Os ciganos, bando barulhento, vão errando pela
Bessarábia.[3] Hoje, à margem do rio, eles fixam suas tendas
esfarrapadas. Doce como a independência é sua noitada; dorme-se
bem sob a noite estrelada! Entre as rodas das carroças, atrás
dos trapos de tapetes, vê-se brilhar o fogo. A horda, em
círculo, apronta seu jantar. No pasto os cavalos pastam
livremente. Um urso, aprisionado, acomodou-se perto de uma
tenda. Tudo é movimento no meio do deserto; devem partir à
aurora e cada um faz alegremente seus preparativos. As mulheres
cantam, as crianças gritam, os martelos fazem ressoar a bigorna
no campo. Mas logo, sobre o bando vagabundo, se estende o
silêncio do sono, e a calma da estepe não é mais agitada senão
pelos latidos dos cães e o relincho dos cavalos. Tudo repousa,
os fogos se apagam, a lua brilha sozinha ao longínquo dos céus,
derramando sua luz sobre a horda adormecida.
Numa tenda solitária, um velho não dorme ainda. Sentado diante
de algumas brasas e recolhendo delas o último calor, ele olha a
planície onde se estende o nevoeiro da noite. Sua filha foi
correr no campo deserto. Criança livre, ela não conhece senão
seu capricho. Ela voltará... mas eis a noite e, logo, a lua vai
desaparecer atrás das nuvens no horizonte.
Zenfira não volta e o humilde jantar do velho resfria com a
espera.
Mas ei-la. Atrás dela, na estepe, um rapaz avança; é um
desconhecido para o cigano.
- Pai, diz a moça, eu trago um hóspede. Desde o Kourgane[4], lá longe no deserto,
eu o encontrei e o trouxe para o acampamento, para passar a
noite. Ele quer tornar-se cigano como nós. A justiça o persegue,
mas em mim ele encontrará boa companheira. Seu nome é Aleko; me
seguirá por todos os lados.
O velho -
Bem, fique até amanhã à sombra de nossa tenda; mais tempo, se
você quiser. O abrigo, o pão, nós os partilharemos. Seja um dos
nossos. Você se acostumará com nossos modos, com nossa vida
errante, com a miséria, com a liberdade. Amanhã, no começo do
dia, a mesma carroça levará nós três. Pegue um trabalho, escolha
forjar o ferro ou cante canções, levando um urso de aldeia em
aldeia.
Aleko - Eu fico.
Zenfira -
Ele é meu, quem poderá me arrancá-lo? Mas é tarde. A lua
desapareceu. A bruma cobre o campo e meus olhos se fecham contra
a minha vontade.
*
É dia. O velho contorna a passos lentos uma tenda silenciosa:
"Em pé Zenfira, o sol se levantou! Acorde meu hóspede, é tempo.
Larguem, crianças, a capa da preguiça." Logo a horda se espalha
com grande barulho. Dobram-se as tendas, as carroças estão
prontas para partir. Tudo se agita ao mesmo tempo. Ei-los
caminhando pelas planícies do deserto. Os burros abrem a marcha,
levando nos cestos crianças que brincam. Atrás vêm os maridos,
os irmãos, as mulheres, as moças. jovens e velhos. Quantos
gritos! Que alarido! Aos refrãos dos ciganos se misturam os
grunhidos do urso que morde impacientemente sua corrente. Que
confusão de andrajos de cores vivas! Os cães uivam quando as
gaitas de fole tocam, enquanto as rodas rangem sobre o cascalho.
Balbúrdia, miséria, selvageria! Mas tudo isto é tão cheio de
vida e movimento! Fora nossa moleza, inerte como a morte! Fora
nossa indolente apatia, monótona como as canções de escravo!
O rapaz passeia um olhar desencorajado sobre a planície deserta.
Ele não ousa confessar a si mesmo a causa de sua tristeza.
Todavia, Zenfira, a bela de olhos negros, está a seu lado.
