CIGANOS NA HISTÓRIA DO BRASIL (1568-2005)
E SUA INFLUÊNCIA NA MÚSICA E NA DANÇA POPULAR (Com respingos de
folclore)
por Asséde Paiva
- 02/02/2015 |
4008 acessos. |
|
|
Resumo:
Referimo-nos aos ciganos no Brasil e esclarecemos várias questões
como: De onde vieram? Quando vieram? Por que vieram? Onde foram
estabelecidos? O quê comerciavam? Sua influência na expansão
territorial, política, música, poesia e na dança. E onde entram no
folclore. Focalizamos principalmente sua participação no comércio de
escravos. Debret (artista francês que aqui esteve) não viu; se viu,
omitiu que portugueses e brasileiros comandavam o tráfico negreiro.
E Debret se tornou fonte de referência para os ciganólogos pósteros,
que não se deram conta de que os ciganos, excluídos ontem e hoje,
jamais poderiam ser grandes ou pequenos traficantes de escravos.
This work is about the presence of gypsies in Brazil and explains
several questions as: where did they come from? When did they come?
Why did they come? Where were they established? What kind of
businesses did they were involved? Their influence in the our
territorial expansion, politics,
music, poetry and in the dance. Their contributions to the folklore.
We focused mainly on their involvement in the slaves trade. Debret
(the French artist) omitted that Portuguese and Brazilians commanded
the slave traffic. And Debret became a reference source for the
gypsies researchers, that didn't perceived that the gypsies,
excluded yesterday and today, couldn’t ever be a big or a small
slave dealer.
C I G A N
O [do grego bizantino
athinganos, pelo fr. tzigane ou tsigane.] S. m. 1. Indivíduo de um
povo nômade, provavelmente originário da Índia e emigrado em grande
parte para a Europa Central, de onde se disseminou, povo esse que
tem um código ético próprio e se dedica à música, vive de
artesanato, de ler a sorte, barganhar cavalos, etc. [Designam-se a
si próprios rom, quando originários dos Balcãs, e manuche, quando da
Europa Central.] Sin.: boêmio, gitano, calom. (Novo Dicionário
Aurélio, Século XXI, p. 470)
A
cronologia sobre ciganos no Brasil é um rol de medidas iníquas,
injustas, cerceadoras da LIBERDADE mais elementar: o ir-e-vir e
estar de um povo. São mais de quatrocentos anos de exclusão e de
perseguição sistemática. Um grande líder cigano, Nicolae Gheorghe
disse em língua romani: “Projasar
man opre pirend
¾
as muro djiben semas opre
chengend”
[Enterrem-me em
pé. Passei
de joelhos toda a minha vida]. Por que disse isto? Porque está
cansado de ser humilhado.
Escrever sobre ciganos é tarefa árdua,
alguns pensarão que é tema perfunctório, mas se dissermos que é uma
etnia com 300000
a
800000
indivíduos, no Brasil, mudamos de opinião. Vale o esforço.
Pesquisei, analisei, busquei, manuseei tudo relacionado com cigano.
E vou começar afirmando agora e em outras páginas deste trabalho que
cigano, no Brasil, nunca foi escravista e que levou a culpa sem
reclamar.
Deus! Ó Deus!
Onde estás que não respondes?Em
que mundo, em qu’estrela tu t’ escondes...
Que tem esta frase com os ciganos? Há
estreita relação. É de um poema de Castro Alves
(1847-1871),
em “Vozes d’África.” Ele nos diz muito: é uma metáfora que lembra
Jesus pregado na cruz, quando, segundo o Evangelho, em desespero e
dor teria perguntado: Pai,
por que me abandonaste?
Castro Alves fez um apelo à sensibilidade dos homens para que
cessassem o comércio hediondo dos escravos. O poeta tem descendência
cigana. Está em Gilberto Freyre[1]
(1900-1987) que, aliás, só fez em sua obra esta citação favorável
aos ciganos. O
grande sociólogo, autor de Casa-grande e senzala;
Sobrados e mocambos e muitos outros livros sócio-antropológicos,
é bastante cáustico com os ciganos.
