O jornal
O Globo de 6/4/04, p. 20, registrou que será traçado o roteiro da
escravidão no Rio. Assim, está para recomeçar a revitalização dos
Bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo e adjacências. São recantos
cheios de história, plenos de fantasias e marcadamente tristes pelos
lamentos dos escravos que ali chegavam, da mãe África e dali partiam
para as Minas Gerais e outras capitanias, levados pelos comboieiros e
comissários dos fazendeiros, ou ficavam servindo seus senhores na mui
heróica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
É chegado o momento de
reflexão, a hora de levantar o véu que cobre os fatos que ocorreram,
naquelas paragens, por mais de duzentos anos (1583-1831). E são muitas
as interrogações, nem podemos cogitar de responder todas. Na verdade,
vamos tentar apenas responder uma: A questão dos ciganos. Qual a
participação deles no nefando comércio escravista? Lendo os livros mais
corriqueiros, os autores mais preconceituosos, aqueles que, de um ou do
outro modo, não queriam ou não podiam dizer a verdade, eles afirmaram
que os ciganos foram os principais comerciantes ou vendedores de
escravos, o que é uma insensatez. Lendo também os livros atuais de
pesquisadores desatentos, seguidores do "artista" francês Debret, ainda
encontramos a mesma fábula: a dos ciganos escravistas.
É curioso, mais de setecentos e sessenta
visitantes/viajantes1 estrangeiros que vieram ao Rio, no
Brasil-colônia e Império (ainda que excluamos uns 200, por motivos
vários), poucos abordaram o assunto ciganos x escravos. Podemos citar os
principais: Debret; Saint-Hilaire; Gendrin; Gabert; Jacquemont; Robert
Walsh; Kidder; Johann Pohl; Weech; Thomas Ender; Rugendas; Chamberlain;
Richard Burton; Freycinet; George Gardner; Maria Graham; Cunha Matos;
Eschwege e James Wells. Alguns dos citados, os pesquisei a fundo e nada
encontrei desfavorável aos ciganos; por exemplo: Burton e Maria Graham.
No que diz respeito a Gendrin, fizeram uma tradução capciosa de seu
texto e não tem valor, portanto. Gabert, este parece que nem existiu.
Quanto a Jacquemont, encontrei dois trabalhos seus: um na biblioteca do
Itamaraty, outro na biblioteca Nacional. Folheei 4000 páginas e o texto
que dizem ser dele (contra os ciganos) não existe. Chamberlain plagiou
Thomas Ender, ou vice-versa, no quadro ‘cigano’ vendendo escravo. E
Debret!? Este senhor, completamente ignorado na França, sua pátria, como
artista. Errou em muitas pranchas sobre o Brasil e sobre ciganos. Na
verdade, não retratou o Brasil: caricaturou. Em um artigo de Alfredo
Grieco, 'Atualizando Debret', que retiramos na internet, lemos: "Completamente desconhecido na França, onde além de ser aluno brilhante
e logo professor da Politécnica
(substituindo Gerard), foi assistente de David, é bastante mal visto
no Brasil, quem sabe por ter sido meio kitschificado."
Outro documento na internet tem este
título: “Debret: plagiador”? No tomo I de Viagem Pitoresca e histórica
ao Brasil, dentre as inúmeras representações de indígenas, algumas
chamam a atenção: eles são representados com pintura corporais muito
semelhantes (para não dizer idêntica) às de uma imagem de índios de uma
tribo de índios norte-americanos, presente em uma publicação sob o
título de Voyages and
travels en various parts od the world: during the years 1803, 1804,
1805, 1806, and 1807
(feita décadas antes) pelo naturalista da antiga Prússia, George
Heinrich von Langsdorff.” E para encerrar transcrevo o que nos informa o
site
www.pitoresco.com.br/laudelino/laudelel> que tem este título: “Época
de formação, primeiro período: 1816-1826. À página 3/11 lemos:
Contratados ou aproveitados? Dizendo expressamente o decreto acima
[referia-se aos franceses recém-vindos, inclui Debret]: “1o querendo aproveitar a capacidade, habilidade e ciência
de alguns estrangeiros beneméritos, que tem buscado a minha Real e
Graciosa Proteção...” evidente que eles vieram para buscar essa proteção
e não foi o governo que os mandou vir, como falsamente asseveram...
Portanto, concluo que, em se tratando de
ciganos, Debret não deve ser levado a sério, que por aqui esteve entre
1816-1831, nem quando travestido de antropólogo social, pois quando fala
de modos e costumes ciganos está reescrevendo Grellmann2.
