Nem o bem, nem o mal existem isoladamente
Filosofia cigana
O que vamos expor aqui não é novidade. Trata-se de sincretismo,
ou seja a superposição e confusão entre divindades de religiões
ou crenças diferentes as quais são veneradas e/ou adoradas como
se fossem a mesma e nunca se pode saber onde delimitar fronteira
segura entre duas entidades. Ao que parece isto acontece muito
no Brasil, por exemplo: A Umbanda tem santos como orixás:
Ogum (que no catolicismo é são Jorge); N. S.ra Das Candeias
/ dos Navegantes / da Glória é
Iemanjá, na Umbanda; são Jerônimo, são José, são Sebastião
ou santo Antônio = Xangô. Já, no Batuque, santa Bárbara é
Iansã; santa Catarina é Obá;
são Lázaro é Xapanã e
assim por adiante. Não é de se admirar que os ciganos, (como
povo milenar, que caminha pelo mundo) têm crenças que se
misturam como é o caso de santa Sara. Para esclarecer bem o
assunto transcreve-se,
verbatim, trecho do livro
Gypsies, de Jean-Paul
Clébert, um dos maiores e sérios ciganólogos da França, quiçá do
mundo e também um dos mais respeitosos da cultura cigana, como
um todo. Antes, porém, pedimos vênia para publicar uma história
do folclore cigano que nos leva há mais de 4000 anos a.C. lá no
Egito, nos tempos dos Faraós.
Fará-un, deus dos ciganos
Sim, nós, ciganos, temos um deus; chama-se Fara-un. É parte
deus, bom, e parte humano, menos bom. Vê se me entendes! Também
faz maldades, mas é puro. A lenda nos diz que há muitos e muitos
anos uma cigana deixou seu bebê na floresta. Passou o tempo e o
neném ficou com fome. Um anjo apareceu e deu-lhe o peito para
mamar. Alimentado pelo angelical alimento, o bebê cresceu e
ficou parte cigano e parte deus. O anjo lhe disse que teria vida
muita boa, exceto às sextas-feiras quando não poderia festejar,
nem fazer nada. Numa sexta-feira, ele deu animada festa que
incluía todo tipo de alimento e bebida, menos peixe, que tinha
sido proibido. Um homem desalmado, que tinha ciúmes do Fara-un,
compareceu e imediatamente reclamou do anfitrião que não havia
peixe à mesa. Ele disse para embaraçá-lo, porque tinha como
certo que o Fará-un não conseguiria compra peixe em hora tardia.
Mas, quando o Fara-un foi e voltou com peixe, o homem, sendo
mau, ficou zangado, tão zangado que bateu no Fara-un e este se
dobrou de joelhos várias vezes. O anjo que havia alimentado
Fara-un viu que ele tinha problema e soprou-lhe que deveria se
defender com a faca escondida no bolso. Na próxima vez que o
homem bateu, Fara-un lhe deu uma facada abrindo-lhe a barriga.
Imediatamente, duas enormes cobras saltaram. Elas disseram ao
Fara-un que se ele as comesse, ele seria duas vezes mais forte
do que era. Fara-un, entretanto, vendo que elas eram o mal e
impuras, não as comeu, mas matou-as. Desde então, assim tem
permanecido o deus dos ciganos, nem muito bom, nem de todo mau,
mas puro no seu interior. À luz da arqueologia histórica cigana,
eles estiveram mesmo no Egito, por muito tempo. Quem sabe se
ajudaram o Faraó a
construir as pirâmides?
Agora, vamos ao texto de Clébert, que é originalíssimo:
Sara, a virgem negra
Há,
de fato, duas Saras: uma da Igreja Católica e a outra dos
ciganos. A primeira, serva das três Marias: Maria Salomé, Maria
Jacobé e Maria Madalena. Supostamente, Sara veio com suas
senhoras e aportou no vilarejo de Saintes-Maries-de-la-Mer
(Santas Marias do Mar). A tradição data da época do rei René, o
Bom (1448). Esta Sara não teve o direito de canonização e
permanece na cripta; foi banida da própria Igreja. A Sara dos
ciganos, por outro lado, deve ter sido uma cigana que viveu às
margens do Rhône com sua tribo e deve ter saudado as três Marias
quando chegaram.