Castro Alves, poeta condoreiro, (1847-1871) em
Navio negreiro dá uma
pista de quem eram os comandantes dos tumbeiros (navios que traziam
escravos para o Brasil). Em certo ponto do seu poema, ele canta:
Auriverde pendão da minha
terra, que a brisa do Brasil beija e balança... Então a resposta
a uma dúvida está aí: “tumbeiros” eram brasileiros, portugueses e
outros, sob a bandeira do Brasil. Incrível! Há quem diga que os
ciganos eram donos desses “tumbeiros”. Gastão Cruls, por exemplo.
Alberto da Costa e Silva (membro da ABL, escritor, sociólogo e
antropólogo de fama internacional), em seu livro
Um rio chamado Atlântico,
registra, no capítulo Na
margem de cá, p. 158, colaboração de Eduardo Portela, o
seguinte: “Os negreiros tinham a maioria de suas tripulações
formadas por marinheiros negros”...
Em
História dos ciganos no Brasil
(inédito), Rodrigo Corrêa Teixeira (graduado em Geografia,
pós-graduado em História, professor), nos informa que para o Brasil
vieram ciganos ibéricos e não-ibéricos, ou seja,
calom e rom
respectivamente. O rom (assim
os ciganos querem ser chamados) que aqui
chegou mais cedo teria sido Jan Nepomuscky Kubitschek, que trabalhou
como marceneiro no Serro e em Diamantina. Casou-se
com brasileira. Em seu matrimônio com Teresa Maria de Jesus Aguilar,
teve três filhos. O primeiro foi João Nepomuceno Kubitschek, que
viria a ser um destacado político; o segundo Carlos Kubitschek e o
terceiro foi Augusto Elias Kubitschek, um comerciante com escassos
recursos, que viveu toda sua existência em Diamantina; casado com
Maria Joaquina Coelho. Uma de suas filhas: Júlia Kubitschek casou-se
com João Cesar de Oliveira e foram os pais de Juscelino Kubitschek
(médico, deputado federal, prefeito de Belo Horizonte e Presidente
da República, (1902-1976), que depois se tornou presidente do
Brasil. A genealogia de nosso grande presidente JK, até o bisavô,
está no site diamantinanet.com.br
Um depoimento sobre a origem cigana de
Juscelino foi feito pelo jornalista João Pinheiro Neto (ex-Ministro)
às entrevistadoras: Aspásia Alcântara Camargo, Helena Maria Bousquet
Bomeny e Maria Luísa d’Almeida Heilborn, para o Centro de Pesquisa e
Documentação Histórica
(CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas
(FGV),
de onde extraí este texto
ipsis litteris:
Como o senhor definiria Israel Pinheiro?
[Pergunta das entrevistadoras].
“O Israel basicamente é um grande capitão de
obras, um grande construtor, um grande realizador, também sem
nenhuma preocupação de ordem ideológica. Um pragmático parecido com
o Juscelino em muitos pontos, menos na simpatia pessoal. Se bem que
quando o Israel queria também era simpático; mas o Juscelino era
sempre simpático. O Juscelino era um cigano. Quando fui à Tchecoeslováquia perguntei se havia Kubitschek lá. Aliás, a D. Sara
já tinha estado lá e visto no catálogo que há centenas de
Kubitschek. Ele era da Boêmia, daí gostar de violão, de música, de
dança, de mulher.”
Há provas contundentes de que portugueses
comandavam o tráfico negreiro. Na Biblioteca Nacional, encontram-se
dois documentos básicos: No primeiro,
99D,17,9,
em Obras raras,
negociantes lusos reclamam perdas e danos. Tem este título: “Das
Perdas e Damnos experimentados pelos Negociantes Portugueses, em
consequencia dos apresamentos e feitos pelas forças Britannicas nos
Navios empregados no resgate de escravos até trinta e hum do mez de
Maio de 1814.” (Grafia do original).
Segue relação de 35 navios. O outro documento é uma petição de
negociantes de escravos contra o estabelecimento da quarentena de
navios negreiros. Começa assim: “Dizem os negociantes desta Praça,
sócios e consignatários dos de África, que...”
[FBN-26,4,112,
Seção
Manuscritos]. Subscrevem quarenta e seis traficantes, todos
portugueses.
