COMBOIEIRO (de escravos)
Atenção: amigos e amigas; no fim, haverá uma pergunta!!!!

 
V
ocê vai saber quem foram os comboieiros...


por Asséde Paiva - 25/03/2015

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Este é um personagem singular de que vale a pena escrever alguma coisa. De fato, ele é figura que andou pelas trilhas do Brasil de antanho e de certa forma ajudou a implementar o progresso e a conquistar novas terras, alargando as fronteiras do país, desde os tempos coloniais e do império dos dois Pedro. Difícil é saber com segurança a raça/etnia a que pertenciam estes homens. Penso que a todas, especialmente portugueses e brasileiros, a despeito de uns e outros serem de outras etnias. Mas vamos primeiramente definir comboieiro. Olhando Dicionário Houaiss escolhemos a primeira e terceira acepções do verbete que nos interessa.

 

Comboieiro — adjetivo e substantivo masculino

 

1 que ou o que combóia

3 Regionalismo: Amazônia, dono de comboio de bestas e/ou seu condutor.

 

Que nos perdoe Houaiss, mas comboieiro é termo usual em todo território nacional, e nos velhos tempos era aquele que comboiava escravos do norte, nordeste e do sul para as minas gerais.

 

A mais antiga referência ao verbete comboieiro encontramos no livro Memórias do distrito diamantino, de Joaquim Felício dos Santos:

 

P. 61 — Os comboieiros, a pretexto de venderem escravos, facilmente obtinham licença para entrarem nas terras demarcadas. Não se refletiu que a homens já habituados ao abominável comércio da carne humana não repugnaria qualquer outra especulação ilícita e proibida. Foram eles os maiores contrabandistas dos anos 1743 e 1744. Vendiam na demarcação os escravos que traziam, e o produto era empregado em diamantes que compravam; e tão certos estavam deste negócio, que de antemão participavam sua vinda para seus fregueses, para que eles se preparassem. Esta fraude foi descoberta com a prisão de um deles, no ano de 1745, que levava consigo 206 oitavas de diamantes. Este fato produziu grande sensação em Tijuco, tendo o comboieiro denunciado todas as pessoas, com quem havia comerciado diamantes...

 

P. 62 — Como um caso particular de abuso logo dava origem a uma proibição geral, cominatória, publicou-se o bando de 29 de outubro de 1745, ordenando-se que fossem logo despejados do distrito todos os comboieiros que nele se achassem; foi proibida sua entrada dentro das terras demarcadas e designada a vila do Príncipe como o único lugar em que poderiam residir, e onde os compradores de escravos deviam ir fazer o seu negócio; a cobrança do que se lhes devia no Tijuco só a poderiam fazer por procuradores, ou deveriam recorrer ao fiscal daquela vila...

 

P. 260 — A dívida do comboieiro era o eterno pesadelo do mineiro. O comboieiro era o judeu usurário, inexorável, desumano, que lhe arrancava o último real, e lançava-o na miséria. O mineiro temia e fugia do maldito traficante de carne humana, hediondo vampiro que lhe sugava a fortuna; mas afinal a necessidade, ou novas esperanças o lançavam em suas garras. — Joaquim Felício adiciona: — Em uma exposição, que possuímos, manuscrita, feita à coroa sobre o estado nas Minas por José da Costa e Souza Rabello, lê-se o seguinte:

 

P. 260 — São os comboieiros aqueles que aos portos da marinha costumam ir buscar escravos para os vender nas Minas, aos mineiros, roceiros e mais habitantes delas. Custam os melhores escravos nos portos de 100$000 até 120$000 rs., fazem de despesas de direitos e sustento na viagem 20$000 rs. O modo porque os vendem é fiado por dois anos de 180 até 200 oitavas de ouro em pó (de 216$000 a 240$000 rs.), ou em dois pagamentos iguais de ano a ano. Não tomam outra informação para venderem mais do que, se o comprador que quer comprar o escravo, tem ao menos outro pago; e sendo dois melhor...

 

P. 261 — Deste modo reduzem os comboieiros a seu poder uma grande parte do ouro, que se extrai nas Minas, e quase sempre os transportam para os portos de marinha, a fim de lucrarem o quinto, e para isso os convida o largo dos sertões que é impossível vedar-se por maior cuidado e vigilância que haja; e em passando do distrito das Minas, estão seguros de não os poderem confiscar, como a experiência tem largamente demonstrado. E como dentro do distrito das Minas lhes é permitido terem ouro em pó, e os caminhos são infinitos, com facilidade e sem risco algum o passam, o que se prova com os poucos confiscos que se tem feito, e do muito ouro que se tem transportado, como todos sabem”.

