CIGANOS (o que disseram deles)

por Asséde Paiva - 21/09/2015

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Somos livres como os campos | misteriosos como o mar | andantes como os rios | secretos como os bosques | ligeiros como os ventos | ardentes como o fogo | cautelosos como a noite | imprevisíveis como a estrada | leves como o ar | argutos como a raposa | sentimentais como a música | verdadeiros como as crianças | mas…incompreendidos como a verdade | assim somos nós, os Ciganos.

 

 

The present study is a research on the gypsy activities at Rio de Janeiro, under suspicion of being slave merchants. We claim the real slave traders were others who where not made responsible due to its close relationship with de ruling elite. See annex at the end of this article.

 

Estudei e pesquisei o povo cigano mais de quinze anos, mas não importa o tempo, importa a dedicação, pois foi neste período que analisei com muito amor e muita compreensão a saga dos ciganos no Brasil e às vezes pelo mundo. Posso afirmar que jamais vi tanto sofrimento, angústia, aflição e exclusão. E como diz o grande poeta Antônio Machado: O Cristo cigano continua pregado na cruz. Calvário que parece não ter fim. E o grande enigma é como este povo ainda existe apesar de tanto preconceito, repulsa e ignorância? Digo que ao longo da pesquisa minha seara foi pródiga, pois visitei grandes acervos como os da Fundação Biblioteca Nacional (FBN), no Rio de Janeiro; o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no Rio de Janeiro; o Arquivo Nacional (ANRJ); o Real Gabinete Português de Leitura, Fundação Getúlio Vargas (FGV), RJ; Casa de Rui Barbosa, RJ; Biblioteca de Folclore Amadeu Amaral, RJ; Biblioteca Estadual, RJ; Biblioteca do Itamaraty, RJ; Arquivo Público da cidade do Rio de Janeiro; Biblioteca da Diocese do Rio de Janeiro; Arquivo Público Mineiro (APM); Biblioteca do Clube Militar, Rio de Janeiro; Biblioteca da Associação Brasileira de Imprensa (ABI); em todas fui muitas vezes e muito tempo. Portanto, tenho mais de 10 mil páginas anotadas e mais 10 mil documentos obtidos em pesquisas na Internet. Tenho, pois, muito material. Gostaria de repassar alguns dados para os leitores e leitoras. Não me preocuparei com qualquer ordenação, serão notas esparsas e abordarei o assunto principal: ciganos e correlatos, viajantes, escravidão, polícia, tropeiros, mineiros, comboieiros, portugueses, brasileiros, judeus, ingleses, nobres, traficantes, comissários, tratantes e outros. A preocupação minha é informar e darei as fontes para aqueles que quiserem aprofundar. Vocês irão verificar que anotei pareceres favoráveis e desfavoráveis aos ciganos. Não censurei nada. Sou absolutamente sincero, só abomino as pesquisas superficiais que andam por aí, que partem do princípio de que os viajantes, artistas, cientistas e outros que vieram ao Brasil de antanho, são magister dixit. Por favor, pesquisem um pouco mais, esqueçam os fungos existentes nos velhos manuscritos, nas listagens de traficantes e nos boletins da polícia. O Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional e o IHGB estão cheios de pacotes esperando vocês... Mas, por favor, sejam seguros e precisos, pois, sou como são Tomé, gosto de ver para crer e se houver equívoco, denuncio. Exemplo: Uma pesquisadora, em alentado trabalho (Vida dos escravos no Rio de Janeiro. Mary C. Karasch) de mais de 600 páginas disse á p. 519, ANJ[1] IJ6, 163 ibd., 1822-1824, que o cigano Joaquim José Roiz, suspeito de haver roubado e vendido em Minas e São Paulo mais de “mil escravos”. Eu pesquisei e achei o seguinte: ... consegui devassa prezo na Vila das Areias o Cigano Joaquim José Roiz que conduzia 14 escravos de diferentes proprietários desta cidade. Parece-me s.m.j. que há um erro grosseiro da autora que falou que o cigano roubara mais de 1000 escravos. Poderia apontar outros, mas vou guardar como trunfo. Sou contestador, estou seguro de que os ciganos levaram culpa de muitos delitos que não cometeram. Ao longo de minha obra, sempre os defendi, ainda que sem procuração, mas não preciso dela, vale meu senso de justiça. Hoje em dia, alguns pesquisadores estão adotando minha linha, qual seja: ciganos ficaram com o ônus e os outros com o bônus. Nós defendemos a idéia de que os verdadeiros traficantes foram outros que não apareceram devido ao seu estreito relacionamento com a elite dominante. Boa leitura, pois!...

