MULO (leia-se mulô)

por Asséde Paiva
VR, 3/2/2008 (postado no Benficanet em 06/11/2015)

2015 acessos.

"A maioria dos ciganos acredita e teme os mule.

Apesar de os homens terem aparentemente toda a autoridade

e de fato a exercerem na vida secular

(decidindo sobre punições a membros do grupo e tratando com oficiais gadje),

são as mulheres que possuem os poderes mais sombrios e impressionantes.

Sua legitimidade reside no conhecimento dos espíritos e das curas medicinais

e, em última análise, em sua capacidade de poluir os homens.

A morte, autoridade final, é um homem (conforme observou Anne Sutherland) ,

mas só uma mulher pode afugentá-la."

(Isabel Fonseca, in Enterrem-me em pé, p. 97)

 

 

"O Mulo é uma figura parecida com vampiro. A criança nascitura torna-se mulo e cresce até alcançar oito anos; só então ele entre no país do morto. Não tem um osso no seu corpo, suas mãos não têm o dedo do meio, porque ele tem que deixá-lo na tumba. Uma vez por ano, no seu aniversário, seus companheiros aquecem-no, ele recuperará sua força. Na noite de ano novo, os mulé raptam mulheres, as quais são fervidas em enormes caldeirões de forma que desprendem seus ossos e tornam-se mulheres mulé." (In Encyclopaedia of Pallas, apud Jean-Paul Clébert, The Gypsies, p151).

 

Embora o culto da morte tenha interesse prioritário, neste ponto vou falar do vampiro cigano. Ele é chamado Mulo (plural Mulé), que significa precisamente ‘aquele que está morto’. O vampiro é, de fato, a alma de uma pessoa morta. Alguns grupos ciganos diferenciam Mulé e Suuntsé (plural de Sunto, ‘saint’), o primeiro: espíritos de homens que morreram acidentalmente, ou que fizeram por merecer tormentos no inferno, o segundo: são espíritos, habitantes do paraíso.

 

Contudo, somente os Mulé são definitivamente de importância. É indiscutível entre ciganos que os Mulé são mortos, excluindo-se todos os outros. Os ciganos não se atemorizam com os fantasmas dos não-ciganos, e nada por exemplo, os preocupa em tirar uma soneca no cemitério dos gadjê.

 

Os Mulé vivem somente à noite. Entre ciganos húngaros é costume não jogar esterco ou água quente fora da tenda ou da caravana após o sol se pôr; o Mulo que foi tocado se vingará imediatamente. Mas os Mulé também vivem até ao meio-dia, exatamente: no momento, de fato, quando o sol se vai do leste para oeste, marca o instante morto de tempo. Stendhal fala do ‘escuro’ (ou mistério) da hora do meio-dia. Para todos os casos, os espanhóis são muito sensíveis em relação a este momento crucial. Par os ciganos, durante este átimo, árvores, estrada, pequeninos objetos pertencem aos Mulé. Ao meio-dia os ciganos param de viajar, como se fosse proibido fazê-lo após o sol se pôr. Meio-dia é a hora em que a sombra não existe; nesta crença deve ser vista não só a relação psico-cerimonial com o sol, mas também o problema do ‘Duplo’. O Mulo realmente parece ser o efeito ‘Duplo’ da morte. Zanko é claro: ‘O quartel-general do Mulo’, ou o ponto de anexação é o corpo do homem morto. Sua residência é a cova ou tumba do falecido. A morte o liberou para vaguear, viajar, ir daqui para acolá, de sua base. Ele não é um defunto; ele é um homem mesmo, na forma de ‘Duplo’.

 

Assim que o galo canta, na alvorada, o Mulo retorna a sua tumba (ou quartel-general). Mas ele não deve ser levado em conta na classificação clássica de vampiro. Se ele é ainda capaz de apetite sexual e comércio carnal, ele não suga sangue de sua vítima, da maneira vulgar do sedutor Austro-húngaro de filmes sensacionalistas. A excessiva bibliografia dedicada ao vampiro previne-me para procurar o tipo exato de relação entre ele e o Mulo dos ciganos. Ainda é evidente através de toda Europa Central a horripilante importância do vampiro. Pode-se chamar de culto ao vampiro, que não deixa os ciganos indiferentes. Embora, como Kamil Erdös registrou traços claros da crença da metempsicose entre ciganos dos Cárpatos, e é no sentido do espíritus latino e do grego pneuma que o significado de Mulo deve ser procurado.

 

Mas como o Mulo atormenta os viventes? Isto essencialmente depende do grupo cigano envolvido. Entre os Kalderash de Zanco, o fantasma do marido morto poderá reaparecer à tarde, quando chegar da campa à procura de sua mulher. Ele passa a noite com ela e depois, não há prova de que foi um grande momento para ela. Em suas novelas, Maximoff diz que é na forma de uma voluptuosa moça que o Mulo induz um jovem ao suicídio. Embora o terrível papel de Mulo seja regularmente falado, eu não encontrei um exemplo desta monstruosa prática criminosa. (Idem, ibidem, p. 150/151).

