O SEGREDO DE MIKAELA

por Asséde Paiva
postado no Benficanet em 27/03/2017

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Faz tempo, muito tempo, mais de um ano, quase dois. De algum modo perdi a noção, pois sofro por pensar em alguém que muito amei: Mikaela. Quem foi Mikaela? Uma ciganinha e o grande amor da minha vida. Vou contar tintim por tintim a minha desgraça, mas tenham paciência comigo, serei breve, porque cada palavra me leva a ela, e chega de sofrer... Eu possuía uma fazendinha às margens do rio Verde. Mais ou menos dez alqueires que cultivava com meu empregado Benício e com os cuidados da ex-escrava, Dindinha. Dindinha era como se fosse minha mãe, afinal, me criara desde que nasci, e mamei no seu seio. Pois é, Benício, o agregado, cuidava da horta, do pomar, ordenhava umas vaquinhas, fazia um rendeiro, capinava e roçava. Era um amigo, acima de tudo, um protetor. A vida seguia placidamente, quando às margens do Rio Verde, acamparam uns ciganos. De início, não tive contato com eles, sempre havia o receio de ser enganado, e eles eram ressabiados. Porém, dias depois, por motivo de sumiço de meu cavalo do pasto da vargem, dirigi-me ao acampamento deles saber das coisas... Fui recebido pelo chefe do bando, o cigano de nome Pepe, com olhar hostil. Perguntei-lhe se não vira meu animal. Ele respondeu:

–– Você está procurando o grais? Cavalo perdido e achado por cigano, a ele pertence.

–– O cavalo não estava perdido, fugiu do pasto da estrada, contestei.

O cigano vendo que não havia outro interesse em jogo, me devolveu o cavalo e convidou-me para tomar café. Aceitei em nome de boa convivência. A conversa seguia amena, quando ouvi os sons de uma guitarra. Silenciamos na parolagem e pusemos a ouvir. A voz era maviosa e os acordes dolentes fantasiavam minha mente. Por fim, Pepe levou-me até à cantora: uma ciganinha de uns quinze anos. Que beleza! Parecia uma pluma esvoaçando ao ar e quando ela se pôs a dançar, encantei-me com seus volteios; enfeitiçou-me, apaixonei-me imediatamente. Sabe como é, né? O coração dispara, as pernas ficam bambas, um calor desce da cabeça aos pés e há uma doçura no ar, enfim; a gente fica bobo, muda a voz e lambe os lábios ressequidos: é o amor. Ela, a ciganinha, também foi flechada, pois parou de dançar e fixou-me o olhar fosforescente. Ela chamou-me para participar da roda. Na dança cigana, os casais não se tocam, cada indivíduo faz seus meneios, só; a ciganinha coleava, rodopiava, segurava a saia, sem mostrar as pernas, batia a língua no céu da boca, seus dedos soando em plec, plec, plec; os calcanhares socando o chão, em golpes secos. Tentei fazer a mesma batida com os pés, sem jogo de cintura derrapei num cascalho, torci o artelho, fui ao chão, segurando a dor. Mikaela levou-me à tenda de seu pai, o barô Pepe. Por dia e meio, fiquei aos cuidados dela. Banhou meu pé e passou uma espécie de óleo mágico que me deu grande alívio. Eu, sempre hipnotizado pelo seu olhar, que cada vez aumentava nossa atração física. Nós estávamos enlaçados, explosão de amor e desejo refluía de nossos corações. Nossas almas se fundiram. Para evitar comentários despedi-me ainda manquitolando e retornei a casa. Daí em diante, todos os dias, sob mais ridículas desculpas, inventadas na hora, ia visitar a tribo nômade. Sempre que possível papeava com Mikaela. Depois, em encontro fortuito, aconteceu o que tinha que acontecer: éramos dois jovens ardentes, amados, consumamos o amor, sob o intenso luar, e são Jorge nos abençoou. Ela, doravante, cantava só para mim, embora muito cigano pensasse, embevecido e enganado, ser por ela o escolhido. Um dia ela declamou esta trova:

Ustilê or trique
duque orobabas
nu pandebrê a chinibén gori
ta or nu sastraba

(Este lenço em que choravas,
tomei-o na minha mão;
tapei com ele as feridas,
o lenço deixou-me são).