 

Por oportuno, informo que ciganos sempre foram excluídos em assuntos relacionados com escravos (no Brasil).

José Soares Pinho, em 4 de novembro, de 1826, fez petição candidatando-se ao cargo de Avaliador de escravos. Seu processo não foi deferido, pois era cigano e não possuía bens[2].

 

No livro The Jew, The Gypsy and The Islam (1898), Richard Francis Burton[3] antes de iniciar a parte relativa aos ciganos, transcreve este trecho de Jaubert de Passa (1785-1856), p, 132:

 

“A people proscribed by opinion, and doomed by the laws to opprobrium and ignominy; a race which, driven from all liberal professions, has been for ages, and still is, robbed of its right to hold landed property; which, subjected to special and severe regulations, has learned at once to obey and yet to preserve a manner of independence; which, despite the contempt that inspires and the hate that awakes and the prejudices wherewith it is received and judged, still resists this contempt, his hatred, and finally all those causes which ought to disunite, loosen, and annihilate the family, the race, the nation; –– such a people, I say, deserves the observer’s attention, if only from the fact of its existence.”

 

[Um povo proscrito por preconceito e condenado por leis ao opróbrio e à ignomínia; uma raça excluída de todas as profissões liberais; tem sido, por séculos, e ainda é roubada de seus direitos de propriedade e terra; que é sujeito a regulamentos severos e especiais; aprendeu a preservar enfim uma maneira de ser independente; e que apesar dos insultos e desrespeitos que recebe, do ódio que desperta e dos preconceitos; e que onde quer que esteja é recebido e julgado; ainda resiste a esta aversão; finalmente, a todas aquelas causas que devem desuni-los, afrouxá-los e aniquilar a família, a raça, a nação; –– este é um povo, eu digo, que merece a atenção do observador, ainda que seja somente pelo fato de sua existência.]

 

No Dicionário histórico do Brasil-colônia e Império, de Ângela Vianna Botelho e Liana Maria Reis, lemos à p. 54, esta definição:

Cristãos-novos: indivíduos, especialmente judeus, convertidos à religião católica. [...] No período colonial grande número de cristãos-novos veio de Portugal, fugindo da perseguição do Santo Ofício da Inquisição, que os acusava de hereges. No Brasil, tornaram-se senhores de engenho, proprietários de datas, compradores de diamantes e grandes comerciantes. Muitos adquiriram enormes fortunas com o comércio de escravos (Tráfico Negreiro), de açúcar e especiarias coloniais [...]

 

No livro Viagem do Rio do Janeiro a Morro Velho, p. 149, de Francis Burton, lemos:

 

Perto da fazenda do coronel Luiz Gonzaga, encontramos uns doze ciganos, todos eles do sexo masculino, e descansando, sem barraca, enquanto seus animais pastavam o capim da beira da estrada. Esses misteriosos vagabundos são raros em São Paulo e numerosos em Minas, onde são vendedores de cavalos e ladrões de galinha, como em todos os outros lugares, de Kent à Catalunha. São evidentemente, de raça diferente daqueles, e seus cabelos longos e ondulados são a primeira coisa que se nota. Reservei para outro volume informações imparciais sobre o “cigano” brasileiro –– objeto de medo, antipatia e superstição por parte do povo.

 

O lugar escolhido para a execução de Tiradentes, que não ouso chamar de desventurado, foi um lugar abandonado, na parte oeste do Rio de Janeiro, o Campo dos Ciganos, onde eram enterrados os ciganos e os negros recém-importados (negros novos). Idem, ib., p. 293.

 

O Dicionário de símbolos, p. 638, registra esta romança cigana:

Quem me pedirá o futuro?

Quem desfará amanhã sobre meu peito

O nó (do xale) que tu acabaste de estreitar?