Agora, ele é livre e o mundo acha-se diante dele. Sobre sua
cabeça, um radioso sol brilha em seu esplendor de meio-dia. Por
que o coração do rapaz estremece em seu peito? Que secreto
desgosto o atormenta?
*
O passarinho do bom Deus não conhece nem preocupação, nem
trabalho. Por que se fadigaria em trançar um ninho sólido e
durável? À noite longa, um galho lhe é suficiente para dormir.
Venha o sol em sua glória, o passarinho ouve a voz de Deus,
sacode as penas e canta sua canção.
Após a primavera, esplendor da natureza, vem o verão com seus
calores; depois chega o outono tardio, trazendo nevoeiros e
friagem. Pobres humanos, tristes humanos! Para as longínquas
regiões, de climas amenos, além do mar azul, o passarinho voa
até à primavera.
Ele é como o descuidado passarinho, o nômade exilado. Para ele,
nada de nada, de moradia fixa, nada de acomodação. Tudo nele é
um caminho; por todo lado. Ele encontra um abrigo para sua
noitada. A aurora o acorda, ele abandona sua jornada à vontade
de Deus, e o trabalho da vida não perturbará a calma indolente
do seu coração. Por vezes os encantos da glória cintilam a seus
olhos como uma estrela distante; por vezes ele se recorda do
luxo e dos prazeres. Frequentemente, o trovão estoura sobre sua
cabeça isolada, mas sob a tempestade, como sob um céu sereno,
ele dorme descuidado. Assim vive Aleko, esquecendo a malícia do
cego destino. Antigamente, grande Deus! Quantas paixões se
debateram nessa alma dócil! Como elas ferveram nesse coração
atormentado! Elas o abandonaram já faz tempo... Para sempre?
Elas acordarão um dia? Que ele espere!
*
Zenfira -
Amigo, diga-me, tu não lamentas o que deixaste para sempre?
Aleko - O que deixei?
Zenfira -
Tu sabes... família, cidades...
Aleko - Meus
lamentos! Se tu soubesses, se tu pudesses imaginar a escravidão
dessas cidades onde se sufoca! Lá, os homens encurralados,
amontoados, nunca respiram o ar fresco da manhã, nem os perfumes
dos prados primaveris. Eles têm vergonha de amar. O
pensamento... eles afastam para longe. Eles fazem comércio de
sua liberdade. Rastejam aos pés dos ídolos, eles procuram
dinheiro e correntes. O que eu deixei? Traições, ou a desonra ao
pináculo resplandecente.
Zenfira -
Mas lá veem-se grandes palácios, tapetes de mil cores, jogos,
festas alegres... e as roupas das mulheres, como são ricas!
Aleko - A alegria das
cidades, vão barulho; nada de amor, nada de verdadeira alegria.
As mulheres... Ah! tu vales mais do que elas, tu que não tens
necessidade nem de seus ricos adereços, nem de seus colares!
Zenfira -
Tu não me enganas absolutamente, meu amigo... nunca!... Meu
único desejo é dividir contigo amor, paz, exílio voluntário.
O velho - Tu nos amas,
tu, bem que foste nascido entre os ricos; mas não habituarás
facilmente com a liberdade que conheceste as delícias do luxo.
Entre nós, conta-se esta estória: Um dia, neste país, veio um
homem do sul, exilado por um rei. Antigamente eu soube o seu
nome bizarro, mas eu o esqueci. Velho de idade, ele era jovem de
coração, caloroso para o bem. Ele tinha o dom divino das
canções, e sua voz era como o barulho das águas. Todos o amavam.
Ele vivia às margens do Danúbio, não fazia mal a ninguém,
encantava jovens e velhos com suas histórias. Ele não ouvia
nada, tímido e fraco como uma criança. Era preciso que estranhos
lhe trouxessem caça, e peixes em suas redes; e quando o rio,
rápido, se cobria de gelo, quando sopravam ventos fortes, eles
preparavam para o velho uma cama com lãs quentes.
Mas, ele nunca se acostumou com a vida de miséria. Ele era
pálido, descarnado. A cólera de um deus, dizia ele, o perseguia
por uma falta. Ele esperava sempre a libertação que não vinha.