Ciganos
participaram das “Entradas e Bandeiras” que tanto alargaram o
território nacional. Há esta pista em Dornas Filho (1902-1962)
“Moradores do termo de Mariana e dos distritos de Tapera, Turvo e
Calambao representaram contra a “bandeira” do capitão José Leme da
Silva e seus irmãos, acusando-os de acoitadores de ciganos”. E
também a magnífica frase do prof. Maffesoli[2] nos orienta sobre os deambulantes assim: “Há
belas páginas de Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala, em que
fala de nômades que chegam ao Brasil, são vagabundos, condenados
pela justiça etc. e ao mesmo tempo é graças a essa espécie de
barbárie que o Brasil pôde existir”.
Os ciganos vieram para o
Brasil oficialmente em 1574,
quando João de Torres, tendo sido condenado às galés, fez petição ao
rei dom Sebastião para que comutasse sua pena para degredo perpétuo
no Brasil, visto que estava doente e não agüentaria as lides do mar.
Entretanto, oficiosamente já estavam aqui desde
1568, quando para cá
veio João Giciano, mulher e quatorze filhos[3].
Existiam disposições régias proibindo
entrada de ciganos em Portugal e que aqueles que lá estavam, se
intentassem manter seus modos de vida e sua língua, deviam ser
expulsos para o Maranhão. Em
27 de agosto de
1865, Ordenações do
Reino diz o seguinte: “Fica comutado aos ciganos o degredo da África
para o Maranhão.” Em 15
de julho de 1686,
Dom Pedro II, rei de
Portugal, determinou que os ciganos vindos de Castela fossem
exterminados e que filhos e netos (de ciganos) portugueses, tivessem
domicílio certo ou enviados para o Maranhão.
Especulando um pouco, as mais importantes contribuições dos ciganos
para nosso país foram negligenciadas pelos historiadores, qual seja,
de coparticipantes da integração e da expansão do território
nacional. De norte a sul, de leste a oeste, em todos os lugares, lá
estavam eles, viajando, negociando animais, arreios, consertando
engenhos, alambiques, soldando tachos, levando notícias, dançando,
executando atividades circenses, trocando objetos vários e lendo a
buena-dicha. Mas como eram? Como viviam? Onde ficavam? Na verdade
eram e são como hoje: alegres, prudentes, desconfiados, arredios e
excelentes negociantes. Hoje não vendem tantos cavalos; entretanto,
quando saíram de Portugal, nos primeiros anos após o descobrimento,
à cata de aventuras, aportando em terras de Pernambuco, traziam
grande número de eqüinos de raça árabe. Infiltrando esses animais
pelo Piauí e por todo o norte brasileiro, formaram as bases
ancestrais dos nossos cavalos nordestinos, que apresentam todas as
características do sangue árabe. Gustavo Barroso[4]
(1888-1959), em seu texto
A raça, admite que os
ciganos tiveram grande influência no povoamento do Ceará, este tema
até hoje permanece obscuro; merece ser aprofundado. O governo de
Pernambuco não só os expulsou para o Ceará, como também os
encarcerou na Ilha de Fernando de Noronha
(1739).
Isto é fato, pois há uma belíssima poesia, a “Cigana do cajueiro”,
coligida por F. A. Pereira da Costa[5]
(1851-1923).
Portaria de
1718
mandava prender todo cigano que andasse pela Bahia, com ou sem
licença do governo e, na Carta de
1725,
mandava caçar todos ciganos que resistissem; isto é, que fossem
passados pelas armas. Apesar da perseguição interminável, o número
de ciganos na Bahia cresceu tanto que foram obrigados a
concentrarem-se em um bairro, a Mouraria, e depois em outro, Santo
Antônio do Além do Carmo.
Com relação a Minas Gerais, terra proibida
a estrangeiros, e os ciganos eram assim considerados, eles
enfrentaram a situação e, naturalmente, como todos os homens e
mulheres da época, procuraram enriquecer-se com ouro e diamantes,
quer garimpando, quer negociando com garimpeiros. Existem bons
livros sobre ciganos em Minas Gerais, entre
eles exalta-se o de João Dornas Filho.
Mas quem o lê verifica a via-crúcis dos ciganos em MG.
