Para quem
escreve memórias, onde acaba a lembrança? Onde começa a ficção? Talvez sejam
inseparáveis. Os fatos da realidade são como pedra, tijolo –– argamassados,
virados, parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo reboco da verossimilhança
–– manipulados pela imaginação criadora.
(Pedro Nava)
Uma ciganinha ontem leu a minha sorte,
e ela me pediu para que eu não saísse de casa hoje, porque havia grande
perigo, como indicava minha linha da vida; não posso obedecer, tenho
compromisso. Não acredito em buena-dicheira
ou vidência. Sou agnóstico, não creio nas coisas materiais e/ou imateriais,
eu sou energia; tudo é. Não há destino, predestinação, salvação,
ressurreição, escatologia cristã, apocatástase, mistério do eterno retorno e
quejandos. Também não sou fervoroso defensor do livre-arbítrio, aliás, disse
um pensador: “Nosso livre-arbítrio é livre como um pássaro na gaiola.” Por
exemplo, eu gostaria de obedecer à ciganinha, contudo não vou; hoje também
vou optar pelo caminho de ferro, eu sei que posso ir pela estrada
macadamizada, mas não dá, não, porque inexiste livre-arbítrio e combinei um
encontro... Assim, minha liberdade é quase zero. No fundo, nós fazemos ou
deixamos de fazer o que nos permitem, somos dentes de uma engrenagem da qual
não podemos escapar. Somos coagidos sempre, pensamos que estamos agindo de
tal ou qual forma, porque queremos; doce engano. O
statu quo é que nos
mantém dominados e disciplinados, a cumprir uma missão desconhecida e sem
sentido. Não obstante...
Caminhamos tais qual gado no matadouro. Nada
muda, temos apenas sensação de mudar, somos formiguinhas a alimentar a
rainha em algum lugar secreto no mundo. Vou ao encontro de Mundinho. Serei
um sonho de mim mesmo? ou apenas parte desta cosmogonia, poeira astral? Nada
mais que um ajuntamento de átomos, dispostos de certa maneira, formando
células, que exercem funções diversas e me fazem pensar que existo. “Penso,
logo existo.” Balela! Eu sou um pensamento que vaga por aí. Hoje, o dia me
promete o melhor: o Sol é radioso, o meu cãozinho Til, serelepe, pede um
pouco de ração e eu me sinto leve, solto e alegre. Sim, tudo vai ser muito
bom, pois os deuses sorriem para mim, e forças invisíveis conspiram a meu
favor: meus negócios prosperam, minha namorada me ama, e meu amigo Mundinho
me espera logo ali. Mundinho é só o apelido; seu nome: Raimundo. Encostei a
porta da casa, não preciso fechar ou trancar; nada de mal acontece aqui; a
vizinhança é honesta, legal e familiar.
Vou à luta do dia a dia, afinal, os
meus fregueses não podem esperar... é um barato... eu vendo livros, o pão do
espírito, OK! Após eu ter andado uns quinhentos metros na linha do trem,
Mundinho me esperava lá adiante. Ele foi reconhecido por Til (sempre
comigo), que correu pra ele e recebeu os carinhos de sempre. Mostrou
satisfação, sacudindo o rabinho como todos os cães sacodem, ou será que o
rabo sacode o cachorro? Cumprimentei Mundinho e continuamos a andança entre
os trilhos, pisando nos dormentes aqui e ali, e chutando cascalhos. Até
peguei um deles e atirei-o no rio que passava ao lado, separado da via
permanente apenas por aleia de erva-cidreira. A pedra deu três saltos como
tainhas, antes de desaparecer no imenso redemoinho d’água. Não há bem que
sempre dure, nem mal...
De repente, meu coração travou, confrangeu e
pensei que algo estava muito errado, mas minha confiança na vida é sem
limites, eu sabia ser vencedor de demandas. Logo adiante havia a curva bem
acentuada, onde os trens reduziam a velocidade para não descarrilarem.
Após o grito de um triste-pia: “Pague-me os
dezesseis centavos que me deves faz mais de ano e meio. Tse, tse”! Mundinho
ficou estranhamente mudo (sem trocadilho), eu também dei uma parada na
conversa. Os pássaros silenciaram, o vento cessou, o calor nos abrasou; um
silêncio profundo nos envolveu. Aconteceu a desgraça: um homem,
desconhecido, pelo menos para mim, saiu de trás de um espinheiro de unhas de
gato e veio em nossa direção. Até aí, tudo certo. Ele podia caminhar para
onde quisesse... mas, sem mais nem menos, o estranho sacou o revólver e epa!
Atirou em nós: “bam-bam”! Uma bala passou rente à minha orelha esquerda; a
outra coriscou na direita. Mundinho, ah, Mundinho, deu meia-volta volver e
disparou em sentido contrário ao atirador, sendo seguido por Til, após
ligeira hesitação. Eu fiquei paralisado de surpresa, sentindo enorme friagem
da cabeça aos pés, e arrepiaram meus cabelos. O homem chegou mais e mais
perto e disse-me friamente: “Eu queria o outro, mas ele fugiu, e com você
vou acabar”.
