Ah! Eu só posso lamentar que, após mil anos e mais, um povo seja
ainda discriminado. Falo do povo cigano. Como é que pode a
humanidade ainda trazer imagem tão estereotipada contra os
ciganos? Não tenho procuração para defender este povo e nem
preciso dela. Eles são meus irmãos em Cristo e nós, os
brasileiros, todos somos irmãos. Entretanto, jornais, revistas e
livros escritos por jornalistas, doutores, mestres,
historiadores de escol, publicam textos fundamentados em Debret
(o preconceituoso) e Antônio J. de Mello Morais Filho (o
incoerente) dando ciganos como escravistas [falo da escravidão
negra no Brasil]. É triste, mas é verdade, grandes pesquisadores
de hoje têm elaborado teses menosprezando o povo cigano (há
gloriosas exceções) como se eles fossem rebotalhos, a escória do
gênero humano e têm impiedosas palavras para com esse povo, até
mesmo julgando-os principais comerciantes de escravos. É injusto
tal tratamento e é errado. Não podemos julgar ninguém pelo
passado, muito menos uma etnia, principalmente por este drama
que nos causa justa revolta: a escravidão negra. À época em que
se deu o nefando comércio, ele era perfeitamente lícito e
tolerável, e todos que habitavam na Terra Brasilis comerciavam
escravos. Não era crime (mas para os ciganos era). Vejam estas
palavras retiradas do Dicionário da escravidão, de Alaôr Eduardo Scisínio (p.311), citando
o historiador Luís Viana Filho:
Vale lembrar que a ninguém repugnava comerciar
escravos. No tempo não era coisa que se fizesse furtivamente,
coberto de vergonha, fugindo às críticas da população, pelo
contrário, era um título. Na Inglaterra chegou a fazer barões.
Aqui também foi serviço prestado a Sua Majestade e ao país, p.311.
E os barões do café... se tornaram barões à custa de quem? Dos
escravos. Portanto, trabalhos existentes por aí cometem duas
falhas fundamentais:
1) Dão excessiva ênfase ao evento (escravidão) que, quando
ocorreu, era normalíssimo para todas as gentes,
exceto para ciganos. Existiam leis, alvarás, bandos,
posturas proibindo todos comerciarem escravos com os ciganos; 2)
jogam a culpa sobre os ciganos, levantando uma cortina de fumaça
que só aproveita aos verdadeiros escravistas. Levantamentos
comprovam apenas isto: Poucos ciganos se envolveram com poucos
negócios com escravos. Dezenas de trabalhos (talvez centenas)
sequer citam ciganos no imbróglio escravista.
Achamos que é tempo de reflexão. Vamos refletir, então:
Os ciganos foram comerciantes interprovinciais de escravos?
Dizem que sim. Nós provaremos que não.
Achamos ser nosso dever dizer o porquê de nossa oposição a esta
tese. Exerceremos o sagrado direito do contraditório. Estudamos
o povo cigano ao longo destes últimos oito anos, lemos mais de
duzentos livros, manuseamos documentos históricos na Biblioteca
Nacional (FBN), no Arquivo Nacional (ANRJ), no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) entre outros, e cremos
ter elucidado a questão: ciganos x escravos, principalmente no
Rio de Janeiro.
Ciganos só levaram a
culpa, só não enxerga isto quem não quer ver.
Foi cômodo, para os historiadores de antanho, para os viajantes
que aportaram no Rio de Janeiro, jogar culpa do negócio de
escravos sobre os ciganos, mesmo porque eles não se defendiam de
acusações e até hoje não se defendem. Então, os antigos diziam:
“Os ciganos são os principais negociantes de escravos”. E
ficavam de bem com a elite dominante e outros que ostensivamente
ou nas sombras agiam: os cristãos-novos/judeus, portugueses e
brasileiros, ainda que não fossem da elite.
Os trabalhos existentes (alguns) repousam
sobre estes pilares: Debret, Mello Morais Filho, Saint-Hilaire e
Donovan[1].
Não vamos nos deter em extensos detalhes. Remetemos os leitores
e leitoras aos documentos citados [ver notas de rodapé]. O que
vamos dizer aqui é o seguinte: Destes autores, os três primeiros
são de antigamente (séc. XIX); Donovan é moderno. Os antigos:
Saint-Hilaire, Debret e Mello Morais Filho, jamais disseram que
os ciganos fizeram o tal comércio interprovincial de escravos.
Este era privilégio dos
Comboieiros[2].
Muitos falam neles: Gilberto Freyre, in
Sobrados e mocambos;
Lina Gorenstein F. da Silva, in
Heréticos e impuros;
José Gonçalves Salvador, in
Magnatas do
tráfico negreiro.
Augusto de Lima Jr.,
in
Mineiros e paulistas de
origem judaica, RIHG-MG, v. V, 1958, p. 137-54, bem como in
A capitania de Minas
Gerais; Neuza Fernandes, in
A inquisição e o
pioneirismo dos cristãos-novos nas Minas Gerais, RIHGB, n.
159 de out./dez de 1998; Joaquim Felício dos Santos, in
Memórias do Distrito
Diamantino; Júnia
Ferreira Furtado, in
Homens de negócio.
