OS CIGANOS E AS SEDUÇÕES DE ESCRAVOS

Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas.
Duas meias verdades não perfazem uma verdade.
Multatuli (1820-1887)

Sedução sf. atração, encanto, fascínio... In Celso Cunha: Dic. Etimológico, p. 711.


por Asséde Paiva
postado no Benficanet em 18/12/2015

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Ah! Eu só posso lamentar que, após mil anos e mais, um povo seja ainda discriminado. Falo do povo cigano. Como é que pode a humanidade ainda trazer imagem tão estereotipada contra os ciganos? Não tenho procuração para defender este povo e nem preciso dela. Eles são meus irmãos em Cristo e nós, os brasileiros, todos somos irmãos. Entretanto, jornais, revistas e livros escritos por jornalistas, doutores, mestres, historiadores de escol, publicam textos fundamentados em Debret (o preconceituoso) e Antônio J. de Mello Morais Filho (o incoerente) dando ciganos como escravistas [falo da escravidão negra no Brasil]. É triste, mas é verdade, grandes pesquisadores de hoje têm elaborado teses menosprezando o povo cigano (há gloriosas exceções) como se eles fossem rebotalhos, a escória do gênero humano e têm impiedosas palavras para com esse povo, até mesmo julgando-os principais comerciantes de escravos. É injusto tal tratamento e é errado. Não podemos julgar ninguém pelo passado, muito menos uma etnia, principalmente por este drama que nos causa justa revolta: a escravidão negra. À época em que se deu o nefando comércio, ele era perfeitamente lícito e tolerável, e todos que habitavam na Terra Brasilis comerciavam escravos. Não era crime (mas para os ciganos era). Vejam estas palavras retiradas do Dicionário da escravidão, de Alaôr Eduardo Scisínio (p.311), citando o historiador Luís Viana Filho:

 

Vale lembrar que a ninguém repugnava comerciar escravos. No tempo não era coisa que se fizesse furtivamente, coberto de vergonha, fugindo às críticas da população, pelo contrário, era um título. Na Inglaterra chegou a fazer barões. Aqui também foi serviço prestado a Sua Majestade e ao país, p.311.

 

E os barões do café... se tornaram barões à custa de quem? Dos escravos. Portanto, trabalhos existentes por aí cometem duas falhas fundamentais:

 

1) Dão excessiva ênfase ao evento (escravidão) que, quando ocorreu, era normalíssimo para todas as gentes, exceto para ciganos. Existiam leis, alvarás, bandos, posturas proibindo todos comerciarem escravos com os ciganos; 2) jogam a culpa sobre os ciganos, levantando uma cortina de fumaça que só aproveita aos verdadeiros escravistas. Levantamentos comprovam apenas isto: Poucos ciganos se envolveram com poucos negócios com escravos. Dezenas de trabalhos (talvez centenas) sequer citam ciganos no imbróglio escravista.

 

Achamos que é tempo de reflexão. Vamos refletir, então:

 

Os ciganos foram comerciantes interprovinciais de escravos? Dizem que sim. Nós provaremos que não. Achamos ser nosso dever dizer o porquê de nossa oposição a esta tese. Exerceremos o sagrado direito do contraditório. Estudamos o povo cigano ao longo destes últimos oito anos, lemos mais de duzentos livros, manuseamos documentos históricos na Biblioteca Nacional (FBN), no Arquivo Nacional (ANRJ), no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) entre outros, e cremos ter elucidado a questão: ciganos x escravos, principalmente no Rio de Janeiro. Ciganos só levaram a culpa, só não enxerga isto quem não quer ver.

 

Foi cômodo, para os historiadores de antanho, para os viajantes que aportaram no Rio de Janeiro, jogar culpa do negócio de escravos sobre os ciganos, mesmo porque eles não se defendiam de acusações e até hoje não se defendem. Então, os antigos diziam: “Os ciganos são os principais negociantes de escravos”. E ficavam de bem com a elite dominante e outros que ostensivamente ou nas sombras agiam: os cristãos-novos/judeus, portugueses e brasileiros, ainda que não fossem da elite.

 

Os trabalhos existentes (alguns) repousam sobre estes pilares: Debret, Mello Morais Filho, Saint-Hilaire e Donovan[1]. Não vamos nos deter em extensos detalhes. Remetemos os leitores e leitoras aos documentos citados [ver notas de rodapé]. O que vamos dizer aqui é o seguinte: Destes autores, os três primeiros são de antigamente (séc. XIX); Donovan é moderno. Os antigos: Saint-Hilaire, Debret e Mello Morais Filho, jamais disseram que os ciganos fizeram o tal comércio interprovincial de escravos. Este era privilégio dos Comboieiros[2]. Muitos falam neles: Gilberto Freyre, in Sobrados e mocambos; Lina Gorenstein F. da Silva, in Heréticos e impuros; José Gonçalves Salvador, in Magnatas do tráfico negreiro. Augusto de Lima Jr., in Mineiros e paulistas de origem judaica, RIHG-MG, v. V, 1958, p. 137-54, bem como in A capitania de Minas Gerais; Neuza Fernandes, in A inquisição e o pioneirismo dos cristãos-novos nas Minas Gerais, RIHGB, n. 159 de out./dez de 1998; Joaquim Felício dos Santos, in Memórias do Distrito Diamantino; Júnia Ferreira Furtado, in Homens de negócio.