Desabei. Sim, eu tive um desdobramento
ou dissociação: ficou a matéria saiu a energia, entrei em outra dimensão.
Deixei o corpo estirado ao chão, assisti indiferente à minha execução, ao
lado da ferrovia, como se não fosse de meu interesse. Ocorreu um fenômeno
inexplicável, mesmo. Minha desmaterialização me deu coragem imensa, não tive
medo algum e, mais ainda, tinha certeza de que nada me aconteceria; que ‘meu
assassinato’ era brincadeira de mau gosto, piada insossa. Eu sou imortal, rá,
rá, rá. O executor baixou a arma, mirando firme na minha cabeça. Puxou o
gatilho uma, duas, três, quatro vezes. Uma bala pipocou, bam! No ouvido;
outra, bam! Acima na orelha; duas outras, bam-bam! Na nuca. Morri? Não...
“graças a Deus!” Eu achava a situação hilária mesmo: o corpo “não era o
meu”, o verdadeiro eu
estava à beira da estrada, em dimensão paralela, observando o evento. Eu ria
daquilo, do grotesco acontecimento.
Depois da covardia inicial, Til se recuperou
e reapareceu feroz. Atacou meu executor, mordendo-o nas canelas, rosnando
furiosamente, até parecia possuído pelo demônio. O homem negaceava e lhe
dava pontapés, mas Til avançava sempre, indômito. Ouviu-se o apito na curva,
era uma composição que vinha em nossa direção. O homem recarregava o
trezoitão para terminar o “serviço.” Ao ouvir o trem aproximar-se, ele pulou
fora dos trilhos; antes, deu em Til mais um tiro que lhe entrou na garganta
e deve ter feito um estrago nas suas vísceras. Til lhe deu a última dentada
e foi deitar a meus pés. “Pobre e fiel amigo, me defendeu até o fim.”
Aproveitei o momento para retomar meu corpo e fugi para o matagal. Ferido,
fui bater à casa de Mundinho. Fui?... Encontrei sua mulher que pôs uma
panela cheia d’água a ferver; com certeza, para nos defender do sicário,
caso ele fosse me perseguir.
Ela não ligou muito pra mim... estranhei. Fui
ao banheiro onde me vi todo ensanguentado. Acreditei, agora, que não estava
sonhando, ou estava? Era eu? ou um avantesma? Lavei o rosto e vi nitidamente
os furos das balas na minha cabeça, na nuca e no ouvido direito. Parece que
eu estava examinando outra pessoa, um estranho para mim. Anestesiado
certamente estava. Não tinha medo, sou Thot. Evidentemente, algo suprarreal
se passava. Então, alertados chegaram os acadêmicos da escola de medicina,
que era bem perto. Levaram-me à emergência, esquadrinharam minha cabeça e
concluíram que o caso era muito grave para eles tourearem. Resolveram me
transferir para o hospital central, na cidade, onde havia mais recursos. Os
médicos da radiologia tiravam radiografias, estudavam o problema murmurando,
incrédulos: “Destruição do lóbulo direito, comprometimento do canal do
ouvido; trompas de Eustáquio rompidas surdez consequente; transfixação da
nuca no sentido longitudinal; marcas de tiros à queima-roupa, pelos
vestígios de pólvora. Milagre”. Eu não morri, nem acredito em milagres.
Plenamente consciente, em decúbito ventral, tentei tomar a radiografia das
mãos do radiologista, não consegui, mas vi os sinais de estilhaços e buracos
no couro cabeludo. As balas entraram e não saíram... mistério. Elas
desapareceram em minha cabeça. Pontos brancos, só pontos brancos marcavam a
perfuração delas em meu crânio. Onde os projéteis estavam? Apaguei e acordei
horas depois, com uma bandana na cabeça, tapando os ferimentos. Quem foi o
meu agressor? Por que atirou em mim? Seria eu vítima da trilogia: homem
errado, no lugar errado na hora errada? Aonde foi Mundinho? Em que toca se
escondeu? Quem sou eu? Perguntas que me faço, até hoje, sem respostas. Por
enquanto, estou aqui pra terminar esta novela. Após quarenta e quatro dias,
sem que me atendessem, fugi do hospital até o local do incidente e relato
para vocês a inacreditável vicissitude que vivi: a experiência quase morte
(EQM). Ah, pesadelo...
“Til vem cá, meu amigo!” Adoro um cigarrinho
de palha enquanto espero o trem, que nos levará ao céu das estrelas fixas.
Há no céu e na terra, Horácio, bem
mais coisas do que sonhou jamais vossa vã filosofia. (William
Shakespeare)