Chovia torrencialmente.
Era em 1787...
A um quilômetro do Registro de Parahybuna, em um rancho
miserável de dar dó, uma fogueira acesa no piso de chão iluminava o ambiente
deitando sombras fantasmagóricas nos quatro cantos. As paredes de estuque,
cheias de buracos, deixavam passar livremente o frio, a chuva e o vento. O
rancheiro estalajadeiro examinava uma figura estranha que se confundia com as
sombras. A pessoa indigitada usava uma capa com um capuz que lhe escondia as
feições. Seus olhos brilhavam como os de satanás. No momento, ele bebericava uma
garrafa dezurrapa de casca de árvore.
Um tropeiro e seus ajudantes: o guia, o arrieiro ou
bruaqueiro e um negro forro chegavam naquela hora e abarracaram no mesmo rancho.
A tropa vinha do Rio de Janeiro. Assim que espalharam as canastras e cangalhas
pelo chão, puseram-se a conversar sobre problemas e soluções da viagem. Doze
dias se passaram desde que partiram do Porto Estrela, na falda da Serra, onde
nelas e perderam três burros, que rolaram do penhasco.
Num tripé ferventava água para o café, e o pó de café
espalhou um aroma de dar água na boca.
O rancho,
de uma simplicidade extrema: o piso era de chão batido; quatro esteios de braúna
em cada canto sustentavam as vigas de peroba; o telhado de folhas de coqueiro. O
tropeiro chefe só clama vapor pequena melhora no tempo, para seguir viagem em
direção a Curral Del Rey[1]
e às minas de ouro de Sabarabuçu, Vila Rica[2]e
Vila do Príncipe[3],
no antigo Distrito Diamantino.
Enquanto esperavam pelo café, os ajudantes mascavam fumo, e
o tropeiro chefe comia lascas de toucinho, após enfiá-los num pote de paçoca.
E o tropeiro dizia bem audível:
–– Na
cidade estão comentando sobre a insatisfação dos garimpeiros quanto ao pagamento
de impostos e falam numa tal de Derrama[4]
que está para ser decretada. Não sei o que querem, porém...esse abuso vai
acabar.
Calou-se, porque ouviram batidas na porta.
––
Capitânia[5],
ordenou o tropeiro para o negro:–– “Vai” ver quem bate!
O negro, de porte atlético,levantou-se de perto do fogo
e,com a cara muito ruim, foi abrir a porta.
Entraram cinco homens uniformizados: dois soldados, um
anspeçada, um furriel e um agaloado alferes, certamente o chefe. Dragões do rei,
em patrulha no Caminho Novo da Estrada Real.
O tropeiro levou a mão ao bacamarte, seu auxiliar segurou o
punhal no cinto, mas o visitante, o chefe, tranquilizou-os:
–– Não tenham medo, não vou fiscalizar nem prender oceis. Estou apenas querendo enxugar minhas botas ao fogo e comer
alguma coisa, com meus auxiliares. Para que tenham ideia de nossa patrulha, nós
estamos viajando há dias. Hospedamos na fazenda da Borda do Campo de José Ayres
Gomes[6],
conversamos a noite toda e ele mostrou-se simpático aos meus anseios... Depois,
descemos a Serra da Mantiqueira, prendemos e enforcamos alguns salteadores,
incluindo Montanha, o cigano chefe e seu
fidus achatis[7]
Beiju. Eles assaltavam os viajantes, à procura de ouro e de pedras preciosas. O
perigo lá é tão grande que os viandantes esperam no alto da montanha outros
viajores para descerem em grupo de dez ou vinte e enfrentar os quadrilheiros.
Acho que resolvi o problema, por hora. Mas temos outros bem mais graves... – e
murmurou uma copla muito em voga: –
Do Caeté
a Vila Rica, / É tudo ouro e cobre. / O que é nosso vão levando, /E o povo aqui
sempre pobre!
Sentaram-se ao redor do fogo;o
chefe dos milicianos,com a patente de alferes, enfiou uma acha de lenha na pira
e agitou-a, a fim de aumentar as chamas. O fogaréu elevou-se com muita
fumaça,enevoando o ambiente. Ele perguntou àquele que parecia ser o tropeiro
chefe:
–– Ocê,que vem de
Rio de Janeiro, quais são as notícias?
–– Não são boas, há agitação entre as gentes. O
Governador-Geral está tendo muito trabalho com a escravaria. Há fugas imensas de
escravos. Quilombolas se formam na floresta da Tijuca e assaltam os desavisados.
À noite ninguém pode sair, porque uma punhalada é quase certa. Se alguém pede
socorro, não recebe ajuda. Agora, estão gritando
fogo! E muitos aparecem nas janelas,
porque têm medo de incêndio. E ocê
aonde vai?
–– Eu vou ao Rio tentar obter apoio importante para nossa
causa... Suspendeu a frase,receoso de ter ido longe demais. Em boca fechada não
entra mosca.
O embuçado estremeceu ao ouvir a palavra “causa”, e sumiu no
capote.
–– Não se preocupe senhor alferes. –– É o tropeiro acalmando
todos, nós somos civis e não nos envolvemos em assuntos militares.