Errante à margem do Danúbio, ele se lamentava sem cessar, e as
lágrimas amargas corriam de seus olhos à lembrança de seu
distante país. Enfim, morrendo, ele quis que levassem seus ossos
para o sul, crendo que, mesmo após sua morte, eles não poderiam
encontrar o repouso na terra do exílio.
Aleko - Eis, portanto
a sorte de teus filhos, ó Roma, ó soberana do mundo! Poeta dos
amores, poeta dos deuses, diga-me o que é a gloria? Um eco
saindo de um túmulo, um grito de admiração, um rumor que
repercute de idade em idade, ou está sob o abrigo de uma cabana
enfumaçada, na estória de um cigano selvagem?!
*
Dois anos se passam e os ciganos sempre alegres e vagabundos;
por todos os lados, como outrora eles encontram paz e
hospitalidade. Aleko sacudiu as cadeias da civilização: livre
como seus hóspedes, sem cuidado, sem lamentos, ele toma parte em
seu acampamento. Ele não mudou, seus amigos são os mesmos.
Esquecendo seus dias do passado, ele adquiriu os costumes dos
ciganos. Como eles, se sente feliz sob o abrigo de uma tenda;
saboreia os enlevos de sua eterna preguiça, ama até sua
linguagem pobre e sonora. Desertor de sua jaula de madeira, o
urso se tornou o hóspede peludo de sua tenda. Nas aldeias, na
estrada que atravessa a estepe e leva à capital da Moldávia, o
urso dança pesadamente no meio da multidão circunspeta. Ele
grunhe e morde impacientemente sua corrente. Apoiado sobre seu
bastão de viagem, o velho marca displicentemente o compasso em
seu tamborim.
Aleko conduz o animal cantando canções. Zenfira passa diante dos
aldeões e recolhe suas oferendas voluntárias. Vem à noite: todos
os três fazem ferver os grãos que não cultivaram. O velho dorme,
o fogo se apaga; tudo repousa, tudo está tranquilo sob sua
tenda.
*
Com os raios de sol da primavera, o velho aquece seu sangue já
grosso; diante de um berço, sua filha canta uma canção de amor.
Aleko escuta e empalidece.
Zenfira - Homem ciumento,
ciumento mau, corta-me, queima-me, eu sou firme, não tenho medo
nem da faca, nem do fogo. Te odeio, te desprezo, eu amo outro e
morro amando.
Aleko - Pare. Este canto me
fadiga. Eu não gosto destas canções selvagens.
Zenfira -
Não lhe agrada? Que me importa! Eu canto a canção para mim
mesma.
Ela canta:
"Corta-me, queima-me, eu não direi nada, homem ciumento,
ciumento mau, tu não saberás o nome dele."
"Ele é mais vigoroso que a primavera, mais ardente que um dia de
verão; como é jovem e valente! Como ele me ama!"
"Como o tenho acariciado quando tu dormes à noite! Como rimos,
os dois, dos teus cabelos brancos!"
Aleko - Cala-te,
Zenfira! Já te escutei demais.
Zenfira
- Ah! tu pegas a canção por ti?
Aleko - Zenfira!
Zenfira
- Zanga-te se queres... Sim, eu canto a canção por ti.
(Ela sai cantando o refrão.)
O velho
- Sim, eu me lembro. É do meu tempo que se fez esta canção; nos
divertia, fazia as pessoas rirem. Quando nos acampamos na estepe
de Kagoul, numa noite de inverno, minha pobre Maryoula a
cantava, ninando sua filha perto do fogo. No meu espírito, os
anos que não voltam mais, hora a hora, tornam-se sempre mais
confusos. Esta canção entrou na minha memória e não mais saiu.
*
Tudo está silencioso. É noite. A lua resplandece ao sul, num céu
azulado. Zenfira acorda o velho.
Zenfira
- Pai! Aleko está medonho. Escuta. No sono de chumbo ele geme e
soluça.
