"A maioria dos ciganos acredita e teme os
mule.
Apesar de os
homens terem aparentemente toda a autoridade
e de fato a
exercerem na vida secular
(decidindo sobre punições a membros do grupo e tratando com
oficiais gadje),
são as
mulheres que possuem os poderes mais sombrios e impressionantes.
Sua
legitimidade reside no conhecimento dos espíritos e das curas
medicinais
e, em última
análise, em sua capacidade de poluir os homens.
A morte,
autoridade final, é um homem (conforme observou Anne Sutherland)
,
mas só uma
mulher pode afugentá-la."
(Isabel Fonseca, in
Enterrem-me em pé, p. 97)
"O Mulo é uma figura parecida com vampiro. A criança nascitura torna-se
mulo e cresce até
alcançar oito anos; só então ele entre no país do morto. Não tem
um osso no seu corpo, suas mãos não têm o dedo do meio, porque
ele tem que deixá-lo na tumba. Uma vez por ano, no seu
aniversário, seus companheiros aquecem-no, ele recuperará sua
força. Na noite de ano novo, os
mulé raptam mulheres,
as quais são fervidas em enormes caldeirões de forma que
desprendem seus ossos e tornam-se mulheres
mulé."
(In
Encyclopaedia of Pallas, apud Jean-Paul Clébert, The Gypsies,
p151).
Embora o culto da morte tenha interesse prioritário, neste ponto
vou falar do vampiro cigano. Ele é chamado
Mulo (plural
Mulé), que significa precisamente ‘aquele que está morto’. O vampiro
é, de fato, a alma de uma pessoa morta. Alguns grupos ciganos
diferenciam Mulé e
Suuntsé (plural de
Sunto, ‘saint’), o primeiro: espíritos de homens que morreram
acidentalmente, ou que fizeram por merecer tormentos no inferno,
o segundo: são espíritos, habitantes do paraíso.
Contudo, somente os Mulé
são definitivamente de importância. É indiscutível entre ciganos
que os Mulé são mortos, excluindo-se todos os outros. Os ciganos não se
atemorizam com os fantasmas dos não-ciganos, e nada por exemplo,
os preocupa em tirar uma soneca no cemitério dos
gadjê.
Os Mulé vivem somente à noite. Entre ciganos húngaros é costume não
jogar esterco ou água quente fora da tenda ou da caravana após o
sol se pôr; o Mulo que
foi tocado se vingará imediatamente. Mas os
Mulé também vivem até
ao meio-dia, exatamente: no momento, de fato, quando o sol se
vai do leste para oeste, marca o instante morto de tempo.
Stendhal fala do ‘escuro’ (ou mistério) da hora do meio-dia.
Para todos os casos, os espanhóis são muito sensíveis em relação
a este momento crucial. Par os ciganos, durante este átimo,
árvores, estrada, pequeninos objetos pertencem aos
Mulé. Ao meio-dia os ciganos param de viajar, como se fosse proibido
fazê-lo após o sol se pôr. Meio-dia é a hora em que a sombra não
existe; nesta crença deve ser vista não só a relação
psico-cerimonial com o sol, mas também o problema do ‘Duplo’. O
Mulo realmente parece
ser o efeito ‘Duplo’ da morte. Zanko é claro: ‘O quartel-general
do Mulo’, ou o ponto
de anexação é o corpo do homem morto. Sua residência é a cova ou
tumba do falecido. A morte o liberou para vaguear, viajar, ir
daqui para acolá, de sua base. Ele não é um defunto; ele é um
homem mesmo, na forma de ‘Duplo’.
Assim que o galo canta, na alvorada, o
Mulo retorna a sua
tumba (ou quartel-general). Mas ele não deve ser levado em conta
na classificação clássica de vampiro. Se ele é ainda capaz de
apetite sexual e comércio carnal, ele não suga sangue de sua
vítima, da maneira vulgar do sedutor Austro-húngaro de filmes
sensacionalistas. A excessiva bibliografia dedicada ao vampiro
previne-me para procurar o tipo exato de relação entre ele e o
Mulo dos ciganos. Ainda é evidente através de toda Europa
Central a horripilante importância do vampiro. Pode-se chamar de
culto ao vampiro, que não deixa os ciganos indiferentes. Embora,
como Kamil Erdös registrou traços claros da crença da
metempsicose entre ciganos dos Cárpatos, e é no sentido do
espíritus latino e do
grego pneuma que o
significado de Mulo
deve ser procurado.
Mas como o Mulo atormenta os viventes? Isto essencialmente depende do grupo
cigano envolvido. Entre os Kalderash de Zanco, o fantasma do
marido morto poderá reaparecer à tarde, quando chegar da campa à
procura de sua mulher. Ele passa a noite com ela e depois, não
há prova de que foi um grande momento para ela. Em suas novelas,
Maximoff diz que é na forma de uma voluptuosa moça que o
Mulo induz um jovem ao
suicídio. Embora o terrível papel de
Mulo seja regularmente
falado, eu não encontrei um exemplo desta monstruosa prática
criminosa. (Idem, ibidem, p. 150/151).
