DEMONOLOGIA na visão dos ciganos

por Asséde Paiva - 05/06/2015

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Vamos abordar um assunto que até então estávamos deixando de fora, porque pensávamos que outros já o estudaram quase à exaustão. Porém, ao lermos estes tópicos no livro de Jean-Paul Clébert, in The Gypsies, constatamos que o tema citado era abordado antes, por outros, fracamente, superficialmente; decidimos por aqui, não nossa opinião, mas a de Clébert, porque ele é muito bom autor e deve ser considerado entre os melhores, em ciganologia. Ele, humildemente, pede licença, à página 145, para transcrever outro autor. Dr. Maxim Bing e nós fazemos o mesmo, portanto, o que se segue não é de nossa lavra, mas dos ciganólogos citados. Os erros e omissões ficam debitados a nossa dificuldade em traduzir castiçamente, para o português, a língua inglesa. Aos que quiserem conferir é só comprar o livro The Gypsies de Jean-Paul Clébert, Vista Books, London, 1973 e ler os títulos pertinentes.

 

DEMONOLOGY (p. 145-147)

 

Em tempos distantes, muito distantes, os ciganos da Transilvânia falam sobre a rainha das fadas, Keshalyi. Era lindíssima e morava em um palácio que ficava em enorme montanha rochosa. Chamava-se Ana. Mas, nas profundezas da terra morava um demônio, chamado Loçolico, espírito terrestre, que no princípio das coisas tinha sido homem e fora transformado em pavoroso demônio, por Satã. O rei daquelas profundezas apaixonou profundamente pela bela e pura Ana. Quando ele se apresentou, a princesa aterrorizada pela sua aparência, afastou-se com horror. Então, Loçolico atacou Keshalyi de surpresa e devorou grande número de seu povo. Estava preparando para exterminar todos, quando a princesa Ana, para salvá-los, concordou em se casar com o horrível monstro, seu rei. Mas a princesa sentia tamanha repugnância pelo marido que ela não se entregou a ele. Mergulhado em desespero, o rei que ficava andando para cima e para baixo, encontrou um sapo dourado... que o aconselhou fazer com que sua mulher comesse o cérebro de uma pêga. Logo depois a rainha cairia em sono profundo e ele poderia fazer com ela o que quisesse. O rei seguiu o conselho e assim possuiu Ana enquanto ela dormia.

 

A rainha, como esperado, deu à luz um demônio, que se chamou Melalo, com aparência de um pássaro com duas cabeças e plumagem de cor verde e suja. (Melalo é o mais horroroso dos demônios ciganos), com afiadas garras, ele rasga nossos corações e dilacera nossos corpos; com o bater de suas asas, ele atordoa sua vítima que, quando recupera do seu desfalecimento, perdeu sua lucidez. Ele (a vítima) se agita freneticamente com muita fúria e loucura. Como ele (demônio) deve seu nascimento a uma pêga, aqueles que forem atingidos pela loucura, conversam desconexos, como a pêga.

 

Depois do nascimento de Melalo, Ana continuou a rejeitar os avanços de seu marido. Mas quando Melalo cresceu, também insistiu que precisava de uma mulher. Logo ele aconselhou seu pai a cozinhar um peixe em leite de jumenta e pingar umas gotas desta poção do amor no órgão sexual de sua mulher, Ana, enquanto ela dormia e possuí-la em seguida.

 

Nove dias após esta relação, Ana pariu um demônio feminino, Lilyi, a viscosa. Ela foi a mulher de Melalo. Seu corpo era como o de peixe com cabeça de gente, e de cada lado tinha nove fios de cabelo de barba ou fios duros. Quando esses filamentos penetravam no corpo do homem, ele imediatamente contraia doença catarral.

 

O rei não podia fazer amor com sua mulher, exceto quando Melalo a punha adormecida com seus vapores. Agora, Melalo tinha muitas crianças e o rei estava ciumento disso. Melalo, inimigo do homem, desejava impedir a multiplicação do homem. Ele, contudo, concordou em adormecer sua mulher, na esperança que ela traria novos demônios no mundo, numerosos o bastante, fortes o bastante para destruir a raça humana. Em conseqüência do conselho de Melalo, o rei, comeu um lucano e um lagostim. Então, Melalo adormeceu Ana e ela pariu o demônio Tçulo.

 

Tçulo, o grosso ou barrigudo, parecendo uma pequena bola com pontas aguçadas e espinhentas. Ela penetra no corpo humano e rola dentro dele, trazendo-lhe dores violentas no baixo ventre. Ele especializou-se em torturar mulheres grávidas. Tçulo persegue constantemente sua irmã Lilyi.

 

A fim de livrar ele mesmo da importuna criatura, Melalo aconselhou seu pai a procriar uma filha que seria sua mulher. E foi assim que Tçaridyi, a abrasadora, nasceu. Ela tinha o corpo de uma minhoquinha coberta de cabelos. Quando sucedia penetrar no corpo de um homem, causava febres altas e, especialmente, febre puerperal na mulher em resguardo. Tçulo e sua mulher têm satisfação em atormentar pessoas doentes, mas raramente causam morte.