O velho
- Não toques nele. Não faças barulho. Tu sabes o que dizem
os russos? Na hora da meia-noite, o espírito familiar fecha a
garganta dos que dormem. Antes da aurora ele foge. Fica comigo.
Zenfira
- Pai, ele fala, ele chama Zenfira.
O velho
- Ele te procura, mesmo em sonho. Tu és, para ele, mais
cara do que a vida.
Zenfira
- Seu amor me cansa. Ele me aborrece. Meu coração requer
sua liberdade e, além disto... mas, psiu, escuta, ele pronuncia
um outro nome.
O velho
- Que nome?
Zenfira
- Escute que estertor doloroso! Ele trinca os dentes... ele dá
medo. Eu vou acordá-lo.
O velho
- Tu tentarás em vão. Não perturbes o espírito da noite.
Ele irá embora por si mesmo.
Zenfira - Ele se agita,
se levanta, me chama, ei-lo acordado. Eu vou para ele, adeus.
Dorme.
Aleko -
Onde tu estavas?
Zenfira
- Estava velando perto de meu pai. Agora mesmo um espírito
te atormentava. Em sonho tua alma sofria torturas. Tu me
espantaste. Tu estertoravas, trincavas os dentes, depois me
chamaste.
Aleko - Sonhava
contigo. Me parecia que entre nós... eu tive um sonho horrível.
Zenfira
- Mentiras destes sonhos. Não acredites.
Aleko: - Ah! não acredito em
nada, nem em sonhos, nem em doces juramentos, nem mesmo em teu
coração.
*
O velho ––
Por que, jovem insensato, suspiras sempre? Aqui os homens são
livres, o céu é sereno e as mulheres se gabam de sua beleza. Não
chores. O desgosto te matará.
Aleko - Pai! Ela
não me ama mais!
O velho
- Consola-te, amigo. És uma criança. Tua melancolia não
tem razão. Amar, para ti, é amargura e dor. Amor é um jogo para
coração de mulher. Olhe: sob esta abóbada, lá no alto, a lua
perambula em liberdade. A toda natureza alternativamente ela
derrama a luz. Ela entrevê uma nuvem de repente, ela a clareia,
resplandece, mas eis que ela passa para outra, onde não
permanecerá muito tempo. Quem lhe indicaria um lugar no céu?
Quem lhe diria: fique aí? Quem pode dizer ao coração de uma
moça: consola-te!
Aleko - Como ela
me amava antigamente! Como ela se comprimia, ternamente sobre
mim, nas paradas no meio da estepe! Como as horas da noite
passavam alegres e rápidas! Alegre como uma criança, por uma
palavra balbuciada à orelha, de um beijo embriagador, ela
espantava minha melancolia. Zenfira, infiel!... Não mais me ama!
O velho
- Escuta: eu te contarei uma história de mim mesmo. Há
muito tempo, quando o moscovita não assustava ainda o Danúbio ¾ vês, eu recordo velhos
aborrecimentos ¾então nós tremíamos ao
ouvir o nome do sultão; um paxá comandava Boudjak,[5] do
alto das torres d'Akerman. Eu era jovem, meu coração fervia em
sua alegria e sobre minha cabeça, nas minhas tranças, espessas,
não se podia encontrar nenhum cabelo branco. Entre nossas belas
jovens havia uma... e durante muito tempo ela foi o sol para
mim. Enfim, tornou-se minha.
Ah! minha juventude passou rápida como uma estrela cadente, mas
para ti, o tempo de amor se esgotou ainda mais veloz[6].
Maryoula me amou um ano.
Uma vez, perto das águas do Kagoul, nós encontramos uma horda
estrangeira. Eram ciganos da Boêmia. Eles fincaram suas tendas
perto de nós, no pé da montanha. Duas noites nos acampamos
juntos. Eles partiram na terceira noite: Maryoula partiu com
eles... Eu dormia tranquilo. Veio o dia, acordei. Ela não estava
mais lá. Procurei, chamei: suas pegadas mesmo haviam
desaparecido. A pequena Zenfira chorava; eu chorava também...
