N. Sra. Aparecida, são Jorge e outros santos, isto se forem católicos. Ressaltamos que os ciganos adotam a religião do país que os acolhe. No Brasil temos ciganos católicos, evangélicos, testemunhas de Jeová, protestantes, espíritas, adventistas, umbandistas e outras religiões/seitas. No mundo, encontramos ciganos na religião católica ortodoxa, muçulmanos, budistas, hindus etc. E são sinceros na crença que adotam.

 

São muitas as lendas que dizem ter Maria Madalena viajado à França (ou Gália na época) depois da crucificação de Jesus, acompanhada por um variado grupo de pessoas que inclui uma jovem serva negra chamada Sara, Maria Salomé e Maria Jacobina — supostamente tias de Jesus — além de José de Arimateia, o rico proprietário do sepulcro onde Jesus foi colocado, antes da ressurreição, e São Maximino, um dos setenta e dois discípulos mais próximos de Jesus e primeiro bispo de Provença. Embora os detalhes da narrativa variem de versão para versão, parece que Madalena e seu séquito foram obrigados a fugir da Palestina em condições mais que precárias [...] Reza a lenda que eles desembarcaram (sem dúvida, muito agradecidos, depois de vagarem por águas salgadas durante semanas) no que hoje é a cidade de Saintes-maries-de-la-mer, nas terras úmidas da Camargue, onde o Ródano deságua no Mediterrâneo. As três Marias — Maria Madalena, Maria Jacobina e Maria Salomé — são objeto de grande veneração na igreja que se ergue dos charcos circundantes como uma imponente vela de navio, ao passo que na cripta há um altar dedicado a Sara, a egípcia, a pequena serva negra de Maria Madalena, hoje a venerada santa padroeira dos ciganos, que afluem à cidade no feriado de 24/25 de maio, quando milhares de fiéis devotados conduzem a estátua de Sara até o mar, para sua imersão cerimonial. O fato de a tradição medieval considerar os ciganos originários do Egito — egypsies — confere sentido à sua veneração pela menina egípcia Sara...

 

As lendas têm muitas versões, por isso são lendas, ficamos com uma adaptação que seria a seguinte: Maria Madalena era o cálice sagrado (Santo Graal), porque trazia em seu ventre o sangue real, a semente de Jesus. Ela teria passado alguns anos em Alexandria, no Egito e Sara seria sua filha e de Jesus (portanto, Sara não era serva das Marias), constituindo-se na linhagem sagrada. Maria Madalena, por motivo desconhecido (perseguição talvez) fugiu para a Gália com Sara e José de Arimateia. Lá foram acolhidos pelos ciganos. Sara é venerada pelos ciganos, até porque Madalena, sua mãe, também é conhecida por Madalena Egipcíaca. Isto faz sentido; os ciganos seriam os verdadeiros guardiões da linhagem sagrada através de veneração à santa Sara: a santa das santas. Curioso é o fato de que a igreja não relaciona santa Sara em sua hagiografia. Por quê? Que nos respondam os que sabem!

 

Encontramos em um livro, às vezes muito elogiado, outras vezes criticado sem piedade, texto que nos conta algo que até agora desconhecíamos sobre o Mestre Jesus. Está no livro O código da Vinci, de Dan Brown, editora Sextante, 2004. extraímos este diálogo entre os três personagens principais do livro: Langdon, Teabing e Shofie:

 

O importante aqui — disse Langdon, voltando à estante — é que todos estes livros apóiam a mesma premissa histórica.

— Que Jesus foi pai — Sophie ainda estava insegura.

É — disse Teabing. — E que Maria Madalena foi o ventre que transmitiu sua linhagem sagrada. O Priorado de Sião, até hoje, ainda venera Maria Madalena como a Deusa, o Santo Graal, a Rosa e a Divina Mãe.

Sophie voltou a visualizar rapidamente o ritual do porão.

De acordo com o Priorado — continuou Teabing — , Maria Madalena estava grávida quando Jesus foi crucificado. Para segurança do filho ainda não nascido de Cristo, ela não teve escolha senão fugir da Terra Santa. Com ajuda do tio em que Jesus tinha grande confiança, José de Arimateia, Maria Madalena secretamente viajou para a França, que na época era conhecida como Gália. Ali encontrou refúgio seguro na comunidade judaica. Foi na França que deu à luz uma filha. O nome dela era Sara....

 

Notamos pois muitas semelhanças entre as lendas, ora Sara nasceu no Egito, ora na França, ora foi acompanhante das Marias. Então não vamos discutir mais: Sara existiu e foi o fruto da união de Jesus e Madalena.

 

Os ciganos, não só são muito religiosos, como também são a fonte de inspiração para os poetas, e eles têm Deus no coração e só eles podem expressar tanta religiosidade.