Então, o alferes continuou a lenga-lenga:
–– Emboraeu
tenha sido preterido na carreira militar, em favor de portugueses, não reclamo,
porém. O Rei, Deus o tenha, não olha nosso Brasil com bons olhos. Até
parece que esta terra é o seu quintal. Portugueses mandam nosso ouro para a
Corte, cortam nossas matas e levam a madeira para Lisboa. A floresta de
pau-brasil está no fim. Os impostos escorchantespelahora da morte. Não há quem
aguente o tal “quinto[8]”,“registros"
e "contagens[9]".
O Fisco régio cobra impostos sobre escravos, sobre empregos públicos, sobre
casas comerciais, dos engenhos de açúcar, da travessia de rios; além de vender
pólvora, sal e gêneros alimentícios.Nada pode ser fabricado aqui, tudo vem de
Portugal. Há um grupo
indignado nas Minas Gerais e, no Rio de Janeiro, também. Vamos fazer desta terra
um país independente, soberano.
O encapuzado derramou meia caneca de vinho ao chão e não foi
notado porque era uma sombra difusa na sala, enfumaçada.
–– Isso nunca vai acontecer, senhor alferes, contestou o
tropeiro. Suas palavras cheiram a sedição ou traição. Aqui, não há brasileiro,
nós somos portugueses de aquém--mar. O Rei é nosso pai e protetor. Somos fiéis a
ele e seus súditos mais leais.
Parou de falar, porque se exaltara e deu nova ordem ao
negro:
–– Capitânia “vai” ver se nossas bestas não fugiram do
cercado. Precisamos delas “arriadas” bem cedinho, o tempo urge.
Mais uma vez, o escravo levantou-se de péssimo humor,quando,
de novo,bateram à porta e uma voz de mulher:
–– Abram, por favor, estou ensopada e faminta!
O negro abriu a porta, e andrajosa mulher entrou, correu,sem
salamaleques para o fogo, onde se pôs a esfregar e a esquentar as mãos.
Ela tremia e teve um misto de raiva e susto ao ver os
soldados.
–– Senhores,eu estou molhada até os ossos,deem-me uma
coberta e comida, morro de fome.
De uma canastra tiraram colcha de lã, e a mulher se enroscou
mesmo molhada.
O alferes condoeu-se dela e deu-lhe um pouco do seu farnel.
Ela comia avidamente, enquanto olhava o alferes de soslaio.
–– Mulher, perguntou o alferes,o que faz nestas brenhas?
–– Eu pertenço a um grupo cigano. Eles foram emboscados e
perseguidos na Serra da Mantiqueira. Muitos foram mortos, outros fugiram para
esconderijos na floresta, enfim, para todos os lados. Euvim me escondendo aqui e
ali, comendo bicho de bambu, roendo algum
parmito, pegando as “fruta” que encontrava na beira da estrada e dormindo em
ranchos abandonados. Vou procurar o restante de meu povo amanhã. Posso ficar
aqui esta noite?
–– Pode, disse o tropeiro chefe, e como te chama mulher?
–– Joana.–– E o senhor?
–– Eu sou Joaquim... Joaquim...
E nada mais disse.
–– Que coincidência! –– disse o alferes,que ouvira o
diálogo. –– Eu também me chamo Joaquim.
E nada mais disse, nem lhe perguntaram. Aliás, pensava ter
falado demais.
E cada qual contando um causo, a noite passou. O
bruaqueiro,entrementes, se queixou de dor de dente, que não o deixava em paz.
Alguém lhe passou uma bandana sob o queixo.
O alferes,que entendia de dentes, tinha ferramentas
apropriadas. Levantou-se e mandou o bruaqueiro abrir a boca. Concluiu que nada
podia fazer, pois era uma cratera que havia naquele dente. Então, abriu sua
maletinha,pegou o estilete e futicou um pouco a gengiva inflamada. Coçou a
cabeça, pediu um copo de cachaça e deu-a ao homem para beber.
–– Vixe,eu vou ficar tonto!
–– É isso que eu quero, disse o alferes.
E deixou o homem por algum tempo, até que o álcool lhe subiu
à cabeça. Depois, pegou sua “torquês”;melhor,o boticão enferrujado, e com ele
segurou o dente cariado arrancando-o no ato.
–– Ai, ai, ai!–– Urrou o bruaqueiro.
Mas logo veio o alívio e ele pôde cochilar num restinho de
noite.
Pela manhã não chovia mais.
–– Capitânia "arreia" as bestas!
Todos se propunham a cuidar dos afazeres,quando a nômade em
retribuição ao acolhimento,pediu para ler a boa fortuna deles. Disse-lhes o que
queriam ouvir: todos iam ser ricos, casar com mulheres lindas, achar pepitas de
ouro, diamantes, esmeraldas e serem fazendeiros com muitos filhos. Quanto ao
negro, ela disse que via uma corda na mão dele.
Claro que ninguém a levou a sério.
Quando o alferes ia saindo, o tropeiro perguntou:
–– Desculpe, qual é mesmo sua graça?
––Joaquim José da Silva Xavier.
Por último, levantou-se da cadeira aquele encapuzado e
caminhou para a porta.
A cigana lhe falou:
–– O senhor não quis que eu lesse sua sorte, pode me dizer
seu nome?
Ele fez gesto de negar, fuzilou-a com os olhos, mas
aquiesceu e falou:
–– Joaquim
Silvério[10].
Ela leu a alma de bronze do vilão e estremeceu. Quando
ninguém podia ouvi-la, murmurou:
“É o destino, numa só noite conheci delator, padecente e
carrasco”.
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