(Assim que se fala no casamento de ciganos russos)

 

Estes são os autores mais citados na literatura anticigana:

Debret 1768-1848 esteve no Brasil de 1816 até 1831; suas pranchas sobre ciganos são as de números 15 –– Retour a la ville d’un propriétaire de chacra; 23 –– Boutique de la rue du Val-Longo; 24 –– Intérieur d’une habitation de ciganos.

Freycinet 1779-1842 esteve no Rio de 1817 até 1820;

Gendrin esteve no Rio de 1827 a 1821;

Jacquemont 1801-1832 esteve no Rio de 28/10 a 18/11 de 1828;

 

De João Ribeiro, in Jornal do Brasil, de 20 de julho de 1932:

A grande e suntuosa criação de Luís Edmundo não é um livro de História [...] Falta ao livro a documentação, que não seria desprezível, dos fatos, para aumentar a veracidade de alguns deles, contestáveis, duvidosos ou, o que é mais certo, obscuros e ignorados. Apud Evanildo Bechara, in anais da ABL, ano 2002, vol.183, janeiro a junho de 2002. [Seja, os livros de Luís Edmundo são fantasiosos.]

 

Viana Moog, in Bandeirantes e pioneiros, à p. 112, nos ensina:

... do fado que outra coisa não é, como já foi notado, senão a elaboração musical, portuguesa e lisboeta do brasileiríssimo lundu.

Judeus contrabandeavam o ouro das minas do Brasil para os Estados Unidos. Id. Ib., p. 147.

 

O supracitado escritor em Conquista do Brasil, p. 132:

Juro que não farei nenhum trabalho manual enquanto conseguir um só escravo que trabalhe para mim, com a graça de Deus e do Rei de Portugal. Apud Roy Nash.

 

In Denunciações de Pernambuco, FBN VI-315, 6,53, p. 265:

Abril de 1594, o cigano Diogo Sanches residia em Igaraçu, PE. “mercador de logea de mercearia” sedentário e rico.

 

John Luccock, in Notas sobre o Rio de Janeiro, p. 66:

O veículo melhor que a opulenta colônia brasileira podia oferecer a sua soberana era pequena sege trazida pelo mesmo navio em que ela própria viera. Era puxada por duas mulas vulgaríssimas e conduzida por um cocheiro metido numa libré velha e desbotada, se não poídas...

 

Primeira Visitação do Santo Ofício –– às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça (Confissões da Bahia 1591-1592). Série Eduardo Prado –– São Paulo, 1922, p. 57, 74, 166:

·         Brianda Fernandes, cigana, no tempo de graça 20 de agosto de 1591, natural de Lisboa; idade mais ou menos 50 anos, casada com Rodrigo Solix, cigano, filho de Francisco Álvares e de Maria Fernandes, ciganos defuntos, morador nesta cidade na rua do Chocalho [porque arrenegava Deos]

·         Confissão de Maria Fernandes, aliás, Violante, cigana no tempo de graça de 20 de agosto de 1591, natural de Sam Felices dos Gallegos, filha de Francisco Escudeiro, português, cristão-velho e de sua molher Maria Violante, cigana de idade de quarenta anos pouco mais ou menos, cigana viúva que foi de Francisco Fernandes, ferreiro cigano morador nesta cidade que era degredada do reino por furto de burros para estas partes do Brasil [porque arrenegou Deos].

·         Apolônia Bustamante, cigana no tempo de graça de 30 de janeiro de 1592, natural de Évora, filha de Francisco de Mendonça, cigano e sua molher Maria Bustamante cigana; casada com Alonso della Paz, castelhano veio degredada por furto.

 

Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça “denunciações da Bahia, 1591-1593, São Paulo, 1925”, p. 269, 285, 303, 308, 323, 385, 388, 400:

 

·         Contra Clara Gonçalves ou Fernandes, 2 de agosto de 1591, casada com Manoel Fernandes [por blasfêmia contra Cristo];

·         Contra Joanna Ribeiro, 9 de agosto de 1591;

·         Francisca Roiz, cigana filha de Joamm Moreno, defunto e de Maria Sanches, ciganos, moradores na rua de São Francisco, desta cidade, cristã-velha, casada com Bartolomeu Ribeiro, cigano...

