CIGANOS NO RIO ANTIGO
por Asséde Paiva - 09/03/2015
Se alguém diz a verdade, pode estar certo de ser descoberto cedo ou tarde. (Oscar Wilde)

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Resumo:

 

Trata-se de pesquisa sobre atividades dos ciganos no Rio de Janeiro: onde moravam? Foram escravistas? Defende-se a idéia de que os verdadeiros traficantes foram outros e que não apareceram por seus estreitos relacionamentos com a elite dominante. Na verdade, os ciganos ficaram com o ônus e outros com o bônus. Não foram grandes nem pequenos escravistas.

O jornal O Globo de 6/4/04, p. 20, registrou que será traçado o roteiro da escravidão no Rio. Assim, está para recomeçar a revitalização dos Bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo e adjacências. São recantos cheios de história, plenos de fantasias e marcadamente tristes pelos lamentos dos escravos que ali chegavam, da mãe África e dali partiam para as Minas Gerais e outras capitanias, levados pelos comboieiros e comissários dos fazendeiros, ou ficavam servindo seus senhores na mui heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

 

 

É chegado o momento de reflexão, a hora de levantar o véu que cobre os fatos que ocorreram, naquelas paragens, por mais de duzentos anos (1583-1831). E são muitas as interrogações, nem podemos cogitar de responder todas. Na verdade, vamos tentar apenas responder uma: A questão dos ciganos. Qual a participação deles no nefando comércio escravista? Lendo os livros mais corriqueiros, os autores mais preconceituosos, aqueles que, de um ou do outro modo, não queriam ou não podiam dizer a verdade, eles afirmaram que os ciganos foram os principais comerciantes ou vendedores de escravos, o que é uma insensatez. Lendo também os livros atuais de pesquisadores desatentos, seguidores do "artista" francês Debret, ainda encontramos a mesma fábula: a dos ciganos escravistas.

 

 

É curioso, mais de setecentos e sessenta visitantes/viajantes1 estrangeiros que vieram ao Rio, no Brasil-colônia e Império (ainda que excluamos uns 200, por motivos vários), poucos abordaram o assunto ciganos x escravos. Podemos citar os principais: Debret; Saint-Hilaire; Gendrin; Gabert; Jacquemont; Robert Walsh; Kidder; Johann Pohl; Weech; Thomas Ender; Rugendas; Chamberlain; Richard Burton; Freycinet; George Gardner; Maria Graham; Cunha Matos; Eschwege e James Wells. Alguns dos citados, os pesquisei a fundo e nada encontrei desfavorável aos ciganos; por exemplo: Burton e Maria Graham. No que diz respeito a Gendrin, fizeram uma tradução capciosa de seu texto e não tem valor, portanto. Gabert, este parece que nem existiu. Quanto a Jacquemont, encontrei dois trabalhos seus: um na biblioteca do Itamaraty, outro na biblioteca Nacional. Folheei 4000 páginas e o texto que dizem ser dele (contra os ciganos) não existe. Chamberlain plagiou Thomas Ender, ou vice-versa, no quadro ‘cigano’ vendendo escravo. E Debret!? Este senhor, completamente ignorado na França, sua pátria, como artista. Errou em muitas pranchas sobre o Brasil e sobre ciganos. Na verdade, não retratou o Brasil: caricaturou. Em um artigo de Alfredo Grieco, 'Atualizando Debret', que retiramos na internet, lemos: "Completamente desconhecido na França, onde além de ser aluno brilhante e logo professor da Politécnica (substituindo Gerard), foi assistente de David, é bastante mal visto no Brasil, quem sabe por ter sido meio kitschificado."

 

Outro documento na internet tem este título: “Debret: plagiador”? No tomo I de Viagem Pitoresca e histórica ao Brasil, dentre as inúmeras representações de indígenas, algumas chamam a atenção: eles são representados com pintura corporais muito semelhantes (para não dizer idêntica) às de uma imagem de índios de uma tribo de índios norte-americanos, presente em uma publicação sob o título de Voyages and travels en various parts od the world: during the years 1803, 1804, 1805, 1806, and 1807 (feita décadas antes) pelo naturalista da antiga Prússia, George Heinrich von Langsdorff.” E para encerrar transcrevo o que nos informa o site www.pitoresco.com.br/laudelino/laudelel> que tem este título: “Época de formação, primeiro período: 1816-1826. À página 3/11 lemos: Contratados ou aproveitados? Dizendo expressamente o decreto acima [referia-se aos franceses recém-vindos, inclui Debret]: “1o querendo aproveitar a capacidade, habilidade e ciência de alguns estrangeiros beneméritos, que tem buscado a minha Real e Graciosa Proteção...” evidente que eles vieram para buscar essa proteção e não foi o governo que os mandou vir, como falsamente asseveram...