 

E o nosso amor, sem fim, prosperava e trazia muito ciúme dos jovens da tribo. Neste interregno, fui chamado à cidade grande para resolver problemas testamentários e parti sem me despedir de Mikaela. Tardei de mais na cidade, porque houve discordância entre herdeiros, e o que era fácil tornou-se longa demanda judicial. Quando voltei, encontrei Benício, meu caseiro, no umbral da minha casa, com ar tristonho e extremamente pálido. Inquiri o que se passara na minha ausência, e ele contou:

–– Patrão! Logo após sua partida fui atender o cigano Pepe, que me chamara lá no batente da porteira. Ele estava furioso, disse-me que Mikaela desonrara seu clã, ela era mehrimé, impura, e que o senhor era o culpado. O cigano, irado, perguntou-me pelo senhor: “Onde está o ganjão?” Eu disse que não sabia, ele me amaldiçoou pondo sua mão na minha boca: “Nada sabe, não coma” e pronunciou palavras esgrouvinhadas que não entendi. Disse que era armayia ou maldição que me jogava. Desde aquele instante, não posso comer, tenho náuseas, só desce um caldinho. Eis como estou numa fraqueza infinda. Um dia, eles espalharam que Mikaela, convocada a comparecer ao Kris (julgamento cigano), preferiu fugir na calada da noite. Os ciganos disseram que ela tinha morrido de doença misteriosa, e fizeram um enterro às pressas, ao lado de um ingazeiro, no cemitério dos antigos escravos, à frente de seu sítio. Sobre o túmulo dela puseram uma pedra em vez de cruz. Dias depois, um incêndio aconteceu no campo cigano, corri até lá para ajudar, entretanto, não vi um cigano; era a carroça de Mikaela que estava ardendo em braseiro infernal. Consegui salvar a guitarra e este cachorro do fogo. Ele me disse que Dindinha também sumira desde o fatídico incêndio. Benício fazia dó, era pele e osso; entrou em lassidão plena e morreu, pouco depois de minha vinda. Enterrei-o no cemitério, conforme sua última vontade, bem perto da ‘sepultura’ de Mikaela. Minha alma estava em frangalhos, vivia a lamentar minha desdita. Em noites de luar ia ao túmulo de Mikaela tocar suas cantigas. Os passantes espalhavam que o cemitério era assombrado, por ouvirem meus cantos à meia-noite. Quantos e tantos dias eu ficava encarando o caminho, esperando as caravanas de nômades. Pensava rever o pai de Mikaela, queria conversar com ele, saber o quê se passara e qual fora a sua doença. Sempre me frustrei. Vi muitas ciganas belas, faceiras, que lembravam minha amada, mas Mikaela era incomparável, doce e bela. Na minha visão, esperava vê-la novamente, não acreditando na sua morte... Estaria eu ficando louco? Tudo me lembrava de Mikaela. Meus dias e horas eram dedicados a sonhar e esperar. Aí, caí em depressão. Nada mais me interessava, mergulhei na minha ausência mental. O sítio entrou em desmazelo. Só para fugir da realidade eu bebia o tempo todo. Minha vida normal acabou, e os amigos se afastaram, pois não tinha o que lhes dizer, meu negócio era beber e beber. O dinheiro mal dava para meu alcoolismo interminável. Finalmente, minha casa se deteriorava com meu desleixo: pulgas, percevejos, pernilongos eram meus hóspedes. Às vezes, entrava em estado de estupor; outras vezes, a angústia me dominava. Havia o danado do cachorro, abandonado pelos ciganos, que uivava lugubremente. Eu e o cão, dois esquálidos, famintos, lamentáveis e companheiros. Há tempos, hipotecara minha fazendola a preço vil. Meu lar em ruínas não me incomodava. Vivia em estado abúlico; aí, recebi a visita do oficial de justiça que me saudou:

–– bom dia, senhor, como tem passado?

–– Você está vendo, tenho grandes problemas!

–– Ah! Eu estou sabendo, posso me sentar?

–– Sim, sente-se nesta trava de madeira, não vale a pena entrar. Não há cadeiras lá dentro, o terreiro é limpo e fresco. A que devo a honra de sua visita?

O oficial, desconcertado, pigarreou como se desculpando:

–– Senhor, minha profissão é antipática, tenho algo desagradável para lhe comunicar...

–– Senhor oficial, desembuche, sei da sua função, portanto, fale sem constrangimento.

Ele remexeu na pasta, pegou um documento e me deu. Antes de assiná-lo, li-o atento. Tratava-se da intimação para pagar a dívida, sob pena de execução da hipoteca. Nem tentei dialogar, estava inadimplente mesmo. Além disso, o portador, simples meirinho, cumpria ordens. Assinei a petição e o homem saiu quase correndo, mal se despediu de mim. Agora, sim, perdera o único bem imóvel que me restava, teria de ir embora como errante; felizmente o pangaré ainda era meu. Que fazer com existência tão desastrada? Estava pensando no vaivém da vida, quando decidi... olhei no entorno procurando uma corda, não achei nada. Então, abri a mala de viagem, esquecida num canto obscuro do meu quarto. Procurei alguma coisa que servisse ao meu fim: achei o revólver Smith Wessom .32. Ninguém era por mim: Mikaela morrera; meu empregado, também. Dindinha desaparecera e eu era um nada, João ninguém. Levei o revolver à têmpora, antes do gesto fatal, senti forte pressão no pulso. Espantei-me ao ver mãe Dindinha, em carne e osso. Fiquei estonteado e surpreso com a aparição. Dei um arranco para soltar-me, mas não consegui. Dindinha era forte e não demonstrava nenhuma agitação, só um quê de reprovação e dó, que me deixou curioso.