Tropeiros e
outros homens de negócio,
como os
tratantes e
comissários, também levavam, negociavam/remetiam escravos para o interior do
Brasil. Vamos excluir Saint-Hilaire, Debret e Mello Morais Filho
por não terem dito nada sobre o comércio interprovincial. Quanto
aos vários matizes dos negócios (compra, venda, troca, na Praça
do Rio de Janeiro) eles falaram sim, mas se excederam sempre
contra os ciganos. Pergunta-se: Como os ciganos comerciavam sob
tanta perseguição? O argumento do comércio interprovincial nos
leva a Bill Donovan. Este pesquisador foi tão simplório que
confundiu ciganos com a função de comissário. Errou, pois
ciganos jamais foram comissários. Estes eram sempre homens de
total confiança dos fazendeiros; dos senhores de engenho; dos
barões do café e/ou dos donos de lavras. Jamais os
latifundiários e a elite confiariam suas encomendas a ciganos.
Donovan apoiou-se em Mello Morais Filho;
um errou, o outro também. Para nós, o trabalho de Donovan perde
todo valor ao cometer erro tão elementar. Ele baseou-se em
premissa falsa; logo, trabalho inconsistente..., pois ciganos
não se interessam inserir entre ou ser gadjê (não cigano).
Outros nos falam de ciganos como
sedutores de escravos. Não é verdade tal assertiva. Ciganos eram
citados como ladrões de escravos (roubo com violência), já
sedução é subtração de bens mediante conversa ao pé do ouvido,
falsas promessas etc. Dizemos que ou se é ladrão ou se é
sedutor, pois há conflito entre um e outro. É misturar alhos e
bugalhos. Um trabalho que lemos afirma que: O roubo era
normalmente praticado por ciganos. Entretanto, o mesmíssimo
texto diz que o tipo de ladrão e sedutor mais notório de
escravos era o cigano. Eis a incongruência: juntaram as
funções/estigmas de sedutor e ladrão; no entanto, elas são
diferentes, já o dissemos. E o mesmo texto diz que os ciganos
não eram confiáveis. Cabe uma pergunta: Você faz negócio com
indivíduo não confiável? Se fizer, é um néscio. Ainda no mesmo
trabalho/tese lê-se sobre um cigano muito rico, que
subcontratava a sedução de escravos e ainda cita um documento:
13 ANRJ, XM 347, ofícios dos juízes, 1810-1883, 27/09/1809.
Somos como são Tomé: fomos conferir. Contratamos pesquisadora
para examinar este pacote no Arquivo Nacional (ANRJ), e ela nada
encontrou referente a ciganos (temos os dados para consulta).
Ocorreu um erro de revisão de originais ou há um equívoco a
corrigir. Pena, pois tínhamos grande curiosidade em conhecer o
documento que falava do cigano que terceirizava sedutores. Diz
ainda que o período 1808-1821 foi rico em denúncias sobre
desvios de conduta de ciganos como sedutores. A nós parecem
insignificantes 23 anos de sedução (1808-1831), quando
comparados com 330 anos de escravidão. Parece-nos, salvo melhor
juízo, que se dá mais atenção à pulga do que quando se é
atropelado por um elefante. Também vale ressaltar que na
tabela de Leila Mezan Algranti, à p.
211
de seu livro O feitor
ausente, dos
4.102
presos, entre
1810-1821, não
consta um cigano sequer; ou eles eram muito espertos, ou não
tinham cometido deslize algum (nem sedução, nem roubo, nada).
Note-se, como reforço deste pensamento, que cigano era
considerado “culpado” só por ser cigano.
Em suma:
1) Ciganos não foram comerciantes interprovinciais de escravos;
não há provas, somente ilações, suspeitas, indícios e deduções;
2) é difícil imaginar cigano vendendo à prestação para os
garimpeiros, barões de café, usineiros, ou quem quer que seja.
Sequer tinham acesso aos compradores. Ciganos são escorraçados,
excluídos da comunidade como sempre e acampam nas periferias dos
arraiais e fazendas;
3) ciganos não foram
sedutores importantes (se é que
seduziram alguém), quer no tempo (mais de 300 anos), quer na
quantidade. Levantamentos indicam roubos ocasionais, por ciganos
(de poucos escravos) em oposição aos três milhões que para cá
vieram.
Por outro lado,
aproveitando-se da fama [má fama]
dos ciganos, soldados, homens públicos e até outros escravos
envolviam-se no furto de negros. Leila Mezan Algranti, op.
cit., p.71. A autora ainda cita o caso de um desembargador que
tinha em sua fazenda mais de 500 escravos roubados;
4) os ciganos nunca tiveram condições financeiras para
investimentos em escravos. (Olhe hoje para eles, em nossas ruas!
São como os de outrora: pobres); aliás, cabem as perguntas: Você
já viu ciganos megafraudadores, assaltantes dos cofres públicos?
Você já viu cigano matando os próprios filhos?
5) os
Minas, escravos ou
forros, foram principais neste mister (sedução). Há tese bem
defendida sobre o tema.
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