·         Contra Tareja Roiz (por negar o dia do juízo) Anrique Roiz e Fernão Cabral;

·         Contra Clara Fernandes (por açoitar o crucifixo);

·         Contra a cigana Maria Fernandes... 21 de agosto de 1591 (clamava contra Deos pelo excesso de chuva);

·         Contra a cigana Violante, aliás Maria Fernandes (porque furtou com seu companheiro Francisco).

Observo que ciganos foram objetos de investigação do Santo Ofício no Brasil.

 

Henry Marie Brackenridge 1786-1871, in Voyage to South América (1819), p 77 e 154, falando do Rio de Janeiro:

 

·         Os portugueses são geralmente de pele muito escura, p. 98;

·         O povo em geral mergulhado no mais baixo nível de degradação política, p. 116;

·         A inquisição nunca se estabeleceu aqui, felizmente para os judeus que são numerosos, p. 121.

 

Aluísio de Almeida, in Vida e morte do tropeiro, p. 169, 186-91 e 208 nos diz:

 

Os ciganos eram também ladrões de animais. Os caipiras teriam aprendido deles a mania de barganhar em que ‘um ganha e outro arreganha’, segundo o provérbio. O cigano é nômade como o tropeiro. Correm também como o tropeiro. Correm também como este, todas as estradas.

 

Ambos viveram em barracas. Ambos consideravam o cavalo o assunto principal de suas cogitações. É possível que certos aspectos idênticos gerassem efeitos semelhantes.

 

Note-se que os ciganos (não os do Rio) usavam as grandes estradas de tropeiros e justamente entravam também no Brasil pelo Rio Grande do Sul. Já fiz notar que suas barracas ao contrário das dos tropeiros, tinham os fundos e não as frentes para o caminho eram grupos étnicos fechados, e ao contrário dos viandantes brasileiros, tão hospitaleiros e nada amigos de lograr, a não ser na barganha de animais: Barganha, um ganha, outro arreganha. Encontramos no sul de São Paulo assentos de batismo de ciganos, coisa rara, e em maior quantidade, de filhos de viandantes sem domicílio, e que parecem de raça cigana. E vimos pessoas bem parecidas com ciganos, máximo mulheres caipiras de vermelho e jóias falsas.

 

Na Coleção folclórica da Universidade Federal de Alagoas, n. 20-32, 1977-1979, encontramos este Pastoril de onde extraímos o trecho referente à cigana:

 

Cigana

Sou cigana por noite e um dia

De Belém o caminho procuro,

Quero ver se ao pequeno Messias

É propício ou é mau futuro.

 

Coro

Toda cigana é ladina

Oh! Meu rico dê-me um vintém

Para dar ao Deus menino

Nascidinho em Belém.

 

No livro de Dornas Filho, Os ciganos em Minas Gerais, pinçamos às p. 139, 140, 142, 146, 151, 155 e 157:

 

·         ... os ciganos que saíram de Portugal nos primeiros anos após o descobrimento, à cata de aventuras, os quais aportando em terras de Pernambuco, traziam grande número de equinos de raça árabe, infiltrando-se esses animais pelo Piauí e por todo o norte brasileiro, formando-se as bases ancestrais dos nossos cavalos nordestinos, que apresentam todos os característicos do sangue árabe. 

·         Dom João VI pensou e levou a cabo a idéia de povoar com ciganos o vale do Jaguaribe, de que se origina a introdução do tracoma ou oftalmia egípcia no Brasil, principalmente no Ceará...

·         Dr. Manuel Basílio Furtado, tornou-se idólatra de Teófilo Otoni graças a um cigano que lhe deu um maço de jornais.

·         Ciganos e judeus são os mais estarrecentes milagres de sobrevivência que a história conhece.

·         Moradores do Termo de Mariana e dos distritos de Tapera, Turvo e Calambao representaram contra a ‘bandeira’ do capitão José Leme da Silva e seus irmãos acusando-os de acoitadores de ciganos.

·         Assegura Burton  ... que os ciganos no Brasil tomaram nomes de alimentos, pássaros, animais, árvores e flores.

·         Entre 1900-1920, os ciganos foram ferozmente perseguidos em Minas.

 

Edward Rice escrevendo sobre a vida aventurosa de Richard Francis Burton assim nos fala à p. 1:

 

Embora Burton fosse um sobrenome comum na Inglaterra, também era cigano ou romani, e todos concordavam que R. B. tinha uma aparência geral semelhante à dos ciganos. Os admiradores que nem por um momento tolerariam a presença de um verdadeiro cigano, tomavam suas intermináveis andanças como sinal de seu sangue zíngaro.