“Uma do nosso povo que recebeu a 1a
Revelação foi Sara, a Kâli. Ela era de família nobre e era chefe
de sua tribo às margens do Rhône. Ela conhecia os segredos que
lhe foram transmitidos. Próximo ao Rhône as tribos trabalhavam
com metais e se dedicavam ao comércio. O
Rom [cigano] naquela
época praticava uma religião politeísta e uma vez por ano eles
carregavam nos ombros a estátua de Ishtari (Astarté) e iam ao
mar para receber sua bênção. Um dia Sara teve visões que lhe
informaram que os santos que tinham presenciado a morte Jesus
viriam e que ela deveria ajudá-los. Sara os viu chegar num bote.
O mar estava revolto e o barco ameaçava naufragar. Sara jogou
seu vestido nas ondas e usando-o como uma balsa, flutuou em
direção aos santos e ajudou-os alcançar a ilha. Os santos
batizaram Sara e rezaram o Evangelho entre os gadjé e os Rom.
Mas antes de continuar é necessário recordar a essência da
famosa peregrinação de Saintes-Maries-de-la-Mer. Nos dias 24 e
25 de maio, de cada ano, os ciganos costumam seguir esta
peregrinação católica. Pois foi, na verdade, a Igreja que
primeiramente instituiu esta comemoração, da chegada das três
marias, após o rei René ter ordenado que se fizessem
investigações. Uma tradição mais antiga, de fato registrou a
chegada das três marias, mas não havia certeza em relação ao
local onde elas haviam desembarcado. O local já mencionado, do
qual estamos tratando, foi sucessivamente chamado de
Notre-Dame-de-Rats,
Três Marias, e Sainte-Marie-de-la-Barque (Santa Maria da Barca).
Ratis significava
“ilha da madeira” do celta
rads — a menos que derive do latim
raris, “balsa ou
jangada”. As escavações ordenadas pelo rei René foram bem
sucedidas, pois abaixo do coro da Igreja primitiva (a data de
sua construção é desconhecida), foram descobertas as supostas
relíquias dos santos. A peregrinação que se registra desde o
século XV, logo floresceu.
A aparição oficial de Sara aconteceu um pouco depois e no
Autor da última vida de M. Olier encontra-se a seguinte frase: ‘Num
peito de bronze foram posteriormente encontrados... vários
vestígios humanos que se acredita serem de Sara, uma seguidora
das Santas Marias.’ Em 1521, Vincente Phillipon, em seu piedoso
romance A lenda das Santas
Marias Jacobé e Salomé,
registra a presença de Sara, apontando seu papel: a fim de
ajudar suas senhoras ela saiu por toda Camargue salvando almas.
O dia 24 de maio foi escolhido em honra dos santos, os ciganos
(presentes em Arles, em 1438) misturaram-se com os peregrinos.
Mas no início eles não reconheciam Sara-la-Kâli. De acordo com
outros escritores, foi somente em 1496 que os despojos da
“serva” foram inventados.
Por que os ciganos escolheram Sara? Talvez por seu papel não
imposto. Também, talvez por conta de seu apelido, “A egípcia”.
Mas se continuarmos com a tradição cigana que teria Sara como
uma deles e chefe tribal, nós podemos considerar a possibilidade
de identificá-la como uma Virgem Negra.
O nome dado a Sara pelos ciganos — “a
Kâli” — significa na língua deles “mulher negra” e “mulher
cigana”.
Assim como o nome Sara para a Igreja é o da esposa de
Abraão, isso traz junto uma série inteira de deusas-mães[1],
das quais há os Saraii
do Cáucaso, o mesmo povo que poderia ter dado seu nome a Sara
bíblica.