 

Portanto, concluo que, em se tratando de ciganos, Debret não deve ser levado a sério, que por aqui esteve entre 1816-1831, nem quando travestido de antropólogo social, pois quando fala de modos e costumes ciganos está reescrevendo Grellmann2.

 

Os ciganos, à medida que foram chegando ao Brasil, especialmente Rio de Janeiro, foram expelidos para o Valongo que então nada mais era que um local pantanoso e pestilento, no dizer de Vivaldo Coaracy3. A cidade em expansão, ultrapassou a rua da Vala [hoje Uruguaiana] e foi se espraiando em direção ao Valongo. Novamente os ciganos foram expulsos para outros pântanos. Isto nos dá a certeza de que não tiveram e não puderam comerciar escravos, como querem dizer aqueles viajantes que por aqui passaram nos séculos XVI a XVIII. No Rio antigo, aos ciganos que se tornaram sedentários, as autoridades lhes designaram para residência os brejos palustres, então considerados longínquos ao fim da rua do Piolho [hoje Carioca], isto é, num local que seria depois o Rocio (hoje praça Tiradentes). Aos ciganos, então, deve-se atribuir a glória ou grande heroísmo por serem os primeiros habitantes do Valongo e de sobreviverem em local tão insalubre. Posteriormente, mudaram para a rua dos Ciganos, hoje rua da Constituição. Quanto à acusação de ciganos serem escravistas, isto de fato é falso. Debret era empregado do príncipe-regente, depois rei e evidentemente gozava das benesses da corte, não achou conveniente, ou teve medo de indicar os verdadeiros escravistas (ele perderia o emprego); foi mais fácil culpar os ciganos. Estudiosos de história, mestrandos e doutorados, com algumas belas exceções, também seguem a trilha de Debret. Poderão dizer que existem papéis, relações, ofícios, comprovando o envolvimento de ciganos com escravos. É verdade, porém não podemos esquecer que somente os ciganos eram taxativamente excluídos4 do comércio escravista; portanto, quando — eventualmente — exerciam este mister eram perseguidos e presos. Outras etnias: portugueses, brasileiros, negros (pasmem! Escravo podia comprar escravo), judeus, americanos, franceses, ingleses, holandeses, espanhóis, podiam livremente exercer o nefando escravismo, sem qualquer coerção. Daí não aparecerem jamais como escravistas, nem eram presos ou perseguidos e não são registrados nas crônicas policiais. Quem se atreveria enfrentar a ira dos irmãos Antônio e João Gomes Barroso e de um Antônio Elias Lopes e de mais de 200 outros traficantes de grosso trato? Elias Lopes logo presenteou ao rei uma chácara, em São Cristóvão... E foi regiamente recompensado.

 

Realizam-se pesquisas no Arquivo Nacional (ANRJ), sobre a participação dos ciganos no escravismo. Até agora, os resultados são estatisticamente desprezíveis, levando em conta o universo: três milhões de escravos, e 300 anos de escravidão.

 

Em 6/1/2002, no caderno 2 de O Estado de São Paulo, lemos interessante artigo de Haroldo Ceravolo Sereza, que diz o seguinte: “Debret coloca em duas pranchas ciganos no comando do negócio de escravos, o que é um pequeno delírio histórico — ou porque Debret não viu o óbvio, ou seja, que a elite brasileira comandava o negócio, ou porque o óbvio não podia ser visto”.

 

Eu quero reescrever a história oficial; quero desmistificar Debret; quero inocentar os ciganos da insustentável, risível e grotesca acusação de que foram escravistas. Leitores e leitoras, amigos (as), não se detenham neste pequeno artigo, duvidem, investiguem, aprofundem estes apontamentos. O Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional, O Arquivo Nacional e o Instituto Histórico Nacional entre outros estão abarrotados de relações, pacotes, listas, jornais e outros documentos sobre escravos, escravistas e ciganos.  Esses, só fortuitamente, repetimos comerciavam escravos. Outros ciganos eram andadores do rei, isto é entregavam mensagens fazendo papel de correios e mais tarde alguns se tornaram meirinhos5 (oficiais de justiça).