Em Raymond
Buckland, in
Magia e feitiçaria dos
ciganos; p. 28, lemos:
“Mullo é a
palavra usada pelos romani para designar o fantasma ou espírito,
embora esse termo também possa se referir aos “mortos-vivos” ou
aos vampiros. E, quando há casos assim, sua convicção é a de que
existe uma forte possibilidade de que a morte do falecido tenha
sido provocada por alguma influência maligna. Após ter virado
mullo, a pessoa que
morreu tenta encurralar aquele que lhe causou a morte. Mas, a
despeito de tais crenças, os ciganos não têm a menor hesitação
em pernoitar em cemitérios. Com
todo o medo que têm de fantasmas, isso poderia parecer
contraditório, porém, eles acreditam que só os ciganos se
transformam em vampiros. Ou seja,
exatamente porque nos cemitérios estão enterrados os gaujos (ou
górgios), isto é, todos aqueles que não são ciganos, não há
qualquer motivo para que eles temam fantasmas desses mortos.”
Em
Tradições ocultas dos ciganos, Pierre Derlon, p. 229:
As gentes errantes, são geralmente corajosas e altivas, mas só o nome de
Mulo basta para lhes
inspirar um medo próximo ao pânico. O
Mulo habita nos
cemitérios. É um morto-vivo, um pouco como vampiro ou Nosferatu
das lendas medievais. Durante o dia mora debaixo da terra, ao
meio-dia volta-se para a campa e quando vem a noite, vagueia
pelos cemitérios e arredores para encontrar uma presa. Em volta
do fogo, os nômades aterrorizados contam, algumas vezes, os
sinistros feitos de um dos seus antepassados.
Desgraçado do homem que vir o
Mulo entrar na sua campa ao cantar do galo. Morrerá de morte
violenta, como o Mulo
e será amaldiçoado e transformado ele também em Mulo.
O Mulo
é pequeno, feio e se fizer amor com tua mulher a criança nascida
de tais relações será filha de
Mulo; a sua carne
será fria, os seus olhos cinzentos, mas ninguém o saberá por que
o Mulo só possuirá
tua mulher durante o sono e a criança chamar-te-á “meu pai”.
Este morto-vivo (mulô) é abordado em outros livros. Citamos aqui
o de Olympio Nunes que às páginas p. 271 e seguintes — O reino
dos mortos. Os espíritos (Os ciganos)
Os ciganos acreditam na
imortalidade da alma, mas representam-na duma maneira material.
É preciso dizer que o povo cigano
ignora a natureza do espírito como realidade não-corpórea. Têm
dificuldade em conceber a natureza espiritual da alma,
figurando-a, por isso duma maneira corpórea. [....]
A morada dos mortos, na mitologia
cigana, nada tem de deleitável; é essencialmente uma penosa
peregrinação da alma, num ambiente de terror e pavor. [....]
Nesse reino a alma tem de atravessar montanhas, combater contra
monstros que lhe barram a passagem, atravessar desertos de
ventos gelados. É por isso que os seus parentes acendem
fogueiras durante as noites seguintes ao funeral e lançam ao
fogo comida, para que a lama se aqueça e se alimente.
O morto como que se apresenta sob
dois aspectos diferentes: um que é o morto na sua subjetividade
imortal e no seu peregrinar; o outro que é o morto nas suas
relações com os vivos, a forma sob que ele pode regressar a este
mundo (a forma de animais diversos), como é o caso do Mulô e dos
Vampiros. [....]
Mulo, segundo a origem romani do
termo quer dizer “morto que volta”, ou “morto-ambulante” ou
melhor “morto-vivo” [....].
O acender da fogueira no
acampamento, além da função de aquecer os que a rodeiam,
pretende anda afastar os Mulé, que receiam o fogo.
É crença dos ciganos que o mulo
pretende ter relações sexuais com mulheres vivas; o que
acontecendo, tornará a mulher louca ou estéril ou até poderá se
suicidar.
Segundo a tradição de algumas
tribos, para as raparigas poderem evitar o encontro com um mulo,
há certos ritos; por exemplo, cortar o dedo médio do defunto,
antes de enterrá-lo. Deste modo, quando a moça for cortejada ou
apanhada fora do acampamento pelo mulo ela poderá assim
reconhecê-lo e fugir.
O mito do mulo provoca fantasmas
noturnos em que surge a representação fálica do homem. Este mito
permite às raparigas conservar a sua
lacha (virgindade) até
o casamento, que é a altura em que será raptada pelo seu
pretendente. [....].
O mulô habita nos cemitérios; é um
“morto-vivo”. De dia dorme debaixo da terra, depois do meio-dia
ergue-se do seu túmulo; e de noite paira sobre os cemitérios e
redondezas, em procura duma presa.
“Desgraçado daquele que viu o mulô
entrar no seu túmulo, ao cantar do galo” — dizem eles; “esse
morrerá de morte violenta, será maldito e tornar-se-á mulô ele
também.”
Só
se pode falar do mulo durante o dia; de noite pensa-se nele,
aguarda-se que ele surja, vigia-se para o evitar.[....]
O Mulô provém dum nado-morto.
Dizem que vive nas montanhas e aparece por vezes, mas esta
aparição é sempre aterradora.
Outras tribos consideram-no doutra
forma: crêem na transmigração da alma dos mortos num animal
(cão, gato, rã), sob a forma de espíritos maus.
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Para saber mais:
Elwood B.
Trigg. Gypsy & Demons,
Divinities. Seacacus: Citadel Press, 1973.
Jean-Paul
Clébert. The Gypsies.
London Vista Books, 1963.
Isabel Fonseca.
Enterrem-me
em pé — A longa viagem dos ciganos,
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Olimpio Nunes. O povo
cigano. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981.
Raymond Buckland. Magia e
mistério dos ciganos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
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