O louvor cigano a Sara é extremamente interessante,
especialmente porque esta é uma de suas poucas atividades na
qual o gadjé pode estar presente facilmente. Até 1912, somente
os ciganos tinham o direito de entrar na cripta da igreja. Eles
passavam uma noite inteira lá e esta vigília não deixava de ser
rodeada de mistério, especialmente aos olhos do Santo Padre que,
naquele ano, foi permitido estar presente. Sabe-se que a cripta
que geralmente é inundada com água, que penetra, abriga três
elementos: à esquerda, quando se entra, há um velho altar, o
altar pagão (alguns dizem que era para sacrifício de touros em
adoração à Mithra, mas não há provas disso; no centro há o altar
do 3º século cristão; e à direita há a estátua de Sara.
Esta ultima não me impressiona datá-la como anterior ao século
XVII. André Delage teve a oportunidade de examiná-la várias
vezes, visto que sua restauração e conservação é creditada a
ele: “Esta estátua, em gesso, e não em madeira, conforme foi
afirmado algumas vezes, não é, entretanto, muito antiga. É um
gesso moldado num corpo que eu chamaria ‘padrão’, com uma cabeça
onde toda evidência mostra não estar na mesma escala nem pela
mesma mão que modelou o corpo. Em minha opinião, ela deve ter
substituído uma estátua de madeira que era muito mais antiga.”
Desta não permanece nem um traço. A atual estátua obviamente foi
pintada de preto. Se ela claramente apresenta manchas no rosto,
isto é devido aos contínuos retoques que pouco a pouco obliteram
a pintura abaixo.
Durante a vigília, os ciganos não (ou não mais?) praticam ritos
especiais. Eles se contentam em ficar olhando, geralmente
descalços e com a cabeça descoberta. Alguns deles cochilam ou
dormem ao longo das paredes. Quando presenciei uma dessas cenas
novamente passei pela mesma impressão mental que costumava ter
nos templos da Índia, onde a fé permanece profundamente e sem
mudanças, aos pés dos ídolos.
Aqueles que chegam, devotam-se a Sara em dois atos do ritual: o
toque e o pendurar de roupas. As mulheres especialmente tocam a
estátua respeitosamente ou beijam a bainha de seus muitos
vestidos. Elas penduram roupas ao seu lado, roupas que elas
compraram, desde um lencinho de mão, a um lenço de seda; uma
camisola ou um corpete. Às vezes é apenas uma questão de rasgar
peças de roupa. Finalmente, eles tocam a Santa com vários
objetos representando os ausentes e doentes (fotos, medalhas...
ou alguma peça de roupa). De fato, este toque é como esfregar. A
cerimônia não é original. O rito de pendurar roupas é conhecido
entre os dravidianos, no norte da Índia que “acreditam, de fato,
que as roupas de uma pessoa doente tornam-se impregnada com a
doença e que o paciente será curado se sua roupa for purificada,
entrando em contato com uma árvore sagrada”. Assim, entre eles
são vistas árvores ou imagens cobertas com trapos ou fiapos, que
eles chamam Chitraiya
Bhavani, ‘Our Lady of
Rags’ [Nossa Senhora dos Trapos]. Lá existe também uma
‘árvore para farrapos’ (sinderich ogateh) entre os Quirguizes do mar de Aral. Poderiam se
encontrar, provavelmente, outros exemplos desta profilaxia
mágica.
A segunda parte da peregrinação cigana consiste na procissão até
o mar e na imersão simbólica, comum a todos os cultos das
grandes deusas da fecundidade. A mágica da imersão induzia
chuva. É claro que obter chuva parece menos importante para
nômades do que para sedentários e maridos. Entretanto, apesar do
fato dos nômades precisarem de grama para seus cavalos, os
ciganos parecem ter servido anteriormente como intermediários
neste ritual de fecundidade. De fato, inclusive recentemente na
Bélgica e países da Europa Central “os ciganos costumavam
participar de certos festivais com data fixa, um deles um pouco
antes do Domingo de Ramos... e nos períodos de grande seca. Eles
iam em grupos e ficavam em frente às residências dos grandes e
ricos proprietários e dos mercados... e lá dançavam o tempo todo
pedindo que caísse chuva, para beneficiar as suas lavouras. Os
espectadores então iam pra frente com recipientes cheios de água
que despejavam nas cabeças das mulheres que dançavam...” O autor
deixa claro que as mulheres ficavam totalmente encharcadas. Com
seus ‘trabalhos’ terminados, eles pegavam uma moeda de prata e
iam embora para recomeçar em outro lugar.