Depois deste dia, todas as moças do mundo não foram nada para
mim. Nunca, entre elas, meu olhar procurou uma companheira e
meus prazeres solitários, eu não os dividia com ninguém.
Aleko - Mas por que
não correste logo seguindo as pegadas da infame? Como tu não
enfiaste teu punhal no peito do raptor e da tua falsa
companheira?
O velho
- Por que? A juventude não é tão voluntária como o
pássaro? Que força pararia o amor? O prazer se dá a cada um, de
cada vez. O que foi não será mais.
Aleko - Isto não
é de meu temperamento. Não renuncio aos meus direitos sem
disputa ou, ao menos, saboreio os prazeres da vingança. Não! Eu
a encontraria, à beira do mar, meu inimigo adormecido perto de
um abismo sem fundo, que eu seja maldito se meu pé não o
empurrasse no abismo! Ele estaria à minha mercê, sem defesa, eu
o precipitaria nas águas, atacaria com furor o seu despertar,
gozaria sua agonia e, muito tempo, o barulho de sua queda soaria
em minha orelha e me seria uma lembrança de alegria e de
zombaria.
*
Um jovem cigano
- Ainda um só, um só beijo!
Zenfira - Adeus! Meu marido é
ciumento e mau.
O jovem cigano - Um só, mais longo,
para adeus...
Zenfira - Adeus! Tenho medo de
que ele venha...
O jovem cigano - Diga, quando nos
tornaremos a ver?
Zenfira - Esta noite, quando a
lua se puser, lá em baixo, no Kourgane, perto do túmulo.
O cigano - Mentirosa! Você não
virá.
Zenfira - Corra amigo. Ei-lo!
Eu irei.
Aleko dorme; uma inquieta visão o importuna. Ele acorda
gritando. O ciumento estende a mão, mas sua mão assustada não
pega senão uma coberta fria. Sua companheira não está mais perto
dele. Tremendo, ele se levanta. Tudo está tranquilo. Ele treme,
sente frio, queima. Sai de sua tenda e, pálido, dá voltas nas
carroças. Nenhum barulho; o campo está mudo. Reina a
obscuridade, a lua mergulhou no nevoeiro. À trêmula luz das
estrelas sobre o orvalho, ele advinha passos. Eles se dirigem à
Kourgane. Ele se precipita sobre estes traços funestos. Eis o
túmulo branco que surge à margem do caminho. Um pressentimento
sinistro o agita, caminha cambaleando. Seus lábios tremem, seus
joelhos dobram; ele avança e... É um sonho? Duas sombras estão
lá, perto dele e ele ouve o murmúrio de vozes que falam sobre o
túmulo profanado.
Primeira voz - É tempo.
Segunda voz - Fica ainda...
Primeira voz - É preciso, amigo,
separarmo-nos.
Segunda voz - Não, não, fiquemos
até chegar o dia.
Primeira voz - A hora nos apressa.
Segunda voz - Que tímida amorosa!
Um instante!
Primeira voz - Tu me perdes!
Segunda voz - Um momento.
Primeira voz
- Se meu marido acorda sem mim!...
Aleko - Ele
acordou. Aonde vão? Fiquem os dois. Estão bem aí; sim, aí, sobre
este túmulo!
Zenfira - Amigo, salva-te,
fuja!
Aleko - Pare! Aonde vai belo
galanteador? Toma! (ele o atinge com sua faca).
Zenfir - Aleko!
O cigano - Estou morto!
Zenfira - Aleko! Não o mate.
Mas tu estás coberto de sangue!? Que fizeste?
Aleko - Nada. No momento
respira teu amor.
Zenfira - Bem, não tenho medo
de ti! Desprezo tuas ameaças. Assassino, eu te amaldiçoo!
Aleko (apunhalando-a) -
Morra também!
Zenfira -
Morro amando ele.
