OS CIGANOS[1]


Poema de Puchkin[2]



Trad. de Léa e Jessé Cortines Peixoto
Notas de rodapé: Asséde Paiva
Revisão: Acir Reis

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Os ciganos, bando barulhento, vão errando pela Bessarábia.[3] Hoje, à margem do rio, eles fixam suas tendas esfarrapadas. Doce como a independência é sua noitada; dorme-se bem sob a noite estrelada! Entre as rodas das carroças, atrás dos trapos de tapetes, vê-se brilhar o fogo. A horda, em círculo, apronta seu jantar. No pasto os cavalos pastam livremente. Um urso, aprisionado, acomodou-se perto de uma tenda. Tudo é movimento no meio do deserto; devem partir à aurora e cada um faz alegremente seus preparativos. As mulheres cantam, as crianças gritam, os martelos fazem ressoar a bigorna no campo. Mas logo, sobre o bando vagabundo, se estende o silêncio do sono, e a calma da estepe não é mais agitada senão pelos latidos dos cães e o relincho dos cavalos. Tudo repousa, os fogos se apagam, a lua brilha sozinha ao longínquo dos céus, derramando sua luz sobre a horda adormecida.

 

Numa tenda solitária, um velho não dorme ainda. Sentado diante de algumas brasas e recolhendo delas o último calor, ele olha a planície onde se estende o nevoeiro da noite. Sua filha foi correr no campo deserto. Criança livre, ela não conhece senão seu capricho. Ela voltará... mas eis a noite e, logo, a lua vai desaparecer atrás das nuvens no horizonte.

 

Zenfira não volta e o humilde jantar do velho resfria com a espera.

 

Mas ei-la. Atrás dela, na estepe, um rapaz avança; é um desconhecido para o cigano.

 

- Pai, diz a moça, eu trago um hóspede. Desde o Kourgane[4], lá longe no deserto, eu o encontrei e o trouxe para o acampamento, para passar a noite. Ele quer tornar-se cigano como nós. A justiça o persegue, mas em mim ele encontrará boa companheira. Seu nome é Aleko; me seguirá por todos os lados.

 

O velho - Bem, fique até amanhã à sombra de nossa tenda; mais tempo, se você quiser. O abrigo, o pão, nós os partilharemos. Seja um dos nossos. Você se acostumará com nossos modos, com nossa vida errante, com a miséria, com a liberdade. Amanhã, no começo do dia, a mesma carroça levará nós três. Pegue um trabalho, escolha forjar o ferro ou cante canções, levando um urso de aldeia em aldeia.

 

Aleko  -  Eu fico.

 

Zenfira  -  Ele é meu, quem poderá me arrancá-lo? Mas é tarde. A lua desapareceu. A bruma cobre o campo e meus olhos se fecham contra a minha vontade.

 

*

 

É dia. O velho contorna a passos lentos uma tenda silenciosa: "Em pé Zenfira, o sol se levantou! Acorde meu hóspede, é tempo. Larguem, crianças, a capa da preguiça." Logo a horda se espalha com grande barulho. Dobram-se as tendas, as carroças estão prontas para partir. Tudo se agita ao mesmo tempo. Ei-los caminhando pelas planícies do deserto. Os burros abrem a marcha, levando nos cestos crianças que brincam. Atrás vêm os maridos, os irmãos, as mulheres, as moças. jovens e velhos. Quantos gritos! Que alarido! Aos refrãos dos ciganos se misturam os grunhidos do urso que morde impacientemente sua corrente. Que confusão de andrajos de cores vivas! Os cães uivam quando as gaitas de fole tocam, enquanto as rodas rangem sobre o cascalho. Balbúrdia, miséria, selvageria! Mas tudo isto é tão cheio de vida e movimento! Fora nossa moleza, inerte como a morte! Fora nossa indolente apatia, monótona como as canções de escravo!