É evidente que a imersão simbólica de
Saintes-Maries-de-la-Mer não mais pretende produzir chuva. O
ritual da fecundidade (no qual vimos que até Ishtar[2]
participava) tornou-se uma bênção do mar por uma súbita
adaptação da igreja. Os ciganos seguiram esta transformação mas,
nesta evolução, eles conservaram o arquétipo da mãe-deusa e da
Virgem Negra.
Ruth Parkington lembra que as três Marias ainda são homenageadas
pelos ciganos na pequena vila Miguières, próxima de Chartres, e
que curas mágicas (ou miraculosas) são observadas e
testemunhadas lá. Mas Sara, diz ela, desapareceu do culto.
Entretanto, observando os trabalhos de Saillens sobre virgens
negras, vemos que Chartres não é apenas possuidora de uma virgem
Negra desde tempos antigos, mas, além dessa há Santa Ana,
protetora dos nascimentos e minas (do mundo subterrâneo).
[Aditamos nós: temos também aqui, no Brasil, Nossa Senhora
Aparecida, que é negra. NT]. [......].
Nerval relata, em Octavie,
sua visita a uma senhora cigana da Itália em cuja casa
assentava-se num trono, num local bem escolhido, uma madona
negra. Isso não era um devaneio do poeta. Atualmente, ainda se
descobre em caravanas ciganas a estátua de Kâli no altar-mor.
Titã Parni, esposa de Matéo Maximoff, conseguiu boa reputação
pintando e esculpindo efígies de deusas negras. Mas um estudo
realmente cuidadoso do culto a Sara-Kâli entre os ciganos, ainda
deve ser feito.
Finalmente, seria necessário comparar com Sara
a Macarena, a Virgem
dos ciganos espanhóis. Ela veste simbolicamente sete saias ou
vestidos longos. Uma tradição judia enfatiza o papel destas duas
madonas ao relacioná-las à doutrina cabalista da escola de
Isaac, o cego, nascido em Beaucaire, no Rhône, que possivelmente
contribuiu para este culto: Sara, na Cabala, significa
‘residência no exílio’ e leva o nome de “viúva caída”.
Vê-se facilmente que houve sincretismo das duas Saras: a Kâli
(dos ciganos) e Sara (talvez filha de Maria Madalena). O
interesse no fenômeno era de ambas as partes: aos ciganos
interessavam ser aceitos pelos não ciganos; e estes, através da
Igreja Católica, conquistavam mais prosélitos. No Brasil, o
ecumenismo religioso é um fato digno de elogio, portanto,
perfeitamente aceitável. Apenas para adicionar mais exemplos,
anexamos estes obtidos na internet:
OXALÁ ALUFAN = Senhor do Universo (Deus)
OXALÁ GUIAN = Jesus Cristo
OXUN = Nª
Srª
da CONCEIÇÃO
OXUN Cobra Coral = Nª
Srª
de NAZARÉ
XANGÔ = São Jerônimo
NÃNÃ = Santa ANA
OMOLU = SÃO LÁZARO
OXOSSI = São Sebastião
IBEIJI = São Cosme e São Damião
EXU = Santo Antônio da Penha
Vale dizer que muitos católicos, no Brasil, acreditam em
reencarnação, karma, conversas com espíritos dos mortos, e
outras coisas pertinentes ao espiritismo. Qual católico ainda
não foi ao Centro espírita ou ao Terreiro de Umbanda? Quem de
nós ainda não leu a sorte ou mandou bater cartas? Quem não fez
simpatia ou pediu benzedura?