Segundo monsenhor Pizarro, cap. V vol. VII, p. 63:

... em 1808 mantinham comércio nesta capital mais de 126 casas em que negociavam as fazendas de lei, não só por grosso, mas a retalhos, ou por miúdo: no tempo presente é o número deles excessivo, concorrendo para isso a afluência de negociantes estrangeiros, além dos portugueses que de outros lugares vieram estabelecer aqui o trato mercantil.

Luiz Gonçalves dos Santos, o padre perereca, fez deliciosa descrição dos folguedos ciganos in Memórias para servir à história do Reino do Brasil, tom II, p. 311:

Finda a dança se retirou o carro, juntamente com seu séquito, e logo entrou na Praça a célebre dança dos Ciganos, que se compunha de seis homens, e outras tantas mulheres vestidos todos com muita riqueza; pois tudo quanto apresentarão de ornato era veludo, e ouro: precedia-os huma banda de música instrumental; e sobre hum estrado fronteiro às Reais Pessoas executarão com muito garbo, e perfeição várias danças Hespanholas, que merecerão universal aceitação.

 

Gustavo Barroso, in História secreta do Brasil diz à p. 46:

A influência dos negociantes israelitas estendia-se ao engenho produtor, à firma embarcadora, ao intermediário de Lisboa a quem era consignada a mercadoria, às praças consumidoras do centro e do sul da Europa.

 

Carmem Nicias de Lemoine, in Tradições da cidade do Rio de Janeiro, tece estas considerações sobre os ciganos, à p. 119:

Quando falamos em raças e influências coloniais por esse Brasil tão grande. Especialmente no Rio de Janeiro. Não se pode esquecer o cigano. Raça extraordinária. Classe distinta entre as demais. Muito próxima moralmente dos judeus. Pelo milagre de sobrevivência. Pela adaptação espantosa ao meio em que vivem. Pela capacidade de conservação de seus ritos.

 

Gente que sempre viveu pelo mundo. Num mundo exclusivamente seu. Mundo de carroças e ursos domesticados. Senão cabras. A tocar música temperamental. Esbofeteando com pandeiro de fitas. Aos beliscões de castanholas...

 

In História da polícia do Rio de Janeiro 1565-1831, lê-se às p. 40 e 41:

Numeroso grupo de ciganos invade a cidade –– A Ouvidoria pede providência contra os invasores.

 

No ano de 1830 moravam no Valongo (ciganos) e na grande área da cidade Nova. Viviam da compra e venda de escravos, dedicando-se também ao comércio de animais. De 1840-1850 já se acharam englobados à população e moravam em boas casas. Reuniam-se nas imediações da hoje rua Marquês de Pombal. Era lá era o rendez-vous da elite dinheirosa, o sítio dos seus folguedos e de seus bródios.

 

Augusto de Lima Júnior, in A Capitania de Minas Gerais, cita à p. 155: 

Eram os cristãos-velhos e os cristãos-novos, isto é, judeus que, tinham aceitado o batismo e seus descendentes, até ‘quatro costados’, No começo os Leões, os Fortes, os Henriques, os Carneiros, os Campos e outros, chegaram a constituir povoados, verdadeiros ‘guetos’ que ainda hoje se reconhecem por não terem capelas em suas ruínas. Encontravam-se, porém, em todos os pontos, e nas entradas das vilas eram os donos do comércio, rancheiros à margem das estradas, compradores de ouro de contrabando, comboieiros de negros e ambulantes, tendo em suas mãos quase todo comércio de movimento.

 

Gilberto Freyre, in O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, à p. 73:

Mas é preciso então alertar contra os anúncios de venda e troca de escravo. Esse gênero de comércio andou por muito tempo dominado na Corte como nas mais antigas zonas de engenhos do Norte a venda e troca de cavalos pelos ciganos. Dominados também pelos grandes negreiros portugueses e da terra que acumularam Deus sabe como, fortunas enormes. Um desses negreiros tornou-se figura socialmente prestigiosa: Pinto da Fonseca.