O rapaz passeia um olhar desencorajado sobre a planície deserta. Ele não ousa confessar a si mesmo a causa de sua tristeza. Todavia, Zenfira, a bela de olhos negros, está a seu lado. Agora, ele é livre e o mundo acha-se diante dele. Sobre sua cabeça, um radioso sol brilha em seu esplendor de meio-dia. Por que o coração do rapaz estremece em seu peito? Que secreto desgosto o atormenta?

 

*

 

O passarinho do bom Deus não conhece nem preocupação, nem trabalho. Por que se fadigaria em trançar um ninho sólido e durável? À noite longa, um galho lhe é suficiente para dormir. Venha o sol em sua glória, o passarinho ouve a voz de Deus, sacode as penas e canta sua canção.

 

Após a primavera, esplendor da natureza, vem o verão com seus calores; depois chega o outono tardio, trazendo nevoeiros e friagem. Pobres humanos, tristes humanos! Para as longínquas regiões, de climas amenos, além do mar azul, o passarinho voa até à primavera.

 

Ele é como o descuidado passarinho, o nômade exilado. Para ele, nada de nada, de moradia fixa, nada de acomodação. Tudo nele é um caminho; por todo lado. Ele encontra um abrigo para sua noitada. A aurora o acorda, ele abandona sua jornada à vontade de Deus, e o trabalho da vida não perturbará a calma indolente do seu coração. Por vezes os encantos da glória cintilam a seus olhos como uma estrela distante; por vezes ele se recorda do luxo e dos prazeres. Frequentemente, o trovão estoura sobre sua cabeça isolada, mas sob a tempestade, como sob um céu sereno, ele dorme descuidado. Assim vive Aleko, esquecendo a malícia do cego destino. Antigamente, grande Deus! Quantas paixões se debateram nessa alma dócil! Como elas ferveram nesse coração atormentado! Elas o abandonaram já faz tempo... Para sempre? Elas acordarão um dia? Que ele espere!

 

*

 

Zenfira  -  Amigo, diga-me, tu não lamentas o que deixaste para sempre?

 

Aleko  -  O que deixei?

 

Zenfira  -  Tu sabes... família, cidades...

 

Aleko  -  Meus lamentos! Se tu soubesses, se tu pudesses imaginar a escravidão dessas cidades onde se sufoca! Lá, os homens encurralados, amontoados, nunca respiram o ar fresco da manhã, nem os perfumes dos prados primaveris. Eles têm vergonha de amar. O pensamento... eles afastam para longe. Eles fazem comércio de sua liberdade. Rastejam aos pés dos ídolos, eles procuram dinheiro e correntes. O que eu deixei? Traições, ou a desonra ao pináculo resplandecente.

 

Zenfira  -  Mas lá veem-se grandes palácios, tapetes de mil cores, jogos, festas alegres... e as roupas das mulheres, como são ricas!

 

Aleko  -  A alegria das cidades, vão barulho; nada de amor, nada de verdadeira alegria. As mulheres... Ah! tu vales mais do que elas, tu que não tens necessidade nem de seus ricos adereços, nem de seus colares!

 

Zenfira  - Tu não me enganas absolutamente, meu amigo... nunca!... Meu único desejo é dividir contigo amor, paz, exílio voluntário.

 

O velho  -  Tu nos amas, tu, bem que foste nascido entre os ricos; mas não habituarás facilmente com a liberdade que conheceste as delícias do luxo. Entre nós, conta-se esta estória: Um dia, neste país, veio um homem do sul, exilado por um rei. Antigamente eu soube o seu nome bizarro, mas eu o esqueci. Velho de idade, ele era jovem de coração, caloroso para o bem. Ele tinha o dom divino das canções, e sua voz era como o barulho das águas. Todos o amavam. Ele vivia às margens do Danúbio, não fazia mal a ninguém, encantava jovens e velhos com suas histórias. Ele não ouvia nada, tímido e fraco como uma criança. Era preciso que estranhos lhe trouxessem caça, e peixes em suas redes; e quando o rio, rápido, se cobria de gelo, quando sopravam ventos fortes, eles preparavam para o velho uma cama com lãs quentes.