 

Sob instigação de Melalo, o rei cozinhou um rato o qual ele tinha atordoado e dele preparou uma sopa que deu a sua mulher para comer. Ela se sentiu doente e enquanto bebia água, um rato branco escapou de sua boca. Isto foi Schilalyi, a fria. Ela tem numerosos pezinhos e causa resfriado.

 

Mas quando Schilalyi decide molestar irmãos e irmãs, Melalo inspira seu pai com a idéia de comer alho no qual ele urinou previamente; então o rei visita sua mulher. Após isso, ela deu à luz a Bitoso, que tornou mulher de Schilalyi. Bitoso, o mais rápido (o que corre), é um verme com numerosas cabeças, que provoca dor de cabeça e de estômago; ele também causa perda de apetite. Suas numerosas crias provocam cólicas, chiados nos ouvidos, dores de dentes e câimbras.

 

Ana teve erupção cutânea. Melalo aconselhou-a se deixar lamber por ratos. Assim ela fez, mas um dos ratos penetrou em seu estômago. Ela de à luz a Lolmischo, o rato vermelho. Quando Lolmischo corre sobre a pele de um homem adormecido, ele fica logo coberto de eczema.

 

Ana estava extremamente infeliz por ter parido tantos monstros no mundo. Ela perguntou a Melalo o que fazer para se tornar estéril. Ele sugeriu que ela deveria se queimar até ser um monte de esterco. Ela consentiu, mas um besouro de esterco penetrou em seu corpo. Ela pariu Minceskro, que causa doenças do sangue. Minceskro é um demônio feminino. Ela casou com seu irmão Lolmischo. Eles tiveram muitas crianças. Elas causam catapora, escarlatina, sarampo etc.

 

Finalmente, Keshalyi fez Ana, caída em desespero, comer um bolo no qual ele misturara pó de cão do inferno (?), cobra em pó e cabelo de gato. E quando o rei a visitou, ela deu à luz Poreskoro, o mais terrível de todos os demônios. Ele é hermafrodita e pode se autofertilizar. Ele tem quatro cabeças de gato e quatro de cachorro e seu rabo é uma cobra com língua bifurcada. É ele e seus filhos que começam, as piores epidemias: peste bubônica, cólera etc. bem como, as mais mortais doenças parasitas.

 

O rei ficou tão consternado e aterrorizado com seus herdeiros que deu a Ana sua liberdade. Sob condição de que toda mulher de Keshalyi, ao se aproximar de 999 anos de idade, deveria ser entregue a Loçolico. Desde então, Ana mora só em um castelo inacessível entre altos penhascos. Ela aparece raramente e somente na forma de rã dourada...

 

Clébert prossegue seu estudo dando a etimologia destes demônios, mas o que registramos, por ora, satisfaz.

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Entretanto, vamos falar um pouco de Deus e o diabo, segundo leitura por nós feita de trechos do livro The gypsies (Os ciganos) de Clébert.. Sobre este autor, achamos que ele é um dos grandes ciganólogos e reconhecido como magister dixit, por ser eqüidistante: não faz apologia, não faz acusações, apenas registra o que pensa e sabe ser certo. Às páginas 134/135, vemos o seguinte: Os ciganos acreditam em somente um Deus: o Del [...] Parece que devemos encara o padrão monoteísta. O Del é tudo: o céu (o Paraíso), fogo, chuva; assim o céu é Deus. (Mas, por outro lado, água não é Deus)... O Del é o princípio do bem, Beng, do mal; ambos igualmente poderosos, incessantemente combatendo um contra o outro. Estes princípios não são abstratos, ao contrário são materializados em elementos da natureza, que constituem para eles uma espécie de igreja universal. Aqui se vê influência do zoroastrismo ou dualismo/maniqueísmo (outros elementos serão vistos e nos permitem pensar assim). Há conexão com mitos do antigo Irã, por exemplo, Dev representa no masdeismo deuses do mal, enquanto celestiais duplos, de bons seres, são chamados Fravahr — que nos lembra o termo cigano de phral, significando ‘irmão’. O mundo não foi criado por Deus, mas ele criou o homem. Ele competiu com o diabo fazendo duas estatuetas de terra (papusha). O diabo (o mal), moldou-as em forma de homem e mulher, Deus soprou nelas. Assim, foi o nascimento de Adão e Eva. Damo e Yehwah, termos muito próximos dos hebreus. Sabemos que a lenda da criação do homem na Terra é universal. Mas o fato de que Beng (o diabo) e Deus colaboraram é tipicamente maniqueísta...

 

Para saber mais:

Elwood B. Trigg. Gypsy & Demons, Divinities. Seacacus: Citadel Press, 1973.

Jean-Paul Clébert. The Gypsies. London Vista Books, 1963.

Olimpio Nunes. O povo cigano. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981.

Raymond Buckland. Magia e mistério dos ciganos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

 

Asséde Paiva

Escrito em 3/2/2008

 
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