 

Cigano é alegre e gosta de festa. Em 1763, participaram ativamente das festas reais em honra do primogênito de d. Maria I. Muitos ciganos vieram com d. João VI para o Brasil, em 1808. Animaram as festas do casamento do d. Pedro I com d. Leopoldina e, no período áureo de 1808-1818, foram sempre convidados a participarem das comemorações da corte. Joaquim Antônio Rabelo, cigano rico, prestamista, benemérito e humanitário bancou a festa dos ciganos para d. João VI e chegou ao posto de alferes.

 

Recomendamos como ato de gratidão e de reparação do povo carioca aos ciganos, que se inaugure (na revitalização dos bairros citados), uma placa, um marco no Valongo, dedicado aos ciganos, e que sejam reconhecidos como os primeiros desbravadores e povoadores do Valongo; habitantes do Rio de Janeiro e que ajudaram, de uma forma ou de outra, a colonizar nosso município: Estabeleceram-se aqui entre outras plagas, no Catumbi, na Lagoa Rodrigo de Freitas6, nas Praças XV e Tiradentes (que já foi chamada de Campo dos ciganos), Inhaúma e outros pontos de nossa cidade.

 

Como encerrar este trabalho? Dizendo que o Brasil não é a soma de portugueses, índios e negros. É muito mais! Existem milhares, quiçá milhões de outros indivíduos de outras etnias e entre elas sobressai a etnia cigana.        “O cruzamento das três raças efetuou-se, sendo o cigano a solda que uniu as três peças de fundição da mestiçagem atual do Brasil”. (Mello Morais Filho, Os ciganos no Brasil, p. 27).

 

Notas

 

1. Bibliografia do Rio de Janeiro, viajantes e autores estrangeiros 1531-1900, de Paulo Berger.

 

2. In Dissertation on the gypsies.

 

3. In Memórias da cidade do Rio de Janeiro.

 

4. Proibindo o comércio de escravos pelos ciganos, foram numerosas as cartas, resoluções, posturas, leis, alvarás, bandos, portarias, provisões, etc., expedidos pelas autoridades.  Exemplo: 1760 ¾ Alvará. Recomendava às autoridades da colônia que usassem medidas repressivas contra eles [ciganos]. Proíbe de comerciarem escravos. Os que não respeitassem as diversas disposições estabelecidas no dito alvará deveriam ser degredados por toda a vida para a ilha de São Thomé ou para a do Príncipe. (Registrado a fol. 351 do Lo. X do Registro do Real Archivo. ¾ Antonio Delgado da Silva, Colleção da legislação portuguesa, 1750-1762, pp. 749-750). Apud Adolfo Coelho.

 

5. In Alexandre José de Mello Morais Filho, Os ciganos no Brasil e cancioneiro dos ciganos.

 

6.In Maria Graham. em Diário de uma viagem ao Brasil [1821,1822,1823], p. 286, escreve:

 

[...] garganta que conduz à lagoa Rodrigo de Freitas, através da qual um riacho de bela água fresca corre para o mar. Exatamente na sua foz há um lugarejo habitado por ciganos, que encontraram o caminho para aqui e preservam muito das peculiaridades do aspecto e de caráter em seu novo lar transatlântico. Conformam-se com a religião do país em todas as coisas exteriores e pertencem à paróquia de que o cura de Nossa Senhora do Monte é pastor. Mas esta conformidade não parece ter influenciado seus costumes morais. Usam seus escravos como pescadores. Uma parte de sua família reside habitualmente nos seus domicílios, mas os homens vagueiam pelo país e são grandes mercadores de cavalos.

 

Bibliografia

 

BERGER, Paulo. Bibliografia do Rio de Janeiro, viajantes e autores estrangeiros, 1531-1900. Rio de Janeiro: SEEC-RJ 2a ed., 1980.

 

CHAMBERLAIN, Sir Henry. Vista e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1818-1819. Rio de Janeiro, 1943.

 

COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.

 

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. 6a ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes 1940; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro INL: 1975. e v. 2 tomos (tradução de Voygage pittoresque et historique au Brésil, 1834, por Sérgio Milliet..

 

ENDER, Thomas. Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender (1817-1818). Petrópolis: Kapa, 2000.

 

GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821-2 e 1823. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956.

 

GRELLMANN, Heinrich Moritz Gottlieb. Die zigeuner. Trad. para o inglês, Dissertation on the gypsies, 2a ed. Londres. William Ballantine, 1807.

 

MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo. Os ciganos no Brasil e cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1981.

 

¾ Festas e tradições populares do Brasil. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1904.

 

¾ Fatos e memórias, pp. 95-141. Rio de Janeiro, Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1904.

 

¾ História e costumes. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro- Editor, s.d.

 

¾ Quadros e crônicas. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro- Editor, s.d.

 
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