 

Mas, ele nunca se acostumou com a vida de miséria. Ele era pálido, descarnado. A cólera de um deus, dizia ele, o perseguia por uma falta. Ele esperava sempre a libertação que não vinha.

 

Errante à margem do Danúbio, ele se lamentava sem cessar, e as lágrimas amargas corriam de seus olhos à lembrança de seu distante país. Enfim, morrendo, ele quis que levassem seus ossos para o sul, crendo que, mesmo após sua morte, eles não poderiam encontrar o repouso na terra do exílio.

 

Aleko -  Eis, portanto a sorte de teus filhos, ó Roma, ó soberana do mundo! Poeta dos amores, poeta dos deuses, diga-me o que é a gloria? Um eco saindo de um túmulo, um grito de admiração, um rumor que repercute de idade em idade, ou está sob o abrigo de uma cabana enfumaçada, na estória de um cigano selvagem?!

 

*

 

Dois anos se passam e os ciganos sempre alegres e vagabundos; por todos os lados, como outrora eles encontram paz e hospitalidade. Aleko sacudiu as cadeias da civilização: livre como seus hóspedes, sem cuidado, sem lamentos, ele toma parte em seu acampamento. Ele não mudou, seus amigos são os mesmos. Esquecendo seus dias do passado, ele adquiriu os costumes dos ciganos. Como eles, se sente feliz sob o abrigo de uma tenda; saboreia os enlevos de sua eterna preguiça, ama até sua linguagem pobre e sonora. Desertor de sua jaula de madeira, o urso se tornou o hóspede peludo de sua tenda. Nas aldeias, na estrada que atravessa a estepe e leva à capital da Moldávia, o urso dança pesadamente no meio da multidão circunspeta. Ele grunhe e morde impacientemente sua corrente. Apoiado sobre seu bastão de viagem, o velho marca displicentemente o compasso em seu tamborim.

 

Aleko conduz o animal cantando canções. Zenfira passa diante dos aldeões e recolhe suas oferendas voluntárias. Vem à noite: todos os três fazem ferver os grãos que não cultivaram. O velho dorme, o fogo se apaga; tudo repousa, tudo está tranquilo sob sua tenda. 

 

*

 

Com os raios de sol da primavera, o velho aquece seu sangue já grosso; diante de um berço, sua filha canta uma canção de amor. Aleko escuta e empalidece.

 

Zenfira - Homem ciumento, ciumento mau, corta-me, queima-me, eu sou firme, não tenho medo nem da faca, nem do fogo. Te odeio, te desprezo, eu amo outro e morro amando.

 

Aleko - Pare. Este canto me fadiga. Eu não gosto destas canções selvagens.

 

Zenfira - Não lhe agrada? Que me importa! Eu canto a canção para mim mesma.

 

Ela canta:

 

"Corta-me, queima-me, eu não direi nada, homem ciumento, ciumento mau, tu não saberás o nome dele."

 

"Ele é mais vigoroso que a primavera, mais ardente que um dia de verão; como é jovem e valente! Como ele me ama!"

 

"Como o tenho acariciado quando tu dormes à noite! Como rimos, os dois, dos teus cabelos brancos!"

 

Aleko  -  Cala-te, Zenfira! Já te escutei demais.

 

Zenfira  -  Ah! tu pegas a canção por ti?

 

Aleko  -  Zenfira!

 

Zenfira  - Zanga-te se queres... Sim, eu canto a canção por ti.

 

(Ela sai cantando o refrão.)

 

O velho  - Sim, eu me lembro. É do meu tempo que se fez esta canção; nos divertia, fazia as pessoas rirem. Quando nos acampamos na estepe de Kagoul, numa noite de inverno, minha pobre Maryoula a cantava, ninando sua filha perto do fogo. No meu espírito, os anos que não voltam mais, hora a hora, tornam-se sempre mais confusos. Esta canção entrou na minha memória e não mais saiu.

 

*

 

Tudo está silencioso. É noite. A lua resplandece ao sul, num céu azulado. Zenfira acorda o velho.

 

Zenfira  - Pai! Aleko está medonho. Escuta. No sono de chumbo ele geme e soluça.

