Este é um personagem singular de que vale a pena
escrever alguma coisa. De fato, ele é figura que andou pelas trilhas do
Brasil de antanho e de certa forma ajudou a implementar o progresso e a
conquistar novas terras, alargando as fronteiras do país, desde os
tempos coloniais e do império dos dois Pedro. Difícil é saber com
segurança a raça/etnia a que pertenciam estes homens. Penso que a todas,
especialmente portugueses e brasileiros, a despeito de uns e outros
serem de outras etnias. Mas vamos primeiramente definir comboieiro.
Olhando Dicionário Houaiss escolhemos a primeira e terceira acepções do
verbete que nos interessa.
Comboieiro — adjetivo e substantivo masculino
1 que ou o que combóia
3 Regionalismo: Amazônia,
dono de comboio de bestas e/ou seu condutor.
Que nos perdoe Houaiss,
mas comboieiro é termo usual em todo território nacional, e nos velhos
tempos era aquele que comboiava escravos do norte, nordeste e do sul
para as minas gerais.
A mais antiga referência
ao verbete comboieiro
encontramos no livro Memórias do
distrito diamantino, de
Joaquim Felício dos Santos:
P. 61 — Os comboieiros, a
pretexto de venderem escravos, facilmente obtinham licença para entrarem
nas terras demarcadas. Não se refletiu que a homens já habituados ao
abominável comércio da carne humana não repugnaria qualquer outra
especulação ilícita e proibida. Foram eles os maiores contrabandistas
dos anos 1743 e 1744. Vendiam na demarcação os escravos que traziam, e o
produto era empregado em diamantes que compravam; e tão certos estavam
deste negócio, que de antemão participavam sua vinda para seus
fregueses, para que eles se preparassem. Esta fraude foi descoberta com
a prisão de um deles, no ano de 1745, que levava consigo 206 oitavas de
diamantes. Este fato produziu grande sensação em Tijuco, tendo o
comboieiro denunciado todas as pessoas, com quem havia comerciado
diamantes...
P. 62 — Como um caso
particular de abuso logo dava origem a uma proibição geral, cominatória,
publicou-se o bando de 29 de outubro de 1745, ordenando-se que fossem
logo despejados do distrito todos os comboieiros que nele se achassem;
foi proibida sua entrada dentro das terras demarcadas e designada a vila
do Príncipe como o único lugar em que poderiam residir, e onde os
compradores de escravos deviam ir fazer o seu negócio; a cobrança do que
se lhes devia no Tijuco só a poderiam fazer por procuradores, ou
deveriam recorrer ao fiscal daquela vila...
P. 260 — A dívida do
comboieiro era o eterno pesadelo do mineiro. O comboieiro era o judeu
usurário, inexorável, desumano, que lhe arrancava o último real, e
lançava-o na miséria. O mineiro temia e fugia do maldito traficante de
carne humana, hediondo vampiro que lhe sugava a fortuna; mas afinal a
necessidade, ou novas esperanças o lançavam em suas garras. — Joaquim
Felício adiciona: — Em uma exposição, que possuímos, manuscrita, feita à
coroa sobre o estado nas Minas por José da Costa e Souza Rabello, lê-se
o seguinte:
P. 260 — São os
comboieiros aqueles que aos portos da marinha costumam ir buscar
escravos para os vender nas Minas, aos mineiros, roceiros e mais
habitantes delas. Custam os melhores escravos nos portos de 100$000 até
120$000 rs., fazem de despesas de direitos e sustento na viagem 20$000
rs. O modo porque os vendem é fiado por dois anos de 180 até 200 oitavas
de ouro em pó (de 216$000 a 240$000 rs.), ou em dois pagamentos iguais
de ano a ano. Não tomam outra informação para venderem mais do que, se o
comprador que quer comprar o escravo, tem ao menos outro pago; e sendo
dois melhor...