Não tiveram sossego, jamais. Perseguidos sempre,
andavam de periferia em periferia das cidades, acampavam nos
inóspitos lugares e negociavam ou montavam seus teatros mambembes e
liam a buena-dicha. Eram detestados em Minas desde 1761, mas claro,
estavam lá antes disso. Dornas Filho é quem nos indica que os
ciganos procediam de todos os lados: de Belém do Pará, Maranhão,
Ceará, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro, Pernambuco/Recife,
confirmando a tese de que estavam em todo território brasileiro,
desde cedo, e ajudando a ampliá-lo. Andando sem parar pelas estradas
que não passavam de trilhas. Foram conhecidos também como
judeus,
turcos,
gringos e mascates. E
quanta culpa levaram por causa dessa confusão étnica e profissional!
Ciganos que aportaram no Rio de Janeiro foram expelidos para o
Valongo[6]
em 1771, local pantanoso e mais infecto da cidade. Leia em Vivaldo
Coaracy[7]:
No ângulo cujos lados as duas propriedades formavam ficava uma área
que parece ninguém pretendera por inaproveitável. Constituída de
brejos e alagadiços que as menores chuvas inundavam, tinha fama de
pestilenta pelos miasmas que dela exalavam. Os pauis que formavam
tornavam-na imprópria tanto para a lavoura como para que nela se
erigissem construções permanentes. Nesse pantanal abandonado e
desprezado, onde ninguém os viria incomodar,
ergueram os seus míseros e toscos casebres de moradia os ciganos.
Quando a real história do Valongo for escrita, vão reconhecer o
pioneirismo dos ciganos, pois foram eles que desbravaram aqueles
pântanos onde hoje se situam os bairros Saúde, Gamboa e rua do
Livramento. Quando o comércio de escravos foi desviado da Rua
Direita, hoje Primeiro de Março, para o Valongo, os ciganos passaram
a ser culpados pelo escravismo. Depois, com o saneamento da cidade,
foram expulsos do Valongo, dispersaram-se, alguns tornaram-se
andadores do rei ou meirinhos honestíssimos, como nos diz Mello
Morais Filho[8]
(1844-1919).
Os ciganos no Rio de Janeiro foram mais que meirinhos ou negociantes
ou leitores de buena-dicha, também influíram na música e na dança
popular. Faz parte do nosso imaginário e podemos afirmar que, quando
falamos cigano, pensamos música.
Leiam no ótimo artigo de Ary Vasconcelos[9],
na revista Piracema n.
1,
ano 1.
p. 107, o seguinte: “... e posso hoje, em primeira mão para
Piracema [revista],
oferecer dados novos que modificam e ampliam a história do samba,
dando aos ciganos uma importância fundamental, até hoje totalmente
desconhecida, e reciclando toda a geografia do gênero. Segundo
informações de Pixinguinha e João da Baiana, cinco eram os
principais redutos do samba na segunda década do século. [Interessa
apenas o n. 1, para o caso em tela: A casa da tia Ciata].[10]
Pelo Telefone
nasceu na casa da tia Ciata. [...].
É que Pixinguinha e João da Baiana me revelaram que havia um grupo de
compositores, cantores e músicos ciganos que cultivavam o samba com
grande maestria e que trouxeram também uma contribuição importante,
talvez decisiva, ao gênero. Eles mencionaram um deles
¾ o Saudade
¾
excelente cantor de sambas e que também freqüentava a casa da tia
Ciata”
.
A
informação abaixo colhi em
Vozes[11],onde
está publicado excelente artigo do ciganólogo Ático Vilas-Boas da
Mota[12],
pp.
527-30,
sob o título Ciganos: folclore
e animais.
A
presença dos ciganos no folclore brasileiro ainda não foi totalmente
dimensionada nem estudada de maneira sistemática, isto é o que dela
se sabe só nos chega de maneira esparsa ou fragmentária, valendo
ressaltar que tal não significa inexpressividade.[...] Acredito, no entanto, que a influência cigana em nosso folclore, é
muito maior do que à primeira vista se poderia imaginar.
Em
trabalho recente e erudito, Samuel Araújo[13]
e Antônio Guerreiro[14]
apresentaram e defenderam a tese de que há muita contribuição cigana
na música popular brasileira, citando Rugendas, in
Viagem pitoresca através do
Brasil, que o lundu
era, na coreografia, no sapateado e na instrumentação, carregado de
nuanças das danças ciganas.
Encontra-se em
As mulheres de
mantilha, p.110,
de Joaquim Manoel de Macedo, informação de que, bem ou mal
fundamentado, o lundu seria “imitação da zarzuela espanhola”, o que
nos leva de volta aos ciganos e seus trejeitos.