 

O velho  -  Não toques nele. Não faças barulho. Tu sabes o que dizem os russos? Na hora da meia-noite, o espírito familiar fecha a garganta dos que dormem. Antes da aurora ele foge. Fica comigo.

 

Zenfira  -  Pai, ele fala, ele chama Zenfira.

 

O velho  -  Ele te procura, mesmo em sonho. Tu és, para ele, mais cara do que a vida.

 

Zenfira  -  Seu amor me cansa. Ele me aborrece. Meu coração requer sua liberdade e, além disto... mas, psiu, escuta, ele pronuncia um outro nome.

 

O velho  -  Que nome?

 

Zenfira  - Escute que estertor doloroso! Ele trinca os dentes... ele dá medo. Eu vou acordá-lo.

 

O velho  -  Tu tentarás em vão. Não perturbes o espírito da noite. Ele irá embora por si mesmo.

 

Zenfira -  Ele se agita, se levanta, me chama, ei-lo acordado. Eu vou para ele, adeus. Dorme.

 

Aleko  -  Onde tu estavas?

 

Zenfira  -  Estava velando perto de meu pai. Agora mesmo um espírito te atormentava. Em sonho tua alma sofria torturas. Tu me espantaste. Tu estertoravas, trincavas os dentes, depois me chamaste.

 

Aleko  -  Sonhava contigo. Me parecia que entre nós... eu tive um sonho horrível.

 

Zenfira  -  Mentiras destes sonhos. Não acredites.

 

Aleko: - Ah! não acredito em nada, nem em sonhos, nem em doces juramentos, nem mesmo em teu coração.

 

*

 

O velho –– Por que, jovem insensato, suspiras sempre? Aqui os homens são livres, o céu é sereno e as mulheres se gabam de sua beleza. Não chores. O desgosto te matará.

 

Aleko  -  Pai! Ela não me ama mais!

 

O velho  -  Consola-te, amigo. És uma criança. Tua melancolia não tem razão. Amar, para ti, é amargura e dor. Amor é um jogo para coração de mulher. Olhe: sob esta abóbada, lá no alto, a lua perambula em liberdade. A toda natureza alternativamente ela derrama a luz. Ela entrevê uma nuvem de repente, ela a clareia, resplandece, mas eis que ela passa para outra, onde não permanecerá muito tempo. Quem lhe indicaria um lugar no céu? Quem lhe diria: fique aí? Quem pode dizer ao coração de uma moça: consola-te!

 

Aleko  -  Como ela me amava antigamente! Como ela se comprimia, ternamente sobre mim, nas paradas no meio da estepe! Como as horas da noite passavam alegres e rápidas! Alegre como uma criança, por uma palavra balbuciada à orelha, de um beijo embriagador, ela espantava minha melancolia. Zenfira, infiel!... Não mais me ama!

 

O velho  -  Escuta: eu te contarei uma história de mim mesmo. Há muito tempo, quando o moscovita não assustava ainda o Danúbio ¾ vês, eu recordo velhos aborrecimentos ¾então nós tremíamos ao ouvir o nome do sultão; um paxá comandava Boudjak,[5] do alto das torres d'Akerman. Eu era jovem, meu coração fervia em sua alegria e sobre minha cabeça, nas minhas tranças, espessas, não se podia encontrar nenhum cabelo branco. Entre nossas belas jovens havia uma... e durante muito tempo ela foi o sol para mim. Enfim, tornou-se minha.

 

Ah! minha juventude passou rápida como uma estrela cadente, mas para ti, o tempo de amor se esgotou ainda mais veloz[6].

 

Maryoula me amou um ano.

 

Uma vez, perto das águas do Kagoul, nós encontramos uma horda estrangeira. Eram ciganos da Boêmia. Eles fincaram suas tendas perto de nós, no pé da montanha. Duas noites nos acampamos juntos. Eles partiram na terceira noite: Maryoula partiu com eles... Eu dormia tranquilo. Veio o dia, acordei. Ela não estava mais lá. Procurei, chamei: suas pegadas mesmo haviam desaparecido. A pequena Zenfira chorava; eu chorava também...