Os
ciganos, à medida que foram chegando ao Brasil, especialmente Rio de
Janeiro, foram expelidos para o Valongo que então nada mais era que um
local pantanoso e pestilento, no dizer de Vivaldo Coaracy3. A
cidade em expansão, ultrapassou a rua da Vala [hoje Uruguaiana] e foi se
espraiando em direção ao Valongo. Novamente os ciganos foram expulsos
para outros pântanos. Isto nos dá a certeza de que não tiveram e não
puderam comerciar escravos, como querem dizer aqueles viajantes que por
aqui passaram nos séculos XVI a XVIII. No Rio antigo, aos ciganos que se
tornaram sedentários, as autoridades lhes designaram para residência os
brejos palustres, então considerados longínquos ao fim da rua do Piolho
[hoje Carioca], isto é, num local que seria depois o Rocio (hoje praça
Tiradentes). Aos ciganos, então, deve-se atribuir a glória ou grande
heroísmo por serem os primeiros habitantes do Valongo e de sobreviverem
em local tão insalubre. Posteriormente, mudaram para a rua dos Ciganos,
hoje rua da Constituição. Quanto à acusação de ciganos serem
escravistas, isto de fato é falso. Debret era empregado do
príncipe-regente, depois rei e evidentemente gozava das benesses da
corte, não achou conveniente, ou teve medo de indicar os verdadeiros
escravistas (ele perderia o emprego); foi mais fácil culpar os ciganos.
Estudiosos de história, mestrandos e doutorados, com algumas belas
exceções, também seguem a trilha de Debret. Poderão dizer que existem
papéis, relações, ofícios, comprovando o envolvimento de ciganos com
escravos. É verdade, porém não podemos esquecer que somente os ciganos
eram taxativamente excluídos4 do comércio escravista;
portanto, quando — eventualmente — exerciam este mister eram perseguidos
e presos. Outras etnias: portugueses, brasileiros, negros (pasmem!
Escravo podia comprar escravo), judeus, americanos, franceses, ingleses,
holandeses, espanhóis, podiam livremente exercer o nefando escravismo,
sem qualquer coerção. Daí não aparecerem jamais como escravistas, nem
eram presos ou perseguidos e não são registrados nas crônicas policiais.
Quem se atreveria enfrentar a ira dos irmãos Antônio e João Gomes
Barroso e de um Antônio Elias Lopes e de mais de 200 outros traficantes
de grosso trato? Elias Lopes logo presenteou ao rei uma chácara, em São Cristóvão...
E foi regiamente recompensado.
Realizam-se pesquisas no Arquivo Nacional
(ANRJ), sobre a participação dos ciganos no escravismo. Até agora, os
resultados são estatisticamente desprezíveis, levando em conta o
universo: três milhões de escravos, e 300 anos de escravidão.
Em 6/1/2002, no caderno 2 de
O Estado de São
Paulo, lemos interessante artigo de Haroldo Ceravolo Sereza, que diz
o seguinte: “Debret coloca em duas
pranchas ciganos no comando do negócio de escravos, o que é um pequeno
delírio histórico — ou porque Debret não viu o óbvio, ou seja, que a
elite brasileira comandava o negócio, ou porque o óbvio não podia ser
visto”.
Eu quero reescrever a história oficial; quero
desmistificar Debret; quero inocentar os ciganos da insustentável,
risível e grotesca acusação de que foram escravistas. Leitores e
leitoras, amigos (as), não se detenham neste pequeno artigo, duvidem,
investiguem, aprofundem estes apontamentos. O Arquivo Geral da Cidade do
Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional, O Arquivo Nacional e o Instituto
Histórico Nacional entre outros estão abarrotados de relações, pacotes,
listas, jornais e outros documentos sobre escravos, escravistas e
ciganos. Esses, só fortuitamente,
repetimos comerciavam escravos. Outros ciganos eram andadores do rei,
isto é entregavam mensagens fazendo papel de correios e mais tarde
alguns se tornaram meirinhos5 (oficiais de justiça).
Cigano é alegre e gosta de festa. Em 1763,
participaram ativamente das festas reais em honra do primogênito de d.
Maria I. Muitos ciganos vieram com d. João VI para o Brasil, em 1808.
Animaram as festas do casamento do d. Pedro I com d. Leopoldina e, no
período áureo de 1808-1818, foram sempre convidados a participarem das
comemorações da corte. Joaquim Antônio Rabelo, cigano rico, prestamista,
benemérito e humanitário bancou a festa dos ciganos para d. João VI e
chegou ao posto de alferes.