 

Vejamos alguns estudos realizados por Stanley J. Stein em seu livro Vassouras, um município brasileiro do café, 1850-1900, editados pela Nova Fronteira em 1985.

 

“poucos foram os negociantes de escravos que não acumularam uma fortuna colossal”. Apud Ferreira Soares, Crise comercial.

 

Os mascates de escravos (comboieiros) levavam freqüentemente seus grupos do mercado do Rio para vender diretamente a fazendeiros de Vassouras....

 

Ao contrário de alguns fazendeiros ricos que tinham tempo e dinheiro para irem a o Rio adquirir escravos, muitos fazendeiros dependiam de homens que ganhavam a vida comprando e vendendo escravos pela região, assim como daqueles que tinham contato os mercados do Rio, os comissários e os tropeiros.

 

Fica evidente, que os negociantes de escravos eram: comboieiros, comissários e tropeiros. Assim nos ensina Stein, às pp. 102-103, supra.

 

Transcreve-se diálogo de um comboieiro e um fazendeiro de Vassouras, tal qual registrado no livro O Brasil é o vale, de Paulo Lamego (Gráfica Estadão, 2003, p. 88-90).

 

Muitos intermediários, como eram chamados estes traficantes interprovinciais, fizeram fortunas em pouco tempo. Viajavam ao nordeste, faziam suas compras e vinham oferecê-las à porta das fazendas. Desciam em comboios de cinqüenta cem ou mais cativos, por terra ou por mar, em navios costeiros.

 

No caminho à nova morada, escravos nordestinos andavam em filas indianas, ladeados pelos condutores dois ou mais, conforme o número de cativos. A cavalo ia o capataz armado de espingarda de longo alcance, seguido do mercador também em sua montaria.

 

Os “baianos”, como se denominavam os escravos mestiços procedentes do nordeste, eram constituídos da miscigenação de brancos índios e pretos, através cruzamentos de várias gerações. Fortes e inteligentes eram, porém, pouco dóceis, e causavam certos conflitos quando misturados com antigos escravos cafeeiros de procedência africana.

 

O embaixador Raul Fernandes conta em poucas linhas a cena de negociação entre um desses intermediários e um senhor rural: “vi um dos últimos comboios de escravos que andaram a desfilar na região. O dono do comboio apeou em frente ao portão da fazenda, atravessou o jardim, onde um repuxo torcia no ar, e desfazia a espiral dum fio d’água, e descobrindo-se diante do fazendeiro, propôs-lhe o horrendo negócio.”

 

— Peças de primeira ordem. Iguais a essas o norte não mandaria mais...

 

Negaceando, o agricultor alegava não ter necessidade; que os preços andavam exorbitantes.

 

Mas de pé, sob o alpendre, seu olhar passava alto sobre a cabeça do negreiro, e percorria interessado, a linha de escravos enfileirados na estrada.

 

O outro, esperto, gritou ao capataz:

 

— Êh! Jerônimo! Manda aqui o Cipriano.

 

Um fula, entre vinte e cinco e trinta anos destacou-se da formatura, penetrou no jardim, caminhou de olhos baixos para o alpendre, chegando ao primeiro degrau da escada, e atirou-se de joelhos ao pé do fazendeiro, suplicando-lhe.

 

— Abra a boca! Ordenou o negreiro.

 

O cativo habituado a este gesto e sabendo da intenção, mostrou a boca como a um dentista; sólida, bela, sem sombra de cárie, uma sadia coloração de marfim novo.

 

— Veja V. Ex.a que são perfeitos, disse o negreiro.

 

E arregaçando, de leve, as calças de algodão cru vestidas pelo negro descobriu as canelas finas, nervosas, com dum cavalo de boa raça.

 

— boa marca, senhor! Ligeiro como um veado.

 

Seguiu-se este breve diálogo:

 

— Qual é o preço?

 

— Três contos.

 

— Está louco! Isto é um despropósito.

 

— Garanto a V. Ex.a que não ganho nada. É preço de amigo.

 

— Quer dois contos?

 

— Dois contos e quinhentos, para servir V. Ex.a.