 

Tropeiros e outros homens de negócio, como os tratantes e comissários, também levavam, negociavam/remetiam escravos para o interior do Brasil. Vamos excluir Saint-Hilaire, Debret e Mello Morais Filho por não terem dito nada sobre o comércio interprovincial. Quanto aos vários matizes dos negócios (compra, venda, troca, na Praça do Rio de Janeiro) eles falaram sim, mas se excederam sempre contra os ciganos. Pergunta-se: Como os ciganos comerciavam sob tanta perseguição? O argumento do comércio interprovincial nos leva a Bill Donovan. Este pesquisador foi tão simplório que confundiu ciganos com a função de comissário. Errou, pois ciganos jamais foram comissários. Estes eram sempre homens de total confiança dos fazendeiros; dos senhores de engenho; dos barões do café e/ou dos donos de lavras. Jamais os latifundiários e a elite confiariam suas encomendas a ciganos. Donovan apoiou-se em Mello Morais Filho; um errou, o outro também. Para nós, o trabalho de Donovan perde todo valor ao cometer erro tão elementar. Ele baseou-se em premissa falsa; logo, trabalho inconsistente..., pois ciganos não se interessam inserir entre ou ser gadjê (não cigano).

 

Outros nos falam de ciganos como sedutores de escravos. Não é verdade tal assertiva. Ciganos eram citados como ladrões de escravos (roubo com violência), já sedução é subtração de bens mediante conversa ao pé do ouvido, falsas promessas etc. Dizemos que ou se é ladrão ou se é sedutor, pois há conflito entre um e outro. É misturar alhos e bugalhos. Um trabalho que lemos afirma que: O roubo era normalmente praticado por ciganos. Entretanto, o mesmíssimo texto diz que o tipo de ladrão e sedutor mais notório de escravos era o cigano. Eis a incongruência: juntaram as funções/estigmas de sedutor e ladrão; no entanto, elas são diferentes, já o dissemos. E o mesmo texto diz que os ciganos não eram confiáveis. Cabe uma pergunta: Você faz negócio com indivíduo não confiável? Se fizer, é um néscio. Ainda no mesmo trabalho/tese lê-se sobre um cigano muito rico, que subcontratava a sedução de escravos e ainda cita um documento: 13 ANRJ, XM 347, ofícios dos juízes, 1810-1883, 27/09/1809. Somos como são Tomé: fomos conferir. Contratamos pesquisadora para examinar este pacote no Arquivo Nacional (ANRJ), e ela nada encontrou referente a ciganos (temos os dados para consulta). Ocorreu um erro de revisão de originais ou há um equívoco a corrigir. Pena, pois tínhamos grande curiosidade em conhecer o documento que falava do cigano que terceirizava sedutores. Diz ainda que o período 1808-1821 foi rico em denúncias sobre desvios de conduta de ciganos como sedutores. A nós parecem insignificantes 23 anos de sedução (1808-1831), quando comparados com 330 anos de escravidão. Parece-nos, salvo melhor juízo, que se dá mais atenção à pulga do que quando se é atropelado por um elefante. Também vale ressaltar que na tabela de Leila Mezan Algranti, à p. 211 de seu livro O feitor ausente, dos 4.102 presos, entre 1810-1821, não consta um cigano sequer; ou eles eram muito espertos, ou não tinham cometido deslize algum (nem sedução, nem roubo, nada). Note-se, como reforço deste pensamento, que cigano era considerado “culpado” só por ser cigano. Em suma:

 

1) Ciganos não foram comerciantes interprovinciais de escravos; não há provas, somente ilações, suspeitas, indícios e deduções;

 

2) é difícil imaginar cigano vendendo à prestação para os garimpeiros, barões de café, usineiros, ou quem quer que seja. Sequer tinham acesso aos compradores. Ciganos são escorraçados, excluídos da comunidade como sempre e acampam nas periferias dos arraiais e fazendas;

 

3) ciganos não foram sedutores importantes (se é que seduziram alguém), quer no tempo (mais de 300 anos), quer na quantidade. Levantamentos indicam roubos ocasionais, por ciganos (de poucos escravos) em oposição aos três milhões que para cá vieram. Por outro lado, aproveitando-se da fama [má fama] dos ciganos, soldados, homens públicos e até outros escravos envolviam-se no furto de negros. Leila Mezan Algranti, op. cit., p.71. A autora ainda cita o caso de um desembargador que tinha em sua fazenda mais de 500 escravos roubados;

 

4) os ciganos nunca tiveram condições financeiras para investimentos em escravos. (Olhe hoje para eles, em nossas ruas! São como os de outrora: pobres); aliás, cabem as perguntas: Você já viu ciganos megafraudadores, assaltantes dos cofres públicos? Você já viu cigano matando os próprios filhos?

 

5) os Minas, escravos ou forros, foram principais neste mister (sedução). Há tese bem defendida sobre o tema.

 

 


[1] Bill M. Donovan. Changing Perceptions of Social Deviance: Gypsies in Early Modern Portugal and Brazil. In Journal of Social History, v. 26, n. L Fall, 1992, p 33-53.

 

 

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