 

Há uma versão creditada a Jean-Paul Clébert, em seu livro The gypsies, p. 141, que aborda a existência de outra Sara: Sara the Kâli. E diz assim: A Sara dos ciganos por outro lado, vivia às margens do Ródano com sua tribo e saudou as três Marias quando elas desembarcaram. Nosso povo recebeu a primeira Revelação de Sara a Kâli. Ela era de nobre nascimento e chefe da tribo às margens do Ródano. Ela sabia dos segredos que a ela tinham sido transmitidos. Perto do Ródano as tribos trabalhavam metais e comerciavam. O Cigano naquele tempo praticava religião politeísta e uma vez ao ano eles levavam em seus ombros a estátua de Astarté [divindade sideral feminina] em procissão ao mar onde recebiam suas benções. Um dia, Sara vira a chegada do bote com as Marias. O mar estava revolto e o bote ameaça afundar. Sara jogou seu vestido nas ondas, e usando-o como uma jangada, foi às santas e ajudou-as a ir à terra. As santas batizaram Sara e elevaram suas preces pedindo pelos gadjês e pelos rom.

 

A veneração dos ciganos por Sara é extremamente interessante, especialmente porque é uma das poucas atividades deles, nas quais o não-cigano pode facilmente estar presente. Depois de 1912, somente os ciganos tinham o direito de penetrar na cripta. Eles passavam a noite lá, e faziam vigília, para não falhar com o mistério, particularmente aos olhos do santo padre que no ano estava presente. É sabido que a cripta, usualmente inundada com água de nascente, dá guarida a três elementos: à esquerda de quem entra, há o altar, (um altar pagão); no centro, há o altar cristão (do séc. III); e à direita há a estátua (ícone) de Santa Sara. É muito antiga. A estátua atual foi obviamente pintada de preto. Se limpidez aparece em sua face é porque é continuamente tocada e retocada.

 

Durante a vigília, os ciganos não mais praticam ritos especiais. Eles se satisfazem em manter observação, usualmente descalços e cabeça descoberta. Alguns deles cochilam ou dormem ao longo das paredes. Aqueles que chegam, devotos de Sara, fazem o ritual em dois atos: o toque e ornando-a com flores, pondo-lhe rendas, véus, jóias talismãs; pendurando roupas ou trajes (capas, mantos, lenços etc.). As mulheres particularmente, respeitosamente tocam a estátua e beijam as franjas dos seus vestidos. Então dependuram ao lado dela, roupas que trouxeram desde mantilhas de seda, corpetes, bustiê etc. Algumas vezes, somente pedaços de pano. Finalmente, eles tocam a santa com uma miscelânea de objetos representando os ausentes ou doentes (fotos, medalhas... ou ainda itens de roupas). E acendem velas, círios, produzindo intensa luz e calor.

 

A segunda parte da peregrinação cigana consiste na procissão ao mar e simbólica imersão, comum a todos os cultos da grande deusa da fecundidade. A magia da imersão induz a chuva. Claramente, obter chuva é menos importante para os nômades do que para os sedentários e casados. É evidente que a simbólica imersão de Saintes-maries-de-la-mer não mais pretende fazer chover. O ritual da fecundidade tornou-se uma bênção do mar por uma sutil adaptação da igreja. Os ciganos seguem esta transformação. Mas nesta evolução, eles conservaram o arquétipo da deusa-mãe e da virgem negra.

 

Do mundo inteiro vêm turistas e ciganos à cripta de Sara. A festa, como toda festa de origem católica, é religiosa e profana. Há procissões, há orações e muita música, pelotiqueiros, buena-dicha, comidas típicas, danças, na parte profana propriamente dita. Mas vamos ver um pouco de história que é essencial para a famosa peregrinação a Saintes-Maries-de-la Mer. Dias 24 e 25 de maio, todos os anos os ciganos tornaram-se costumeiros na peregrinação católica. Realmente, há uma igreja erigida em comemoração à chegada das três marias, depois de o rei René[1-2] ter ordenado uma investigação sobre o assunto. Velhíssima tradição registra o tal desembarque das três marias, mas não há certeza em qual lugar desceram a terra: o lugar já mencionado, com o qual estamos lidando, foi sucessivamente chamado Nossa Senhora de Ratis, de três marias, e Sainte-Marie-de-la-Barque; ratis poderia significar ‘ilha de madeira’. A escavação ordenada pelo rei René foi bem sucedida, debaixo do coro da igreja primitiva (a data em que ela foi construída é desconhecida) foram encontradas as supostas relíquias das santas. E a peregrinação tem sido registrada desde o século XV e cada vez mais florescente. A aparição de Sara se deu um pouco mais tarde e no texto Autor do fim da vida de M. Olier encontra-se esta frase: ‘Em uma arca de bronze foram depois encontradas... ossadas humanas que se acreditou ser de Sara, acompanhante das sagradas marias.’ Em 1521, Vicente Phillipon, em sua piedosa novela A lenda das santas Marias Jacobé e Salomé, registra a presença de Sara, minimizando seu papel dizendo ser apenas a serva. Ela viajara através de Camargue pedindo donativos. Dia 24 de maio foi escolhido para honrar as santas, e ciganos (presentes em Arles desde 1438) juntaram-se aos peregrinos. Mas de início não a reconheceram como Sara-a Kâli. Isto só se deu em 1496. A ideia de serva das Marias foi uma ideia ecumênica. O nome dado pelos ciganos a Sara — A Kâli — significa na linguagem dos rom ora ‘mulher negra’, ora mulher cigana. Sara, na igreja pode ser a mulher de Abraão que traz em si a ideia da mãe-deusa, bem como pode ser Sari do Cáucaso, o mesmo povo que deu o nome bíblico de Sara.