O culto da Deusa-Mãe
(ver nota dois, p. 3, deste trabalho)
sobreviveu até a época dos romanos. As deusas locais eram
facilmente assimiladas à adoração da Deusa-Mãe - Cybele, na Ásia
Menor; Ísis, primeiro no Egito, depois em Roma; Gaia, na Grécia
- por serem essencialmente a mesma divindade, a “Deusa dos
muitos nomes”. Porém, o conflito entre os Deuses guerreiros
patriarcais e a Deusa foi se intensificando. O triunfo dos
tempos modernos tornou-se o triunfo do cristianismo e de um Deus
Pai supremo. No final do Império Romano do Ocidente, os cultos à
Mãe haviam se tornado dispersos, suprimidos, assimilados,
distorcidos: deixara de haver a sensação profunda de confiança e
de a ela pertencer que outrora haviam existido. (Retirado da
internet).
Sara-la-Kâli, na arqueologia mítica cigana, corresponde a
Astartéia, a deusa-mãe, e no cristianismo se confunde com Santa
Sara, a de Saintes-Maries-de-la-Mer em Camargue, França, onde se
realiza todos os anos, em 24 de maio,
a slava
(festa), da padroeira dos ciganos. E tem mais, Sara seria filha
de Maria Madalena com Jesus. Isto foi o tema de outro trabalho
meu que tem o título Santa Sara.
A filha de Santa Maria Madalena: S A N T A S A R A
Vamos voltar há dois mil anos... ou mais, muito mais... Se
quiserem podemos retroagir 5000 anos e chegaremos aos ciganos
que ajudaram a construir as pirâmides do Egito. Porém, fiquemos
nos tempos do Cristo.
Estava Jesus em pleno ministério sempre acompanhado por Maria
Madalena, aquela que seria a discípula bem-amada. É daquela
época que extraímos a mais bela lenda do povo cigano. Mas, antes
falaremos de religiosidade
dos ciganos, de maneira geral, que é incontestável. Os
ciganos creem em Deus (Devel)
e na entidade do mal (Beng).
Fazem grandes peregrinações em 24/25 de maio a
Saintes-maries-de-la-mer (França), em honra a santa Sara. No
Brasil, além de Santa Sara, são devotos de N. Sra. Aparecida,
são Jorge e outros santos, isto se forem católicos. Ressaltamos
que os ciganos adotam a religião do país que os acolhe. No
Brasil temos ciganos católicos, evangélicos, testemunhas de
Jeová, protestantes, espíritas, adventistas, umbandistas e
outras religiões/seitas. No mundo, encontramos ciganos na
religião católica ortodoxa, muçulmanos, budistas, hindus etc. E
são sinceros na crença que adotam.
São muitas as lendas que dizem ter Maria Madalena viajado à
França (ou Gália na época) depois da crucificação de Jesus,
acompanhada por um variado grupo de pessoas que inclui uma jovem
serva negra chamada Sara, Maria Salomé e Maria Jacobina —
supostamente tias de Jesus — além de José de Arimateia, o rico
proprietário do sepulcro onde Jesus foi colocado, antes da
ressurreição, e São Maximino, um dos setenta e dois discípulos
mais próximos de Jesus e primeiro bispo de Provença. Embora os
detalhes da narrativa variem de versão para versão, parece que
Madalena e seu séquito foram obrigados a fugir da Palestina em
condições mais que precárias [...] Reza a lenda que eles
desembarcaram (sem dúvida, muito agradecidos, depois de vagarem
por águas salgadas durante semanas) no que hoje é a cidade de
Saintes-maries-de-la-mer, nas terras úmidas da Camargue, onde o
Ródano deságua no Mediterrâneo. As três Marias — Maria Madalena,
Maria Jacobina e Maria Salomé — são objeto de grande veneração
na igreja que se ergue dos charcos circundantes como uma
imponente vela de navio, ao passo que na cripta há um altar
dedicado a Sara, a egípcia, a pequena serva negra de Maria
Madalena, hoje a venerada santa padroeira dos ciganos, que
afluem à cidade no feriado de 24/25 de maio, quando milhares de
fiéis devotados conduzem a estátua de Sara até o mar, para sua
imersão cerimonial. O fato de a tradição medieval considerar os
ciganos originários do Egito —
egypsies — confere sentido à sua veneração pela menina egípcia
Sara...