O horizonte se aclara com os primeiros raios de sol sobre a
terra. Aleko, todo ensanguentado, ainda com a faca na mão, está
sentado sobre a pedra do túmulo. A seus pés jazem dois
cadáveres. A fisionomia do matador é medonha. Um grupo espantado
de ciganos o rodeia. Sobre o Kourgane, a seus pés, eles cavam
uma fossa. As mulheres, uma após a outra, avançam e beijam os
olhos dos mortos. O velho, o pai, está sentado olhando a vítima
imóvel, silencioso. Levantam os cadáveres, e o jovem casal é
depositado no frio seio da terra. Aleko os contempla à distância
e, quando o último punhado de terra é jogado na fossa, sem dizer
nada, ele desliza da pedra e cai sobre a campa.
Então, o velho:
"Longe de nós, homem
orgulhoso! Nós somos selvagens que não têm leis. Entre nós, nada
de carrascos, nada de suplícios; nós não pedimos aos culpados
nem seu sangue, nem suas lágrimas. Mas nós não vivemos com um
assassino. Tu és livre; vive só[7]. Tua voz nos fará
medo. Nós somos pessoas tímidas e doces; tu és cruel e
audacioso, separarmo-nos. Adeus. Que a paz seja contigo!"
Ele falou; com grande
barulho, toda horda se levanta e se apressa em deixar seu
acampamento sinistro. Logo tudo desaparece ao longe da estepe.
Somente uma carroça coberta por um tapete esfarrapado, permanece
atrás na planície[8].
Assim, aproximando o
inverno, diante dos primeiros nevoeiros, vê-se voar, com grandes
gritos, em direção ao sul, um bando de grous retardatários.
Atingido por um chumbo funesto, um[9] só permanece
arrastando sua asa ferida sobre a terra.
Vem à noite. Diante da carroça abandonada, nenhum fogo brilha
esta noite; sob a coberta da carroça, ninguém dorme até a
aurora.
EPÍLOGO
Assim, pelo poder dos versos, na minha memória obscurecida,
revivem as visões dos dias passados entre júbilo ou desgosto.
Nestes lugares, há muito tempo, muito tempo, ecoa a medonha voz
da guerra. Lá, a Rússia marcou uma província em Istambul. Lá,
nossa velha águia, com dupla cabeça, ouve redizer ainda suas
glórias passadas. E lá, no meio da estepe, sobre trincheiras em
ruínas, eu reencontrei as carroças dos ciganos, esses pacíficos
filhos da liberdade.
Mas a felicidade não se encontra mesmo entre vós, pobres filhos
da natureza; e sob vossas tendas esburacadas, há sonhos que são
suplícios. Nômades, o mesmo deserto tem abrigo contra a dor ou o
crime. Por todos os lados, as paixões; por todo lado, o destino
inexorável.
Rio, 28/10/02
[1] O título dado por Puchkin é Cygan,
traduzido por tsiganos (ciganos). São também chamados bohémiem,
atzingano, faraó-nepek, (filho do faraó), gitano, gypsy,
manouche, sinti, romani, calom, zíngaro, zigeuner, zincali etc.
[2] Aleksandr Sergueievitch Puchkin
(1799-1837). Escreveu Tsiganes em 1827.
[3] Região da Rússia, ao leste da
Europa. Pertenceu sucessivamente do séc. XV ao XX à Moldávia,
Império Otomano, Rússia, Romênia, União Soviética e Ucrânia.
[4] Montanha.
[5] O mesmo que Bessarábia.
[6] O amor de Aleko e Zenfira, na
verdade, durou dois anos. Talvez o autor quisesse dizer que eles
estavam juntos, mas não havia mais amor.
[7] Entre ciganos, que vivem em grupo,
o exílio é o pior castigo. Cigano morre de solidão quando é
expulso da horda. Aleko não era cigano, logo a pena não seria
problema, porém, ele sofreu, e como, pelo amor perdido.
[8] Os ciganos abandonam todos os bens
dos mortos. Em geral põem fogo para que seus espíritos não
voltem como mulô (fantasma).
[9] Alma de Aleko está no grou. No
folclore boêmio, os gansos é que são almas reencarnadas de
ciganos.
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