 

— Não! Dou dois contos e volto uma égua de oito anos de cria.

 

— Vá lá! Está fechado.

 

Inimaginável um diálogo assim com cigano. Ciganos seriam expulsos imediatamente pelo fazendeiro.

 

Em seqüência, vejamos o livro O Vale do Paraíba de Eloy de Andrade, escrito em 1989, retratando a experiência vivida por seu pai, médico de partido, por volta de 1842/43. Observa-se que o pai do autor foi testemunha ocular dos acontecimentos. Mas vejamos o que ele diz sobre comboios às páginas 95 e 96:

 

Desciam os comboios de oitenta, cem, duzentos ou mais por terra ou via marítima. Os negociantes da estranha mercadoria iam ao Norte, faziam suas compras e vinham oferecê-la à porta das fazendas, vendendo a dinheiro à vista, ou, se o fazendeiro era conceituado, de reconhecida probidade, a prazo de um a dois anos.

 

Alguns desses intermediários viveram seus últimos dias na riqueza, portadores de mercês honoríficas — comendadores, barões — quando eram porventura acusados de terem praticado o torpe comércio, defendiam-se dizendo que eram escravos postas à venda e que, assim, se não fossem eles, outros corretores haveriam de aparecer entre vendedor e comprador e que tudo resultaria na mesma coisa. Sendo o negócio rendoso, caiu, por fim, nas mãos dos judeus. (grifamos)

 

Um livro de Júnia Ferreira furtado Homens de negócio (Hucitec, 1999), nos diz à página 266:

 

Apesar da pouca especialização, os comboieiros eram os que viviam prioritariamente, de transporte de negros do litoral para as Minas. Mas também eles levavam outras mercadorias...

 

E à p. 270, ela nos diz:

 

Os plantéis verificados entre os comboieiros eram bem maiores do que entre outros comerciantes volantes, variando entre catorze e dezessete, pois comerciar negros era o seu viver.

 

Escarafunchando um pouco mais vamos encontrar o verbete comboieiro assim definido no dicionário da escravidão de Alaôr Eduardo Scisínio (p.100):

 

Comboieiro — adj. e s.m. — 1. Diz-se de ou indivíduo que trazia escravos como contrabando. 2. Vendedor itinerante ou agente de escravos.

 

Na série Estudos Históricos, de Júnia Ferreira Furtado, sob o título Homens de negócio, a interiorização da metrópole e do comércio nas minas setecentistas, encontramos em várias páginas referências aos comboieiros, faremos alguns excertos:

 

O comércio de escravos envolvia grandes comboieiros que vinham dos portos do Rio de Janeiro e Bahia com carregamentos para vender nas Minas. Vários escravos já vinham encomendados por moradores nas Minas que pagavam adiantado, outros eram arrematados pelos comboieiros para pagamento da comissão de pessoas que lhes tinham financiado a empreitada. Em 1726, Manuel Ferreira Leal descia pelo caminho velho com um carregamento de dezesseis escravos... (p. 194).

 

Apesar da pouca especialização, os comboieiros eram os que viviam prioritariamente, do transporte de negros do litoral para as Minas. Mas também eles levavam outras mercadorias.... (p. 266)

 

O quadro 12 [do livro da autora citada] permitiu perceber que esses condutores e comboieiros eram, em sua maioria, portugueses, brancos, de poucas posses, e cinco (50%) possuíam escravos. Os plantéis verificados entre os comboieiros eram bem maiores do que entre outros comerciantes volantes, variando entre catorze e dezessete, pois comerciar negros era o seu viver. (p.267).

 

Finalmente, Beaurepaire-Rohan em seu Dicionário de vocábulos brasileiros, publicado em 1989, nos dá essas definições, à página 94:

 

Comboieiro, s.m. (Alagoas, Piauhy, Ceará) condutor de um comboio.

 

Comboio, s.m. (provs. do N.) espécie de caravana composta de bestas de carga, para o transporte de mercadorias, e a que nas províncias meridionais chamam Tropa. // Em Mato-Grosso, Minas-Gerais e Goiás, dava-se o nome de Comboio a uma leva de Africanos boçais.

 

E assim encerramos este trabalho com a pergunta: Quem disse que os ciganos foram comboieiros???? Não há nada, nem indícios, ou registros e/ou provas, que nos indiquem que exerceram esse mister.

 

Você já viu um cigano seqüestrador?
Ou assaltante de bancos?
Ou narcotraficante?
Já viu criança ou velho cigano abandonado?