 

Depois deste dia, todas as moças do mundo não foram nada para mim. Nunca, entre elas, meu olhar procurou uma companheira e meus prazeres solitários, eu não os dividia com ninguém.

 

Aleko  - Mas por que não correste logo seguindo as pegadas da infame? Como tu não enfiaste teu punhal no peito do raptor e da tua falsa companheira?

 

O velho  -  Por que? A juventude não é tão voluntária como o pássaro? Que força pararia o amor? O prazer se dá a cada um, de cada vez. O que foi não será mais.

 

Aleko  -  Isto não é de meu temperamento. Não renuncio aos meus direitos sem disputa ou, ao menos, saboreio os prazeres da vingança. Não! Eu a encontraria, à beira do mar, meu inimigo adormecido perto de um abismo sem fundo, que eu seja maldito se meu pé não o empurrasse no abismo! Ele estaria à minha mercê, sem defesa, eu o precipitaria nas águas, atacaria com furor o seu despertar, gozaria sua agonia e, muito tempo, o barulho de sua queda soaria em minha orelha e me seria uma lembrança de alegria e de zombaria.

 

*

 

Um jovem cigano  - Ainda um só, um só beijo!

 

Zenfira - Adeus! Meu marido é ciumento e mau.

 

O jovem cigano - Um só, mais longo, para adeus...

 

Zenfira - Adeus! Tenho medo de que ele venha...

 

O jovem cigano - Diga, quando nos tornaremos a ver?

 

Zenfira - Esta noite, quando a lua se puser, lá em baixo, no Kourgane, perto do túmulo.

 

O cigano - Mentirosa! Você não virá.

 

Zenfira - Corra amigo. Ei-lo! Eu irei.

 

Aleko dorme; uma inquieta visão o importuna. Ele acorda gritando. O ciumento estende a mão, mas sua mão assustada não pega senão uma coberta fria. Sua companheira não está mais perto dele. Tremendo, ele se levanta. Tudo está tranquilo. Ele treme, sente frio, queima. Sai de sua tenda e, pálido, dá voltas nas carroças. Nenhum barulho; o campo está mudo. Reina a obscuridade, a lua mergulhou no nevoeiro. À trêmula luz das estrelas sobre o orvalho, ele advinha passos. Eles se dirigem à Kourgane. Ele se precipita sobre estes traços funestos. Eis o túmulo branco que surge à margem do caminho. Um pressentimento sinistro o agita, caminha cambaleando. Seus lábios tremem, seus joelhos dobram; ele avança e... É um sonho? Duas sombras estão lá, perto dele e ele ouve o murmúrio de vozes que falam sobre o túmulo profanado.

 

Primeira voz - É tempo.

 

Segunda voz - Fica ainda...

 

Primeira voz - É preciso, amigo, separarmo-nos.

 

Segunda voz - Não, não, fiquemos até chegar o dia.

 

Primeira voz - A hora nos apressa.

 

Segunda voz - Que tímida amorosa! Um instante!

 

Primeira voz - Tu me perdes!

 

Segunda voz - Um momento.

 

Primeira voz  - Se meu marido acorda sem mim!...

 

Aleko  -  Ele acordou. Aonde vão? Fiquem os dois. Estão bem aí; sim, aí, sobre este túmulo!

 

Zenfira - Amigo, salva-te, fuja!

 

Aleko - Pare! Aonde vai belo galanteador? Toma! (ele o atinge com sua faca).

 

Zenfir - Aleko!

 

O cigano - Estou morto!

 

Zenfira - Aleko! Não o mate. Mas tu estás coberto de sangue!? Que fizeste?

 

Aleko - Nada. No momento respira teu amor.

 

Zenfira - Bem, não tenho medo de ti! Desprezo tuas ameaças. Assassino, eu te amaldiçoo!

 

Aleko (apunhalando-a) - Morra também!

 

Zenfira  -  Morro amando ele.