 

Em Raymond Buckland, in Magia e feitiçaria dos ciganos; p. 28, lemos:

 

Mullo é a palavra usada pelos romani para designar o fantasma ou espírito, embora esse termo também possa se referir aos “mortos-vivos” ou aos vampiros. E, quando há casos assim, sua convicção é a de que existe uma forte possibilidade de que a morte do falecido tenha sido provocada por alguma influência maligna. Após ter virado mullo, a pessoa que morreu tenta encurralar aquele que lhe causou a morte. Mas, a despeito de tais crenças, os ciganos não têm a menor hesitação em pernoitar em cemitérios. Com todo o medo que têm de fantasmas, isso poderia parecer contraditório, porém, eles acreditam que só os ciganos se transformam em vampiros. Ou seja, exatamente porque nos cemitérios estão enterrados os gaujos (ou górgios), isto é, todos aqueles que não são ciganos, não há qualquer motivo para que eles temam fantasmas desses mortos.”

 

Em Tradições ocultas dos ciganos, Pierre Derlon, p. 229:

 

As gentes errantes, são geralmente corajosas e altivas, mas só o nome de Mulo basta para lhes inspirar um medo próximo ao pânico. O Mulo habita nos cemitérios. É um morto-vivo, um pouco como vampiro ou Nosferatu das lendas medievais. Durante o dia mora debaixo da terra, ao meio-dia volta-se para a campa e quando vem a noite, vagueia pelos cemitérios e arredores para encontrar uma presa. Em volta do fogo, os nômades aterrorizados contam, algumas vezes, os sinistros feitos de um dos seus antepassados.

 

Desgraçado do homem que vir o Mulo entrar na sua campa ao cantar do galo. Morrerá de morte violenta, como o Mulo e será amaldiçoado e transformado ele também em Mulo. O Mulo é pequeno, feio e se fizer amor com tua mulher a criança nascida de tais relações será filha de Mulo; a sua carne será fria, os seus olhos cinzentos, mas ninguém o saberá por que o Mulo só possuirá tua mulher durante o sono e a criança chamar-te-á “meu pai”.

Este morto-vivo (mulô) é abordado em outros livros. Citamos aqui o de Olympio Nunes que às páginas p. 271 e seguintes — O reino dos mortos. Os espíritos (Os ciganos)

 

               Os ciganos acreditam na imortalidade da alma, mas representam-na duma maneira material.

               É preciso dizer que o povo cigano ignora a natureza do espírito como realidade não-corpórea. Têm dificuldade em conceber a natureza espiritual da alma, figurando-a, por isso duma maneira corpórea. [....]

               A morada dos mortos, na mitologia cigana, nada tem de deleitável; é essencialmente uma penosa peregrinação da alma, num ambiente de terror e pavor. [....] Nesse reino a alma tem de atravessar montanhas, combater contra monstros que lhe barram a passagem, atravessar desertos de ventos gelados. É por isso que os seus parentes acendem fogueiras durante as noites seguintes ao funeral e lançam ao fogo comida, para que a lama se aqueça e se alimente.

               O morto como que se apresenta sob dois aspectos diferentes: um que é o morto na sua subjetividade imortal e no seu peregrinar; o outro que é o morto nas suas relações com os vivos, a forma sob que ele pode regressar a este mundo (a forma de animais diversos), como é o caso do Mulô e dos Vampiros. [....]

               Mulo, segundo a origem romani do termo quer dizer “morto que volta”, ou “morto-ambulante” ou melhor “morto-vivo” [....].

               O acender da fogueira no acampamento, além da função de aquecer os que a rodeiam, pretende anda afastar os Mulé, que receiam o fogo.

               É crença dos ciganos que o mulo pretende ter relações sexuais com mulheres vivas; o que acontecendo, tornará a mulher louca ou estéril ou até poderá se suicidar.

               Segundo a tradição de algumas tribos, para as raparigas poderem evitar o encontro com um mulo, há certos ritos; por exemplo, cortar o dedo médio do defunto, antes de enterrá-lo. Deste modo, quando a moça for cortejada ou apanhada fora do acampamento pelo mulo ela poderá assim reconhecê-lo e fugir.

               O mito do mulo provoca fantasmas noturnos em que surge a representação fálica do homem. Este mito permite às raparigas conservar a sua lacha (virgindade) até o casamento, que é a altura em que será raptada pelo seu pretendente. [....].

               O mulô habita nos cemitérios; é um “morto-vivo”. De dia dorme debaixo da terra, depois do meio-dia ergue-se do seu túmulo; e de noite paira sobre os cemitérios e redondezas, em procura duma presa.

               “Desgraçado daquele que viu o mulô entrar no seu túmulo, ao cantar do galo” — dizem eles; “esse morrerá de morte violenta, será maldito e tornar-se-á mulô ele também.”

               Só se pode falar do mulo durante o dia; de noite pensa-se nele, aguarda-se que ele surja, vigia-se para o evitar.[....]

               O Mulô provém dum nado-morto. Dizem que vive nas montanhas e aparece por vezes, mas esta aparição é sempre aterradora.

               Outras tribos consideram-no doutra forma: crêem na transmigração da alma dos mortos num animal (cão, gato, rã), sob a forma de espíritos maus.

 

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Para saber mais:

 

Elwood B. Trigg. Gypsy & Demons, Divinities. Seacacus: Citadel Press, 1973.

Jean-Paul Clébert. The Gypsies. London Vista Books, 1963.

Isabel Fonseca.  Enterrem-me em pé — A longa viagem dos ciganos, São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Olimpio Nunes. O povo cigano. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981.

Raymond Buckland. Magia e mistério dos ciganos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

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