As
lendas
têm muitas versões, por isso são lendas, ficamos com uma
adaptação que seria a seguinte: Maria Madalena era o cálice
sagrado (Santo Graal), porque trazia em seu ventre o sangue
real, a semente de Jesus. Ela teria passado alguns anos em
Alexandria, no Egito e Sara seria sua filha e de Jesus
(portanto, Sara não era serva das Marias), constituindo-se na
linhagem sagrada. Maria Madalena, por motivo desconhecido
(perseguição talvez) fugiu para a Gália com Sara e José de
Arimateia. Lá foram acolhidos pelos ciganos. Sara é venerada
pelos ciganos, até porque Madalena, sua mãe, também é conhecida
por Madalena Egipcíaca. Isto faz sentido; os ciganos seriam os
verdadeiros guardiões da linhagem sagrada através de veneração à
santa Sara: a santa das santas. Curioso é o fato de que a igreja
não relaciona santa Sara em sua hagiografia. Por quê? Que nos
respondam os que sabem!
Encontramos em
um livro, às vezes muito elogiado, outras vezes criticado sem
piedade, texto que nos conta algo que até agora desconhecíamos
sobre o Mestre Jesus. Está no livro
O código da
Vinci,
de Dan Brown, editora Sextante, 2004. extraímos este diálogo
entre os três personagens principais do livro: Langdon, Teabing
e Shofie:
O
importante aqui — disse Langdon, voltando à estante — é que
todos estes livros apóiam a mesma premissa histórica.
— Que Jesus foi pai —
Sophie ainda estava insegura.
É — disse Teabing. — E que Maria Madalena foi o ventre que
transmitiu sua linhagem sagrada. O Priorado de Sião, até hoje,
ainda venera Maria Madalena como a Deusa, o Santo Graal, a Rosa
e a Divina Mãe.
Sophie voltou a visualizar
rapidamente o ritual do porão.
De acordo com o Priorado —
continuou Teabing — , Maria Madalena estava grávida quando Jesus
foi crucificado. Para segurança do filho ainda não nascido de
Cristo, ela não teve escolha senão fugir da Terra Santa. Com
ajuda do tio em que Jesus tinha grande confiança, José de
Arimateia, Maria Madalena secretamente viajou para a França, que
na época era conhecida como Gália. Ali encontrou refúgio seguro
na comunidade judaica. Foi na França que deu à luz uma filha. O
nome dela era Sara....
Notamos pois muitas semelhanças entre as lendas, ora Sara nasceu
no Egito, ora na França, ora foi acompanhante das Marias. Então
não vamos discutir mais: Sara existiu e foi o fruto da união de
Jesus e Madalena.
Os ciganos, não só são muito religiosos, como também são a fonte
de inspiração para os poetas, e eles têm Deus no coração e só
eles podem expressar tanta religiosidade.
Há uma versão creditada a Jean-Paul Clébert, em seu livro
The gypsies, p. 141,
que aborda a existência de outra Sara:
Sara the Kâli. E diz assim: A Sara dos ciganos por outro lado, vivia
às margens do Ródano com sua tribo e saudou as três Marias
quando elas desembarcaram. Nosso povo recebeu a primeira
Revelação de Sara a Kâli. Ela era de nobre nascimento e chefe da
tribo às margens do Ródano. Ela sabia dos segredos que a ela
tinham sido transmitidos. Perto do Ródano as tribos trabalhavam
metais e comerciavam. O Cigano naquele tempo praticava religião
politeísta e uma vez ao ano eles levavam em seus ombros a
estátua de Astarté [divindade sideral feminina] em procissão ao
mar onde recebiam suas benções. Um dia, Sara vira a chegada do
bote com as Marias. O mar estava revolto e o bote ameaça
afundar. Sara jogou seu vestido nas ondas, e usando-o como uma
jangada, foi às santas e ajudou-as a ir à terra. As santas
batizaram Sara e elevaram suas preces pedindo pelos
gadjês e pelos
rom.