 

O horizonte se aclara com os primeiros raios de sol sobre a terra. Aleko, todo ensanguentado, ainda com a faca na mão, está sentado sobre a pedra do túmulo. A seus pés jazem dois cadáveres. A fisionomia do matador é medonha. Um grupo espantado de ciganos o rodeia. Sobre o Kourgane, a seus pés, eles cavam uma fossa. As mulheres, uma após a outra, avançam e beijam os olhos dos mortos. O velho, o pai, está sentado olhando a vítima imóvel, silencioso. Levantam os cadáveres, e o jovem casal é depositado no frio seio da terra. Aleko os contempla à distância e, quando o último punhado de terra é jogado na fossa, sem dizer nada, ele desliza da pedra e cai sobre a campa.

 

Então, o velho:

 

"Longe de nós, homem orgulhoso! Nós somos selvagens que não têm leis. Entre nós, nada de carrascos, nada de suplícios; nós não pedimos aos culpados nem seu sangue, nem suas lágrimas. Mas nós não vivemos com um assassino. Tu és livre; vive só[7]. Tua voz nos fará medo. Nós somos pessoas tímidas e doces; tu és cruel e audacioso, separarmo-nos. Adeus. Que a paz seja contigo!"

 

Ele falou; com grande barulho, toda horda se levanta e se apressa em deixar seu acampamento sinistro. Logo tudo desaparece ao longe da estepe. Somente uma carroça coberta por um tapete esfarrapado, permanece atrás na planície[8].

 

Assim, aproximando o inverno, diante dos primeiros nevoeiros, vê-se voar, com grandes gritos, em direção ao sul, um bando de grous retardatários. Atingido por um chumbo funesto, um[9] só permanece arrastando sua asa ferida sobre a terra.

 

Vem à noite. Diante da carroça abandonada, nenhum fogo brilha esta noite; sob a coberta da carroça, ninguém dorme até a aurora.

 

EPÍLOGO

 

Assim, pelo poder dos versos, na minha memória obscurecida, revivem as visões dos dias passados entre júbilo ou desgosto. Nestes lugares, há muito tempo, muito tempo, ecoa a medonha voz da guerra. Lá, a Rússia marcou uma província em Istambul. Lá, nossa velha águia, com dupla cabeça, ouve redizer ainda suas glórias passadas. E lá, no meio da estepe, sobre trincheiras em ruínas, eu reencontrei as carroças dos ciganos, esses pacíficos filhos da liberdade.

 

Mas a felicidade não se encontra mesmo entre vós, pobres filhos da natureza; e sob vossas tendas esburacadas, há sonhos que são suplícios. Nômades, o mesmo deserto tem abrigo contra a dor ou o crime. Por todos os lados, as paixões; por todo lado, o destino inexorável.

 

Rio, 28/10/02

 

[1] O título dado por Puchkin é Cygan, traduzido por tsiganos (ciganos). São também chamados bohémiem, atzingano, faraó-nepek, (filho do faraó), gitano, gypsy, manouche, sinti, romani, calom, zíngaro, zigeuner, zincali etc.
[2] Aleksandr Sergueievitch Puchkin (1799-1837). Escreveu Tsiganes em 1827.
[3] Região da Rússia, ao leste da Europa. Pertenceu sucessivamente do séc. XV ao XX à Moldávia, Império Otomano, Rússia, Romênia, União Soviética e Ucrânia.
[4] Montanha.
[5] O mesmo que Bessarábia.
[6] O amor de Aleko e Zenfira, na verdade, durou dois anos. Talvez o autor quisesse dizer que eles estavam juntos, mas não havia mais amor.
[7] Entre ciganos, que vivem em grupo, o exílio é o pior castigo. Cigano morre de solidão quando é expulso da horda. Aleko não era cigano, logo a pena não seria problema, porém, ele sofreu, e como, pelo amor perdido.
[8] Os ciganos abandonam todos os bens dos mortos. Em geral põem fogo para que seus espíritos não voltem como mulô (fantasma).
[9] Alma de Aleko está no grou. No folclore boêmio, os gansos é que são almas reencarnadas de ciganos. 

 
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