Vamos abordar um assunto que até então estávamos deixando de
fora, porque pensávamos que outros já o estudaram quase à
exaustão. Porém, ao lermos estes tópicos no livro de Jean-Paul
Clébert, in The Gypsies,
constatamos que o tema citado era abordado antes, por outros,
fracamente, superficialmente; decidimos por aqui, não nossa
opinião, mas a de Clébert, porque ele é muito bom autor e deve
ser considerado entre os melhores, em ciganologia. Ele,
humildemente, pede licença, à página 145, para transcrever outro
autor. Dr. Maxim Bing e nós fazemos o mesmo, portanto, o que se
segue não é de nossa lavra, mas dos ciganólogos citados. Os
erros e omissões ficam debitados a nossa dificuldade em traduzir
castiçamente, para o português, a língua inglesa. Aos que
quiserem conferir é só comprar o livro
The Gypsies de
Jean-Paul Clébert, Vista Books, London, 1973 e ler os títulos
pertinentes.
DEMONOLOGY (p. 145-147)
Em tempos distantes, muito distantes, os ciganos da Transilvânia
falam sobre a rainha das fadas,
Keshalyi. Era
lindíssima e morava em um palácio que ficava em enorme montanha
rochosa. Chamava-se Ana. Mas, nas profundezas da terra morava um
demônio, chamado Loçolico, espírito terrestre, que no princípio das coisas tinha sido
homem e fora transformado em pavoroso demônio, por Satã. O rei
daquelas profundezas apaixonou profundamente pela bela e pura
Ana. Quando ele se apresentou, a princesa aterrorizada pela sua
aparência, afastou-se com horror. Então,
Loçolico atacou
Keshalyi de surpresa e
devorou grande número de seu povo. Estava preparando para
exterminar todos, quando a princesa Ana, para salvá-los,
concordou em se casar com o horrível monstro, seu rei. Mas a
princesa sentia tamanha repugnância pelo marido que ela não se
entregou a ele. Mergulhado em desespero, o rei que ficava
andando para cima e para baixo, encontrou um sapo dourado... que
o aconselhou fazer com que sua mulher comesse o cérebro de uma
pêga. Logo depois a rainha cairia em sono profundo e ele poderia
fazer com ela o que quisesse. O rei seguiu o conselho e assim
possuiu Ana enquanto ela dormia.
A rainha, como esperado, deu à luz um demônio, que se chamou
Melalo, com aparência
de um pássaro com duas cabeças e plumagem de cor verde e suja. (Melalo
é o mais horroroso dos demônios ciganos), com afiadas garras,
ele rasga nossos corações e dilacera nossos corpos; com o bater
de suas asas, ele atordoa sua vítima que, quando recupera do seu
desfalecimento, perdeu sua lucidez. Ele (a vítima) se agita
freneticamente com muita fúria e loucura. Como ele (demônio)
deve seu nascimento a uma pêga, aqueles que forem atingidos pela
loucura, conversam desconexos, como a pêga.
Depois do nascimento de
Melalo, Ana continuou a rejeitar os avanços de seu marido.
Mas quando Melalo
cresceu, também insistiu que precisava de uma mulher. Logo ele
aconselhou seu pai a cozinhar um peixe em leite de jumenta e
pingar umas gotas desta poção do amor no órgão sexual de sua
mulher, Ana, enquanto ela dormia e possuí-la em seguida.
Nove dias após esta relação, Ana pariu um demônio feminino, Lilyi, a viscosa. Ela
foi a mulher de Melalo.
Seu corpo era como o de peixe com cabeça de gente, e de cada
lado tinha nove fios de cabelo de barba ou fios duros. Quando
esses filamentos penetravam no corpo do homem, ele imediatamente
contraia doença catarral.
O rei não podia fazer amor com sua mulher, exceto quando
Melalo a punha
adormecida com seus vapores. Agora,
Melalo tinha muitas
crianças e o rei estava ciumento disso.
Melalo, inimigo do homem, desejava impedir a multiplicação do homem.
Ele, contudo, concordou em adormecer sua mulher, na esperança
que ela traria novos demônios no mundo, numerosos o bastante,
fortes o bastante para destruir a raça humana. Em conseqüência
do conselho de Melalo, o rei, comeu um lucano e um lagostim. Então,
Melalo adormeceu Ana e
ela pariu o demônio Tçulo.
Tçulo, o grosso
ou barrigudo, parecendo uma pequena bola com pontas aguçadas e
espinhentas. Ela penetra no corpo humano e rola dentro dele,
trazendo-lhe dores violentas no baixo ventre. Ele
especializou-se em torturar mulheres grávidas.
Tçulo persegue
constantemente sua irmã
Lilyi.
A fim de livrar ele mesmo da importuna criatura,
Melalo aconselhou seu
pai a procriar uma filha que seria sua mulher. E foi assim que
Tçaridyi, a
abrasadora, nasceu. Ela tinha o corpo de uma minhoquinha coberta
de cabelos. Quando sucedia penetrar no corpo de um homem,
causava febres altas e, especialmente, febre puerperal na mulher
em resguardo. Tçulo
e sua mulher têm satisfação em atormentar pessoas doentes, mas
raramente causam morte.