 

Robert Walsh, in Notícias do Brasil 1828/1829, informa:

When a cargo of slaves arrives, it generally purchased by people who are called ciganos, or gypsies, and who nearly resemble, all the individuals of race which I have seen in different parts of the world. They have dark olive complexions, black eyes and hair in common with many Brazilians but they have obliquity of aspect, and sinister expression of countenance, that at once marks them as a peculiar race…

 

Vivaldo Coaracy, in O Rio de Janeiro no século XVII, nos ensina à p. 232:

Não eram apenas particulares que se faziam negreiros. A própria Coroa portuguesa exercia o tráfico com grandes lucros para o erário real, desde meados do século XVI. A carta régia de 16 de novembro de 1697, onde o rei afirmava que tomava a si introduzir escravos africanos no Brasil para o bem dos seus povos, fixava em 160$000 o preço de cada negro vendido pela Fazenda Real.

 

Maria Graham, em Diário de uma viagem ao Brasil [1821,1822,1823], p. 286, escreve:

[...] garganta que conduz à lagoa Rodrigo de Freitas, através da qual um riacho de bela água fresca corre para o mar. Exatamente na sua foz há um lugarejo habitado por ciganos, que encontraram o caminho para aqui e preservam muito das peculiaridades do aspecto e de caráter em seu novo lar transatlântico. Conforma-se com a religião do país em todas as coisas exteriores e pertencem à paróquia de que o cura de Nossa Senhora do Monte é pastor. Mas esta conformidade não parece ter influenciado seus costumes morais. Usam seus escravos como pescadores. Uma parte de sua família reside habitualmente nos seus domicílios, mas os homens vagueiam pelo país e são grandes mercadores de cavalos.

 

[...] nesta parte do Brasil. Alguns deles dedicam-se ao comércio e muitos são extremamente ricos, mas são ainda considerados ladrões e trapaceiros, e chamar um homem Zíngaro equivale a chamá-lo de velhaco. Conservam seu dialeto particular, mas não consegui ficar pessoalmente bastante conhecida deles para formar qualquer juízo sobre o grau em que a mudança de país e clima afetou os hábitos originais.

 

Henry Koster, in Viagens ao nordeste do Brasil, p. 372, 383, prolata:

Resta-me falar de uma raça humana, constituída de indivíduos cujo número não é vultoso que permita dar-lhe um quadro à parte entre as grandes divisões humanas que formam a população do Brasil e não posso colocá-la na fila daquelas que têm importância maior. São muito falados para que se possa esquecer os Ciganos. Ouvi assiduamente citar esse povo, mas nunca me foi possível avistar um só desses homens. Bandos de ciganos tinham outrora o hábito de aparecer, uma vez por ano, na aldeia do Pasmado, e noutras paragens dessa zona, mas o último governador da Província era inimigo deles e tendo feito algumas tentativas para prender alguns as visitas desapareceram. Descrevem-nos como homens de peles amorenadas, feições que lembram os brancos, bem feitos e robustos. Vão errando de lugar em lugar, em grupos de homens, e mulheres e crianças, permutando, comprando e vendendo cavalos e ninharias de ouro e prata. As mulheres viajam a cavalo, sentadas entre os cestos, de mistura com a bagagem. Os homens são cavaleiros eméritos e quando os cavalos de carga estão exaustos contentam-se em diminuir a marcha, sem que descavalguem ou dividam o carreto com os demais componentes do comboio. Dizem que não praticam religião alguma, não ouvindo missa nem confessando seus pecados. É sabido que jamais casam fora da nação.

 

Parecer de Bento da Silva Lisboa e J. D. de Athaide Moncorvo, sobre o 1º e 2º volumes da obra intitulada Voyage Pittoresque et Histórique au Brésil, ou sejour... par J. B. Debret [IHGB, v. 3, tomo 3, 1841, p. 77-79]:

Entre as estampas há três que, se não fosse a consideração de que em geral o autor faz elogios aos Brasileiros, pareceria que ele queria fazer uma verdadeira caricatura. Com efeito, a do empregado público passeando com sua família excita o riso. Ainda que no ano de 1816, em que chegou M. Debret ao Brasil, os costumes não tinham adquirido aquele grau de civilização que hoje tem, contudo não temos lembrança de que os empregados públicos saíssem a passeio, levando suas esposas no último período de gravidez, segundo se vê na estampa. [...]. A outra estampa é o Tráfico dos Africanos no Valongo. O Senhor Debret pintou todos esses desgraçados em tal estado de magreza, que parecem uns esqueletos próprios para se aprender anatomia; e para levar o riso ao seu auge, descreve a um cigano sentado em uma poltrona, em mangas de camisa;  meias caídas, de maneira que provoca o escárnio. Bem diferente é o desenho que apresenta a Senhora Maria Graham na sua Viagem ao Brasil; pois que é feito com seriedade e veracidade.