–– Vim quebrar um juramento que fiz –– me disse.

–– Um juramento...

Ela encarou-me olho no olho e sem pestanejar, repetiu enérgica:

–– Preciso quebrar meu juramento. Meu coração e senso de justiça me obrigam a isso.

Perguntei com autoritária expressão:

–– Que juramento foi esse, mãe Dindinha? Sua presença me assusta, pensei que me abandonara, julguei que você estivesse morta.

Ela balançou a cabeça envolta num turbante branco, sussurrou baixinho, como se estivesse contando uma notícia sagrada, inviolável, falou:

–– Mikaela vive e tem um segredo que só ela pode revelar! Eu a escondi no meu rancho, no centro da mata.

Custei a retomar meu domínio, pela surpresa da revelação.

–– Como está ela, mãe Dindinha? –– ousei indagar.

–– Bela e triste e saudosa, respondeu. E acrescentou: os ciganos não aceitaram que ela amasse um não cigano, um ganjão, eles dizem; e ficaram ensandecidos ao notar que ela estava arredondando o corpo; daí, eles a condenaram no tribunal deles, simularam a doença, a morte e o enterro, pois Mikaela, antes do julgamento, fugira da ira de seu povo. Eu a encontrei perdida, esfomeada na mata e levei-a para minha choupana.

–– Por que não me procurou antes, Dindinha?

–– Mikaela precisava de mim e não queria ser vista, por medo dos ciganos do seu clã. Temia ser morta por eles.

Num ímpeto, com o rosto afogueado de emoção, fitei Dindinha. Ela leu o meu pensamento. Pôs-se em minha frente e informou:

–– Ela está bem escondida, mas o céu está claro, é lua cheia, a claridade permite uma larga visão, e o senhor poderá encontrá-la entre duas paineiras que ficam na curva do caminho, no começo da floresta.

Em segundos estava no curral a selar o potro. Entrementes, Dindinha evaporava-se. Montei o pinga-fogo, que era dado a negaceio. Saí à procura de meu amor. Antes de a madrugada esmaecer o estendal estrelado da noite, eu galopava para Mikaela. Tomei o atalho que sai na estrada real, reto às paineiras citadas por Dindinha. Ao passar por uma curva, segurei o galope para um trote vagaroso, a fim de observar com atenção os arredores. Não me importava nada, só queria ver Mikaela. Àquela hora, a fria claridade dava uma ampla visibilidade aos ermos adjacentes ao caminho. No local aprazado, meu coração dava pulos desordenados. Percebi um vulto de mulher colado ao robusto tronco da altiva paineira. Puxei as rédeas, entrei no pasto aberto, direção ao meu amor. Passei em cerca de arame farpado sem sentir o corte nas carnes. Mikaela sabia da minha ânsia, sabia que eu vinha apanhá-la, e correu para mim, de braços abertos. Peguei-a pelo antebraço e alcei-a na garupa. Ah, o destino me pregou uma peça: para minha infelicidade, naquele instante, se deu uma revoada de maitacas, na copa da árvore. O cavalo assustou-se, upou, e Mikaela caiu, batendo a cabeça com violência extrema em pedra pontiaguda. Não deu um ai. Saltei, e em dois ou três passos estava junto a ela. Ao segurá-la pelos ombros percebi que estava mortalmente ferida.

–– Mikaela, não me deixe! Disse em seu ouvido, coberto pela longa e sedosa cabeleira, ensopada de sangue. Ela esboçou um sorriso, e o brilho dos olhos apagou. Oh! Deus, não leve minha Mikaela! Auscultei seu coração e senti tênues batidas. Que fazer? Não podia levá-la a cavalo, não tinha forças para pô-la no arreio. Aí, a Providência providenciou: levantei os olhos e vi Dindinha.

–– Ajude-me Dindinha!

Ela e eu levantamos Mikaela. Dindinha nos guiou mata adentro. Finalmente, chegamos a uma clareira onde ficava a choupana, que adivinhei ser de Dindinha. Entramos. Dentro da casa divisei, em um canto escuro, a sombra de uma criança. Descobri, então, o segredo de Mikaela: nosso filho.

Graças à minha dedicação, graças às ervas, rezas, fricções, defumações e mandingas de Dindinha, Mikaela recuperou-se. Hoje vivemos felizes, muito longe daqueles eventos e Mikaela toca guitarra só para mim.

Me voliule samurri naiaver djibe movoin (Na vida só se tem um grande amor), ditado cigano.

Asséde Paiva dedica este conto a José Fleming

Volta Redonda, 30/3/2016

 

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