A veneração dos ciganos por Sara é extremamente interessante,
especialmente porque é uma das poucas atividades deles, nas
quais o não-cigano pode facilmente estar presente. Depois de
1912, somente os ciganos tinham o direito de penetrar na cripta.
Eles passavam a noite lá, e faziam vigília, para não falhar com
o mistério, particularmente aos olhos do santo padre que no ano
estava presente. É sabido que a cripta, usualmente inundada com
água de nascente, dá guarida a três elementos: à esquerda de
quem entra, há o altar, (um altar pagão); no centro, há o altar
cristão (do séc. III); e à direita há a estátua (ícone) de Santa
Sara. É muito antiga. A estátua atual foi obviamente pintada de
preto. Se limpidez aparece em sua face é porque é continuamente
tocada e retocada.
Durante a vigília, os ciganos não mais praticam ritos especiais.
Eles se satisfazem em manter observação, usualmente descalços e
cabeça descoberta. Alguns deles cochilam ou dormem ao longo das
paredes. Aqueles que chegam, devotos de Sara, fazem o ritual em
dois atos: o toque e ornando-a com flores, pondo-lhe rendas,
véus, jóias talismãs; pendurando roupas ou trajes (capas,
mantos, lenços etc.). As mulheres particularmente,
respeitosamente tocam a estátua e beijam as franjas dos seus
vestidos. Então dependuram ao lado dela, roupas que trouxeram
desde mantilhas de seda, corpetes, bustiê etc. Algumas vezes,
somente pedaços de pano. Finalmente, eles tocam a santa com uma
miscelânea de objetos representando os ausentes ou doentes
(fotos, medalhas... ou ainda itens de roupas). E acendem velas,
círios, produzindo intensa luz e calor.
A segunda parte da peregrinação cigana consiste na procissão ao
mar e simbólica imersão, comum a todos os cultos da grande deusa
da fecundidade. A magia da imersão induz a chuva. Claramente,
obter chuva é menos importante para os nômades do que para os
sedentários e casados. É evidente que a simbólica imersão de
Saintes-maries-de-la-mer não mais pretende fazer chover. O
ritual da fecundidade tornou-se uma bênção do mar por uma sutil
adaptação da igreja. Os ciganos seguem esta transformação. Mas
nesta evolução, eles conservaram o arquétipo da deusa-mãe e da
virgem negra.
Do mundo inteiro vêm turistas e ciganos à
cripta de Sara. A festa, como toda festa de origem católica, é
religiosa e profana. Há procissões, há orações e muita música,
pelotiqueiros, buena-dicha, comidas típicas, danças, na parte
profana propriamente dita. Mas vamos ver um pouco de história
que é essencial para a famosa peregrinação a
Saintes-Maries-de-la Mer. Dias 24 e 25 de maio, todos os anos os
ciganos tornaram-se costumeiros na peregrinação católica.
Realmente, há uma igreja erigida em comemoração à chegada das
três marias, depois de o rei René[1-2]
ter ordenado uma investigação sobre o assunto. Velhíssima
tradição registra o tal desembarque das três marias, mas não há
certeza em qual lugar desceram a terra: o lugar já mencionado,
com o qual estamos lidando, foi sucessivamente chamado
Nossa Senhora de Ratis,
de três marias, e
Sainte-Marie-de-la-Barque;
ratis poderia significar ‘ilha de madeira’. A escavação
ordenada pelo rei René foi bem sucedida, debaixo do coro da
igreja primitiva (a data em que ela foi construída é
desconhecida) foram encontradas as supostas relíquias das
santas. E a peregrinação tem sido registrada desde o século XV e
cada vez mais florescente. A aparição de Sara se deu um pouco
mais tarde e no texto
Autor do fim da vida de M. Olier encontra-se esta frase: ‘Em
uma arca de bronze foram depois encontradas... ossadas humanas
que se acreditou ser de Sara, acompanhante das sagradas marias.’