P. 261 — Deste modo
reduzem os comboieiros a seu poder uma grande parte do ouro, que se
extrai nas Minas, e quase sempre os transportam para os portos de
marinha, a fim de lucrarem o quinto, e para isso os convida o largo dos
sertões que é impossível vedar-se por maior cuidado e vigilância que
haja; e em passando do distrito das Minas, estão seguros de não os
poderem confiscar, como a experiência tem largamente demonstrado. E como
dentro do distrito das Minas lhes é permitido terem ouro em pó, e os
caminhos são infinitos, com facilidade e sem risco algum o passam, o que
se prova com os poucos confiscos que se tem feito, e do muito ouro que
se tem transportado, como todos sabem”.
Vejamos alguns estudos
realizados por Stanley J. Stein em seu livro
Vassouras, um
município brasileiro do café,
1850-1900, editados pela Nova Fronteira em 1985.
“poucos foram os
negociantes de escravos que não acumularam uma fortuna colossal”. Apud
Ferreira Soares, Crise comercial.
Os mascates de escravos
(comboieiros) levavam freqüentemente seus grupos do mercado do Rio para
vender diretamente a fazendeiros de Vassouras....
Ao contrário de alguns
fazendeiros ricos que tinham tempo e dinheiro para irem a o Rio adquirir
escravos, muitos fazendeiros dependiam de homens que ganhavam a vida
comprando e vendendo escravos pela região, assim como daqueles que
tinham contato os mercados do Rio,
os comissários e os tropeiros.
Fica evidente, que os
negociantes de escravos eram:
comboieiros, comissários e tropeiros. Assim nos ensina Stein, às pp.
102-103, supra.
Transcreve-se diálogo de
um comboieiro e um fazendeiro de Vassouras, tal qual registrado no livro
O Brasil é o vale, de Paulo
Lamego (Gráfica Estadão, 2003, p. 88-90).
Muitos intermediários,
como eram chamados estes traficantes interprovinciais, fizeram fortunas
em pouco tempo. Viajavam ao nordeste, faziam suas compras e vinham
oferecê-las à porta das fazendas. Desciam em comboios de cinqüenta cem
ou mais cativos, por terra ou por mar, em navios costeiros.
No caminho à nova morada,
escravos nordestinos andavam em filas indianas, ladeados pelos
condutores dois ou mais, conforme o número de cativos. A cavalo ia o
capataz armado de espingarda de longo alcance, seguido do mercador
também em sua montaria.
Os “baianos”, como se
denominavam os escravos mestiços procedentes do nordeste, eram
constituídos da miscigenação de brancos índios e pretos, através
cruzamentos de várias gerações. Fortes e inteligentes eram, porém, pouco
dóceis, e causavam certos conflitos quando misturados com antigos
escravos cafeeiros de procedência africana.
O embaixador Raul
Fernandes conta em poucas linhas a cena de negociação entre um desses
intermediários e um senhor rural: “vi um dos últimos comboios de
escravos que andaram a desfilar na região. O dono do comboio apeou em
frente ao portão da fazenda, atravessou o jardim, onde um repuxo torcia
no ar, e desfazia a espiral dum fio d’água, e descobrindo-se diante do
fazendeiro, propôs-lhe o horrendo negócio.”
— Peças de primeira
ordem. Iguais a essas o norte não mandaria mais...
Negaceando, o agricultor
alegava não ter necessidade; que os preços andavam exorbitantes.
Mas de pé, sob o
alpendre, seu olhar passava alto sobre a cabeça do negreiro, e percorria
interessado, a linha de escravos enfileirados na estrada.
O outro, esperto, gritou
ao capataz:
— Êh! Jerônimo! Manda
aqui o Cipriano.
Um fula, entre vinte e
cinco e trinta anos destacou-se da formatura, penetrou no jardim,
caminhou de olhos baixos para o alpendre, chegando ao primeiro degrau da
escada, e atirou-se de joelhos ao pé do fazendeiro, suplicando-lhe.
— Abra a boca! Ordenou o
negreiro.
O cativo habituado a este
gesto e sabendo da intenção, mostrou a boca como a um dentista; sólida,
bela, sem sombra de cárie, uma sadia coloração de marfim novo.
— Veja V. Ex.a que são
perfeitos, disse o negreiro.