 

Se Santa Sara veio no barco com as três Marias, se estava na praia esperando por elas e as salvando, se era serva de Madalena, ou segundo outros, era sua filha e de Jesus. Também se Sara relembra a mulher de Abrão ou uma egipcíaca; tudo isto, esta confusão de lendas, só atrai mais e mais fiéis e admiradores e à festa em Saintes-Maries-de-la-mer, que só cresce ano a ano. Ciganos de toda Europa (e do Brasil) vão anualmente à Camargue, França, à igreja das santas mencionadas, para celebrar a festa de sua rainha. A cripta e a santa, no dia da festa, são clarificadas por milhares de velas, acendidas pelos nômades, e postas por eles ou por eles carregadas. O calor é intenso e a alegria também. A música é maravilhosa. A procissão em direção ao mar é festiva e religiosa. Eles chamam a cripta de o ventre da mãe Sara, e a chamam de Kâli-Sara, em analogia à deusa-mãe da sua terra natal, a Índia. Sara, é conhecida como a mãe sábia, que guarda conhecimentos secretos. As mulheres ciganas têm especial encantamento por Sara e parecem receber retribuição por isto, muitas bênçãos são atestadas. Sara está coroada e vestida com todos os atavios que os ciganos e ciganas lhes oferecem, e são tantos, que são constantemente trocados: jóias, lenços, mantos, véus e muito mais. Os devotos acariciam sua face, beijam a fímbria dos seus vestidos e colocam flores em sua volta. Cartas postas a sua volta atestam os milagres recebidos, muletas de criança encontram-se ao lado da rocha.

 

Quando o culto a Santa Sara veio para o Brasil? Matéria controversa. Quem trouxe? É mais controverso ainda... Entretanto, podemos afirmar, sem medo de errar, que é da década de 60. Mirian Stanescon (princesa dos ciganos) conseguiu, após negociação pertinaz, com a Prefeitura do Rio de Janeiro, a concessão de uma gruta, no Arpoador, Rio de Janeiro, onde pôde entronizar ou fazer assentamento, para culto reverencial (de ciganos e gadjês), sendo que a imagem de Santa Sara, por tradição, deve ficar com a face virada para o mar ou, no mínimo, próximo a ele, e isto foi atendido.

 

Para saber mais (obras citadas por Clébert):

 

Franz de Ville. Tradition of the Belgian Gypsies.
Delage: Les Saintes-Maries-de-la-Mer, in special issue of Études Tziganes.
The Roumanian peasants, to drive way a witch, shout: Manna Sara!
Mayani: Les Hyksos et le Peuple de la Bible, 1956.
Saillens: Nos Vierges noires, 1945.
More Legends of the Gypsies and the Holy Family, JGLS XXXVIII, 1-2.

 

 

FINIS

 

 


[1] Deusas- mães, aquelas que presidiam à geração e à fecundidade, como Cybele, Réia, Deméter, Isis e outras. In Grande Enciclopédia Delta Larousse, 1973, p.2156. N.T.

Gaia = Terra e deusa-mãe. Leiam este poema que colhi na Internet: Gaia que fez o céu / que me faz amar / Gaia, deusa da terra / mãe criadora / do mar / ela é a mãe natureza / minha rainha, pura beleza / misticismo natural / alegria do luar / flores dadas pro amor / doce canto, beija-flor. //

 

[2] Deusa babilônica (acadiana) do amor e da sexualidade. [....] Na ausência de Ishtar, cessa toda procriação sobre a terra. Embora seja aclamada como ‘virgem’, ela tem muitos amantes. Ela tem além do aspecto erótico, funções guerreiras e astrais. É a deusa Vênus, como estrela da manhã, em marcos de fronteira dos períodos médio e tardio da Babilônia, é representada por uma estrela de oito pontas. In Dicionário dos deuses e demônios, Martins Fontes, Editora, 1993, p.102. Note-se que a estrela de oito raios (ou pontos, metade de 16) aparece na inscrição de Assurbanipal e designa Ishtar. In Clébert, op. cit. p. 139. E lembro que a bandeira cigana tem ao centro uma roda com 16 raios.

 

[1_2] (Renato) I O Bom (Angers 1409-Aix-em-Provence 1480). Duque de Anjou, conde de Provence, duque efetivo de Bar, duque de Lorena, rei de Nápoles, titular da Sicília, rei nominal de Jerusalem.

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