Em 1521, Vicente Phillipon, em sua piedosa novela
A lenda das santas Marias
Jacobé e Salomé, registra a presença de Sara, minimizando
seu papel dizendo ser apenas a serva. Ela viajara através de
Camargue pedindo donativos. Dia 24 de maio foi escolhido para
honrar as santas, e ciganos (presentes em Arles desde 1438)
juntaram-se aos peregrinos. Mas de início não a reconheceram
como Sara-a Kâli. Isto só se deu em 1496. A ideia de serva das
Marias foi uma ideia ecumênica. O nome dado pelos ciganos a Sara
— A Kâli — significa
na linguagem dos rom
ora ‘mulher negra’, ora mulher cigana. Sara, na igreja pode ser
a mulher de Abraão que traz em si a ideia da mãe-deusa, bem como
pode ser Sari do
Cáucaso, o mesmo povo que deu o nome bíblico de Sara.
Se Santa Sara veio no barco com as três Marias, se estava na
praia esperando por elas e as salvando, se era serva de
Madalena, ou segundo outros, era sua filha e de Jesus. Também se
Sara relembra a mulher de Abrão ou uma egipcíaca; tudo isto,
esta confusão de lendas, só atrai mais e mais fiéis e
admiradores e à festa em Saintes-Maries-de-la-mer, que só cresce
ano a ano. Ciganos de toda Europa (e do Brasil) vão anualmente à
Camargue, França, à igreja das santas mencionadas, para celebrar
a festa de sua rainha. A cripta e a santa, no dia da festa, são
clarificadas por milhares de velas, acendidas pelos nômades, e
postas por eles ou por eles carregadas. O calor é intenso e a
alegria também. A música é maravilhosa. A procissão em direção
ao mar é festiva e religiosa. Eles chamam a cripta de o ventre
da mãe Sara, e a chamam de
Kâli-Sara, em
analogia à deusa-mãe da sua terra natal, a Índia. Sara, é
conhecida como a mãe sábia, que guarda conhecimentos secretos.
As mulheres ciganas têm especial encantamento por Sara e parecem
receber retribuição por isto, muitas bênçãos são atestadas. Sara
está coroada e vestida com todos os atavios que os ciganos e
ciganas lhes oferecem, e são tantos, que são constantemente
trocados: jóias, lenços, mantos, véus e muito mais. Os devotos
acariciam sua face, beijam a fímbria dos seus vestidos e colocam
flores em sua volta. Cartas postas a sua volta atestam os
milagres recebidos, muletas de criança encontram-se ao lado da
rocha.
Quando o culto a Santa Sara veio para o Brasil? Matéria
controversa. Quem trouxe? É mais controverso ainda...
Entretanto, podemos afirmar, sem medo de errar, que é da década
de 60. Mirian Stanescon (princesa dos ciganos) conseguiu, após
negociação pertinaz, com a Prefeitura do Rio de Janeiro, a
concessão de uma gruta, no Arpoador, Rio de Janeiro, onde pôde
entronizar ou fazer assentamento, para culto reverencial (de
ciganos e gadjês), sendo que a imagem de Santa Sara, por
tradição, deve ficar com a face virada para o mar ou, no mínimo,
próximo a ele, e isto foi atendido.
Para saber mais (obras citadas por Clébert):
Franz de Ville. Tradition of the Belgian Gypsies.
Delage: Les Saintes-Maries-de-la-Mer, in special issue of Études
Tziganes.
The Roumanian peasants, to drive way a witch, shout: Manna Sara!
Mayani: Les Hyksos et le Peuple de la Bible, 1956.
Saillens: Nos Vierges noires, 1945.
More Legends of the Gypsies and the Holy Family, JGLS XXXVIII,
1-2.
FINIS
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