E arregaçando, de leve,
as calças de algodão cru vestidas pelo negro descobriu as canelas finas,
nervosas, com dum cavalo de boa raça.
— boa marca, senhor!
Ligeiro como um veado.
Seguiu-se este breve
diálogo:
— Qual é o preço?
— Três contos.
— Está louco! Isto é um
despropósito.
— Garanto a V. Ex.a que
não ganho nada. É preço de amigo.
— Quer dois contos?
— Dois contos e
quinhentos, para servir V. Ex.a.
— Não! Dou dois contos e
volto uma égua de oito anos de cria.
— Vá lá! Está fechado.
Inimaginável um diálogo assim com cigano.
Ciganos seriam expulsos imediatamente pelo fazendeiro.
Em seqüência, vejamos o
livro O Vale do Paraíba de
Eloy de Andrade, escrito em 1989, retratando a experiência vivida por
seu pai, médico de partido, por volta de 1842/43. Observa-se que o pai
do autor foi testemunha ocular dos acontecimentos. Mas vejamos o que ele
diz sobre comboios às páginas 95 e 96:
Desciam os comboios de
oitenta, cem, duzentos ou mais por terra ou via marítima. Os negociantes
da estranha mercadoria iam ao Norte, faziam suas compras e vinham
oferecê-la à porta das fazendas, vendendo a dinheiro à vista, ou, se o
fazendeiro era conceituado, de reconhecida probidade, a prazo de um a
dois anos.
Alguns desses
intermediários viveram seus últimos dias na riqueza, portadores de
mercês honoríficas — comendadores, barões — quando eram porventura
acusados de terem praticado o torpe comércio, defendiam-se dizendo que
eram escravos postas à venda e que, assim, se não fossem eles, outros
corretores haveriam de aparecer entre vendedor e comprador e que tudo
resultaria na mesma coisa. Sendo o negócio rendoso, caiu, por fim, nas mãos dos judeus.
(grifamos)
Um livro de Júnia
Ferreira furtado Homens de negócio (Hucitec, 1999), nos diz à página 266:
Apesar da pouca
especialização, os comboieiros eram os que viviam prioritariamente, de
transporte de negros do litoral para as Minas. Mas também eles levavam
outras mercadorias...
E à p. 270, ela nos diz:
Os plantéis verificados
entre os comboieiros eram bem maiores do que entre outros comerciantes
volantes, variando entre catorze e dezessete, pois comerciar negros era
o seu viver.
Escarafunchando um pouco
mais vamos encontrar o verbete
comboieiro assim definido no dicionário da escravidão de Alaôr
Eduardo Scisínio (p.100):
Comboieiro — adj. e s.m.
— 1. Diz-se de ou indivíduo que trazia escravos como contrabando. 2.
Vendedor itinerante ou agente de escravos.
Na série
Estudos Históricos, de Júnia Ferreira Furtado, sob o título
Homens de negócio, a
interiorização da metrópole e do
comércio nas minas setecentistas, encontramos em várias páginas
referências aos comboieiros, faremos alguns excertos:
O comércio de escravos
envolvia grandes comboieiros que vinham dos portos do Rio de Janeiro e
Bahia com carregamentos para vender nas Minas. Vários escravos já vinham
encomendados por moradores nas Minas que pagavam adiantado, outros eram
arrematados pelos comboieiros para pagamento da comissão de pessoas que
lhes tinham financiado a empreitada. Em 1726, Manuel Ferreira Leal
descia pelo caminho velho com um carregamento de dezesseis escravos...
(p. 194).
Apesar da pouca
especialização, os comboieiros eram os que viviam prioritariamente, do
transporte de negros do litoral para as Minas. Mas também eles levavam
outras mercadorias.... (p. 266)
O quadro 12 [do livro da
autora citada] permitiu perceber que esses condutores e comboieiros
eram, em sua maioria, portugueses, brancos, de poucas posses, e cinco
(50%) possuíam escravos. Os plantéis verificados entre os comboieiros
eram bem maiores do que entre outros comerciantes volantes, variando
entre catorze e dezessete, pois comerciar negros era o seu viver.
(p.267).