Recomendamos como ato de gratidão e de
reparação do povo carioca aos ciganos, que se inaugure (na revitalização
dos bairros citados), uma placa, um marco no Valongo, dedicado aos
ciganos, e que sejam reconhecidos como os primeiros desbravadores e
povoadores do Valongo; habitantes do Rio de Janeiro e que ajudaram, de
uma forma ou de outra, a colonizar nosso município: Estabeleceram-se
aqui entre outras plagas, no Catumbi, na Lagoa Rodrigo de Freitas6,
nas Praças XV e Tiradentes (que já foi chamada de Campo dos ciganos),
Inhaúma e outros pontos de nossa cidade.
Como encerrar este
trabalho? Dizendo que o Brasil não é a soma de portugueses, índios e
negros. É muito mais! Existem milhares, quiçá milhões de outros
indivíduos de outras etnias e entre elas sobressai a etnia cigana.
“O cruzamento das três raças
efetuou-se, sendo o cigano a solda que uniu as três peças de fundição da
mestiçagem atual do Brasil”. (Mello Morais Filho,
Os ciganos no Brasil, p. 27).
Notas
1. Bibliografia do Rio de Janeiro,
viajantes e autores estrangeiros 1531-1900, de Paulo Berger.
2. In
Dissertation on the gypsies.
3. In
Memórias da cidade do Rio de
Janeiro.
4. Proibindo o comércio de escravos pelos
ciganos, foram numerosas as cartas, resoluções, posturas, leis, alvarás,
bandos, portarias, provisões, etc., expedidos pelas autoridades.
Exemplo: 1760
¾
Alvará. Recomendava às autoridades da colônia que usassem medidas
repressivas contra eles [ciganos]. Proíbe de comerciarem escravos. Os
que não respeitassem as diversas disposições estabelecidas no dito
alvará deveriam ser degredados por toda a vida para a ilha de São Thomé
ou para a do Príncipe. (Registrado a fol. 351 do Lo.
X do Registro do Real Archivo.
¾
Antonio Delgado da Silva, Colleção da legislação portuguesa, 1750-1762,
pp. 749-750). Apud Adolfo
Coelho.
5. In
Alexandre José de Mello Morais Filho,
Os ciganos no Brasil e cancioneiro
dos ciganos.
6.In Maria Graham. em
Diário de uma viagem ao Brasil
[1821,1822,1823], p. 286, escreve:
[...] garganta que
conduz à lagoa Rodrigo de Freitas, através da qual um riacho de bela
água fresca corre para o mar. Exatamente na sua foz há um lugarejo
habitado por ciganos, que encontraram o caminho para aqui e preservam
muito das peculiaridades do aspecto e de caráter em seu novo lar
transatlântico. Conformam-se com a religião do país em todas as coisas
exteriores e pertencem à paróquia de que o cura de Nossa Senhora do
Monte é pastor. Mas esta conformidade não parece ter influenciado seus
costumes morais. Usam seus escravos como pescadores. Uma parte de sua
família reside habitualmente nos seus domicílios, mas os homens vagueiam
pelo país e são grandes mercadores de cavalos.
Bibliografia
BERGER, Paulo.
Bibliografia do Rio de Janeiro,
viajantes e autores estrangeiros, 1531-1900. Rio de Janeiro: SEEC-RJ
2a ed., 1980.
CHAMBERLAIN, Sir Henry. Vista e costumes da
cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1818-1819. Rio de Janeiro, 1943.
COARACY, Vivaldo.
Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio,
1955.
DEBRET, Jean Baptiste.
Viagem pitoresca e histórica ao
Brasil. 6a ed. São
Paulo: Livraria Martins Fontes 1940; Rio de Janeiro: Instituto Nacional
do Livro INL: 1975. e v. 2 tomos (tradução de Voygage pittoresque et
historique au Brésil, 1834, por Sérgio Milliet..
ENDER, Thomas.
Viagem ao Brasil nas aquarelas de
Thomas Ender (1817-1818). Petrópolis: Kapa, 2000.
GRAHAM, Maria.
Diário de uma viagem ao Brasil e
de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821-2 e 1823.
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956.
GRELLMANN, Heinrich Moritz Gottlieb.
Die zigeuner. Trad. para o
inglês, Dissertation on the
gypsies, 2a ed.
Londres. William Ballantine, 1807.
MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo.
Os ciganos no Brasil e cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia, 1981.
¾ Festas e
tradições populares do Brasil. Rio de Janeiro: H. Garnier,
Livreiro-Editor, 1904.
¾ Fatos e
memórias, pp. 95-141. Rio de Janeiro, Paris: H. Garnier,
Livreiro-Editor, 1904.
¾
História e
costumes. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro- Editor, s.d.
¾
Quadros e
crônicas. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro- Editor, s.d.
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