Sob instigação de Melalo,
o rei cozinhou um rato o qual ele tinha atordoado e dele
preparou uma sopa que deu a sua mulher para comer. Ela se sentiu
doente e enquanto bebia água, um rato branco escapou de sua
boca. Isto foi Schilalyi,
a fria. Ela tem numerosos pezinhos e causa resfriado.
Mas quando Schilalyi decide molestar irmãos e irmãs,
Melalo inspira seu pai com a idéia de comer alho no qual ele urinou
previamente; então o rei visita sua mulher. Após isso, ela deu à
luz a Bitoso, que
tornou mulher de Schilalyi.
Bitoso, o mais rápido (o que corre), é um verme com numerosas
cabeças, que provoca dor de cabeça e de estômago; ele também
causa perda de apetite. Suas numerosas crias provocam cólicas,
chiados nos ouvidos, dores de dentes e câimbras.
Ana teve erupção cutânea.
Melalo aconselhou-a se deixar lamber por ratos. Assim ela
fez, mas um dos ratos penetrou em seu estômago. Ela de à luz a
Lolmischo, o rato
vermelho. Quando Lolmischo
corre sobre a pele de um homem adormecido, ele fica logo coberto
de eczema.
Ana estava extremamente infeliz por ter parido tantos monstros
no mundo. Ela perguntou a
Melalo o que fazer para se tornar estéril. Ele sugeriu que ela
deveria se queimar até ser um monte de esterco. Ela consentiu,
mas um besouro de esterco penetrou em seu corpo. Ela pariu
Minceskro, que causa
doenças do sangue.
Minceskro é um demônio feminino. Ela casou com seu irmão
Lolmischo. Eles tiveram muitas crianças. Elas causam catapora,
escarlatina, sarampo etc.
Finalmente, Keshalyi fez Ana, caída em desespero, comer um bolo no qual ele
misturara pó de cão do inferno (?), cobra em pó e cabelo de
gato. E quando o rei a visitou, ela deu à luz
Poreskoro, o mais
terrível de todos os demônios. Ele é hermafrodita e pode se
autofertilizar. Ele tem quatro cabeças de gato e quatro de
cachorro e seu rabo é uma cobra com língua bifurcada. É ele e
seus filhos que começam, as piores epidemias: peste bubônica,
cólera etc. bem como, as mais mortais doenças parasitas.
O rei ficou tão consternado e aterrorizado com seus herdeiros
que deu a Ana sua liberdade. Sob condição de que toda mulher de
Keshalyi, ao se
aproximar de 999 anos de idade, deveria ser entregue a
Loçolico. Desde então, Ana mora só em um castelo inacessível entre
altos penhascos. Ela aparece raramente e somente na forma de rã
dourada...
Clébert prossegue seu estudo dando a etimologia destes demônios,
mas o que registramos, por ora, satisfaz.
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Entretanto, vamos falar um pouco de
Deus e o
diabo, segundo leitura por nós feita de trechos do livro
The gypsies (Os
ciganos) de Clébert.. Sobre este autor, achamos que ele é um dos
grandes ciganólogos e reconhecido como
magister dixit, por
ser eqüidistante: não faz apologia, não faz acusações, apenas
registra o que pensa e sabe ser certo. Às páginas 134/135, vemos
o seguinte: Os ciganos acreditam em somente um Deus:
o Del [...] Parece que
devemos encara o padrão monoteísta.
O Del é tudo: o céu (o
Paraíso), fogo, chuva; assim o céu é Deus. (Mas, por outro lado,
água não é Deus)... O Del
é o princípio do bem, Beng,
do mal; ambos igualmente poderosos, incessantemente combatendo
um contra o outro. Estes princípios não são abstratos, ao
contrário são materializados em elementos da natureza, que
constituem para eles uma espécie de igreja universal. Aqui se vê
influência do zoroastrismo ou dualismo/maniqueísmo (outros
elementos serão vistos e nos permitem pensar assim). Há conexão
com mitos do antigo Irã, por exemplo,
Dev representa no
masdeismo deuses do mal, enquanto celestiais duplos, de bons
seres, são chamados
Fravahr — que nos lembra o termo cigano de
phral, significando
‘irmão’. O mundo não foi criado por Deus, mas ele criou o homem.
Ele competiu com o diabo fazendo duas estatuetas de terra (papusha).
O diabo (o mal), moldou-as em forma de homem e mulher, Deus
soprou nelas. Assim, foi o nascimento de Adão e Eva.
Damo e
Yehwah, termos muito
próximos dos hebreus. Sabemos que a lenda da criação do homem na
Terra é universal. Mas o fato de que Beng (o
diabo) e
Deus colaboraram é
tipicamente maniqueísta...
Para saber mais:
Elwood B. Trigg.
Gypsy & Demons, Divinities.
Seacacus: Citadel Press, 1973.
Jean-Paul
Clébert. The Gypsies.
London Vista Books, 1963.
Olimpio Nunes. O povo
cigano. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981.
Raymond Buckland. Magia e
mistério dos ciganos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
Asséde Paiva
Escrito em
3/2/2008
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