Finalmente,
Beaurepaire-Rohan em seu
Dicionário
de vocábulos brasileiros, publicado em 1989, nos dá essas
definições, à página 94:
Comboieiro,
s.m. (Alagoas, Piauhy, Ceará) condutor de um comboio.
Comboio,
s.m. (provs. do N.) espécie de caravana composta de bestas de carga,
para o transporte de mercadorias, e a que nas províncias meridionais
chamam Tropa. // Em Mato-Grosso, Minas-Gerais e Goiás, dava-se o nome de
Comboio a uma leva de Africanos boçais.
E assim encerramos este
trabalho com a pergunta: Quem
disse que os ciganos foram comboieiros???? Não há nada, nem
indícios, ou registros e/ou provas, que nos indiquem que exerceram esse
mister.
Você já viu um cigano
seqüestrador?
Ou assaltante de bancos?
Ou narcotraficante?
Já viu criança ou velho
cigano abandonado?
Os ciganos hoje (como nos
velhos tempos) são, em sua maioria, pobres e honestos. Espertos, sim!
Leitores(as) de sorte, sim! Vendedores de metais e pequenos aparelhos
elétricos, sim! Circenses, sim! Cesteiros, sim! Artistas, sim!
Sucateiros, barganhistas, sim! Pedintes, sim! Mas não são bandidos! O
modo de vida cigano é incompatível com o do
comboieiro. Cigano é
gregário, comboieiro é escoteiro; cigano passa pelos caminhos, em eterna
ida e, muitas vezes, não volta mais ao mesmo lugar. Pergunta-se: Como
ele venderia escravo a prestação? Como ele receberia prestações? Cigano
acampa com sua família: avós, pais, filhos, tias tios, a criançada e
parentes outros; é toda a família reunida (É o que chamam grupo, clã,
tribo ou kumpanhia). Cigano fica longe dos não ciganos, não se misturam,
querem coexistência pacífica, entretanto são escorraçados. Vivaldo
Coaracy, grande escritor do passado, em seu livro
Memórias da cidade do Rio de Janeiro, nos fala dos pobres ciganos e
de seus casebres, pra lá da rua da Vala, em nos pântanos pestilentos.
Gilberto Freire, também em
Sobrados e Mocambos, registra as choupanas ciganas. Então
perguntamos aqui: Como pobres ciganos compravam escravos? Com que
dinheiro? Roubavam? Talvez... para sobrevivência, mas temos depoimento
de escravo que se pôs nas mãos de um cigano, pedindo para ser vendido a
um patrão menos feroz. Ora, ora, se um ou outro cigano eventualmente,
comerciava escravos é porque esse era o negócio de todos viventes
naquela época, no Brasil. Até escravo comerciava escravo, e negros
levavam o pai e mãe para vendê-los. Os pesquisadores de hoje, que perdem
seu precioso tempo e dinheiro da nação, poderiam redirecionar suas
pesquisas e investigar os grandes traficantes. As listas desses
traficantes de carne humana estão na Biblioteca Nacional (também as
tenho), no Arquivo Nacional (ambos no Rio de Janeiro) e na Biblioteca da
Torre do Tombo, em Portugal. Façam levantamentos das carreiras de
Elias Antônio Lopes, o traficante que doou uma chácara ao príncipe
regente (hoje museu,
em São Cristóvão
— Rio); Antônio Gomes Barroso e irmão; do comendador Joaquim José de
Souza Breves[1]
(o que tinha fazenda de engorda de escravos e centro de reprodução);
falem de José Inácio Vaz Vieira; do Xaxá[2]
Francisco Félix de Souza (baiano, que indo para África se tornou um dos
homens mais ricos do mundo e chegou a possuir 120 milhões de dólares, lá
pelo início do séc. XIX, com exportação de escravos); falem sobre o rei
de Daomé (o Dadá), que veio ao Brasil duas vezes (em 1805 e 1811)
negociar exclusividade na exportação de seus irmãos para cá; falem,
falem, de outros, muitos outros. E... Deixem os ciganos
em paz... Pois...
O
Cristo cigano continua sangrando até hoje!
FIM
|