 

Os ciganos hoje (como nos velhos tempos) são, em sua maioria, pobres e honestos. Espertos, sim! Leitores(as) de sorte, sim! Vendedores de metais e pequenos aparelhos elétricos, sim! Circenses, sim! Cesteiros, sim! Artistas, sim! Sucateiros, barganhistas, sim! Pedintes, sim! Mas não são bandidos! O modo de vida cigano é incompatível com o do comboieiro. Cigano é gregário, comboieiro é escoteiro; cigano passa pelos caminhos, em eterna ida e, muitas vezes, não volta mais ao mesmo lugar. Pergunta-se: Como ele venderia escravo a prestação? Como ele receberia prestações? Cigano acampa com sua família: avós, pais, filhos, tias tios, a criançada e parentes outros; é toda a família reunida (É o que chamam grupo, clã, tribo ou kumpanhia). Cigano fica longe dos não ciganos, não se misturam, querem coexistência pacífica, entretanto são escorraçados. Vivaldo Coaracy, grande escritor do passado, em seu livro Memórias da cidade do Rio de Janeiro, nos fala dos pobres ciganos e de seus casebres, pra lá da rua da Vala, em nos pântanos pestilentos. Gilberto Freire, também em Sobrados e Mocambos, registra as choupanas ciganas. Então perguntamos aqui: Como pobres ciganos compravam escravos? Com que dinheiro? Roubavam? Talvez... para sobrevivência, mas temos depoimento de escravo que se pôs nas mãos de um cigano, pedindo para ser vendido a um patrão menos feroz. Ora, ora, se um ou outro cigano eventualmente, comerciava escravos é porque esse era o negócio de todos viventes naquela época, no Brasil. Até escravo comerciava escravo, e negros levavam o pai e mãe para vendê-los. Os pesquisadores de hoje, que perdem seu precioso tempo e dinheiro da nação, poderiam redirecionar suas pesquisas e investigar os grandes traficantes. As listas desses traficantes de carne humana estão na Biblioteca Nacional (também as tenho), no Arquivo Nacional (ambos no Rio de Janeiro) e na Biblioteca da Torre do Tombo, em Portugal. Façam levantamentos das carreiras de Elias Antônio Lopes, o traficante que doou uma chácara ao príncipe regente (hoje museu, em São Cristóvão — Rio); Antônio Gomes Barroso e irmão; do comendador Joaquim José de Souza Breves[1] (o que tinha fazenda de engorda de escravos e centro de reprodução); falem de José Inácio Vaz Vieira; do Xaxá[2] Francisco Félix de Souza (baiano, que indo para África se tornou um dos homens mais ricos do mundo e chegou a possuir 120 milhões de dólares, lá pelo início do séc. XIX, com exportação de escravos); falem sobre o rei de Daomé (o Dadá), que veio ao Brasil duas vezes (em 1805 e 1811) negociar exclusividade na exportação de seus irmãos para cá; falem, falem, de outros, muitos outros. E... Deixem os ciganos em paz... Pois...

 

O Cristo cigano continua sangrando até hoje!

 

FIM

[1] O barão de Piraí, rei do café, possuía mais de 12000 escravos. O império de Joaquim José de Souza Breves abrangia a Restinga da Marambaia, Mangaratiba, Angra dos Reis, Valença, Capivari, Bananal, Resende, Itaguaí, Sacra Família, Vassouras, São João Marcos, Piraí, Passa Três, Arrozal, Barra Mansa e outras. Região maior do que muitos países da Europa. Está no jornal O Globo de 25/11/2007: “Foi achado um tesouro. São dois livros com registro de nascimentos, mortes, e casamentos ocorridos entre 1860 e 1899 nas terras que vão serra abaixo de Itaguaí a Angra dos Reis. Eram os domínios do comendador José Joaquim de Souza Breves. Ele pode ter sido o dono da maior escravaria dos tempos modernos. Tinha 26 fazendas de café e produzia 1,5% das exportações nacionais. [....]. Nos dois livros estão lançados os nomes e as matrículas dos 12878 escravos, o que sugere que Breves teve plantel superior aos cinco mil negros que normalmente lhe é atribuído.”

[2] Ou Chachá. In Mercador de escravos:. Francisco Félix de Souza, de Alberto da Costa e Silva. Nova Fronteira, 2004.

 
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