 

The Expedition of the academic G. I. Langsdorff and his artists in Brazil, 1821-1829, p. 40/41:

Após permanência em São João d’el Rei e São José, os participantes da expedição retornaram a Barbacena e, a 30 de junho, seguindo rumo leste, começaram a descer a Serra da Mantiqueira, margeando o rio Pomba, que nasce perto. Alguns dias depois, chegaram à rica região aurífera denominada Descoberta Nova. Já de longe ouvimos gritos e ruídos característicos de grandes aglomerações –– escreveu Langsdorff a 12 de julho. –– Primeiro, vimos a fazenda do proprietário desse lugarejo e, depois uma longa fila de choupanas cobertas de palha. Eram as moradas (se é que se pode usar tal expressão) dos garimpeiros e daqueles que vêm para cá ocupar-se do comércio, tentando obter toda sorte de lucros. Pedimos abrigo na primeira casa, na segunda, mas sem resultados. Quando passamos ao lado de cabanas, vimos mercadorias em velhos e precários abrigos, bodegas, barracas de mascates [ciganos?] e casas de jogos. Todo esse lugarejo parece uma fila de tabernas no mercado –– continuou. –– Aqui, homens deitados em tablados de varas, em esteiras de palha. Ali, uma mulher ou uma moça. Outro leva um prato cheio de feijão e toucinho, e perto giram os peões, decidindo quem ganha ou perde. Mágicos [ciganos?] demonstram sua arte. Por todo lado bebem vinho, aguardente, rum ou gim. Os mercadores, ou melhor, os vendedores, abrigam-se nas moitas. [Ciganos?].

 

A N N E X

O manuscrito classificado 26-4-112, encontrado na Biblioteca Nacional (FBN), Rio de Janeiro, é uma petição para que os escravos sejam desembarcados imediatamente e foi assinado pelos seguintes escravistas:

 

José Luís Alves; Francisco Pereira de Mesquita; Manoel Caetano Pinto; Marcos Martins; Narciso Luís Alves Pereira; João Gomes Valle; Manoel Gomes Pereira; Frutuoso João da Cruz; Bento Antônio Muniz; Joaquim Antônio Jussuá; João Luís Brígido; Manoel Carlos de Carvalho; José Gomes Porto Carreiro; Antônio Fernandes Torres; Amaro... Barbosa; Francisco José Hernandez; João e Al... Gomes; Antônio Serra da Rocha; José Alberto Serra Vidal; João Lopes Batista; João de Araújo Silva; João Inácio Tavares; Francisco Antônio de Barros; Manoel Paes de Azevedo; Francisco J. Fernandes Barbosa; Francisco G. da Costa Campos; Manoel S. Batista; Francisco Luís de Almeida; João Soares da Silveira; José P. Guimarães; Manoel S... de C...; Joaquim José da Rocha; Francisco José da Rocha; Custódio de Souza Guimarães; Antônio Gomes Barroso; Manoel Gomes Barroso; Fernando Carneiro Leão; João Gomes Barroso; Amaro Velho da Silva; Bernardo Lourenço Vianna; José Antônio Souza da Silva; Antônio J. Castelo Barbosa; Francisco José...; João Alves S. Guimarães; Antônio S. Rocha; José Inácio Tavares. Nem um deles era cigano...

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[1] Série Justiça ––  Polícia, escravos, moeda falsa etc., cód. AM, seção SDE (nota minha).

[2] Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), cód. 6-1-12, folha 32. Apud Luciano Pinto.

[3] Erudito, diplomata, cientista, soldado, agente secreto, explorador, aventureiro, tradutor, escritor, inglês. Falava 28 idiomas e outros tantos dialetos. Percorreu o mundo inteiro, esteve no Brasil, falava português fluente, sem sotaque, para admiração de dom Pedro II.

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