Uma das brincadeiras mais estimadas no
carnaval do Recife é a La ursa, cujas origens encontram-se nos ciganos da Europa que
percorriam a cidade com seus animais, presos numa corrente,
dançando, de porta em porta, em troca de algumas moedas, ao som da
ordem: dança la ursa. Mostradores de ursos também eram encontrados no
interior de Minas Gerais, segundo Dornas Filho.
O traje cigano tem servido, ao longo dos tempos modernos
brasileiros, de sugestão para fantasias de foliões, além de motivos
para carros alegóricos durante nossos carnavais, a exemplo do que
vem acontecendo com o traje da “baiana”, estilizado pela famosa
cantora Carmem Miranda (1909-1955). Evidentemente, estes últimos
exemplos se enquadram no metafolclore ou nas denominadas
manifestações parafolclóricas.
No Folclore pernambucano, in
Anais Pernambucanos, de
Francisco Augusto Pereira da Costa,
encontramos referências a ciganos nos chamados pastoris (pequenas representações dramáticas
com dança e canto, realizadas diante de presépio entre o dia de
Natal e de Reis, inspirados nos autos da Natividade e nos vilancicos
portugueses),
onde algumas ciganas fazem parte do auto, declamando poeticamente a
sorte do menino Jesus. Transcreve-se integralmente porque é muito
comovente:
|
1
Somos ciganas do Egito
Que viemos de Belém,
Adorar a um Deus menino
Nascido p’ra nosso bem...
2
Atenção peço, senhores,
Para esta breve leitura,
E uma atenção piedosa
A toda e qualquer criatura.
3
Deste menino formoso
Vindo de origem divina,
Em suas mãos pequeninas
Eu vou ler a sua sina.
4
Dai-me licença senhora,
Guiai o meu pensamento,
Para dizer o que sinto
Para ler com acento.
5
Eterno rei desses céus,
Que dando ao mundo alegria,
Por prodígios só nasceu
Da Santa Virgem Maria.
6
Redentor da humanidade
Nascido p’ra nosso guia,
Mudou o céu em presépio
Transformou a noite em dia. |
7
Se a boa dita e a nossa,
Quereis meu bem, que vos diga,
É a mesma que bem sabeis,
Mas permitai que prossiga.
8
Dai-me soberano infante
Daí-me esta linda mãozinha,
E vereis que uma cigana
A vossa sina advinha.
9
Primeiramente a meus olhos
Vejo com suma alegria,
Que sois com um grande extremo
Querido de uma Maria.
10
E prevenida ela um dia
Pelo supremo juiz,
Fugirá cedo convosco
P’ra o mais remoto país.
11
E decorridos doze anos
De tão doce companhia
Terás milhares de penas
Sem lhe escapar um só dia.
12
Enquanto andardes no mundo
Sereis sempre perseguido,
Mas, pelos prodígios divinos
Jamais vós sereis vencido. |
13
Se um amigo no rosto
Certo dia vos beijar,
Às mãos cruéis da justiça,
Ele vos há de entregar.
14
Outro vos há de negar,
Em perguntas à porfia,
Respondendo que não sabe
Quem sois vós, minha alegria.
15
Não tereis vida mui larga,
Pois, com as mãos estendidas
Atirarão numa cruz
Uns ingratos homicidas.
16
E depois de redimirdes
A humanidade querida
Vencereis a própria morte,
Lograreis a eterna vida.
17
Se porque digo a verdade
Mereço eu uma esmolinha,
Dai-me só a vossa graça
E a todos desta lapinha.
|
|
Na coleção de estudos brasileiros, série
Marajoara, no
20,
lemos no Baile do Meirinho
trechos em Bailes pastoris na
Bahia, coligidos por Mello Morais Filho, Manoel Quirino, J. N.
de Almeida Prado e Carlos Ott, onde aparecem lindas ciganas
declamando. Vejam estas quadras:
Surge uma cigana mercando:
As chitas finas e boas,
cambraias, lenços também;
de mimo eu vou levando
para as portas de Belém.
Venderei algumas
a quem encontrar,
menos as mais finas
que são p’ra levar.
|
Um dos costumes dos ciganos é o de apresentar
o recém-nascido à Lua para tê-la como madrinha do filho, atrair boa
sorte, proteção e saúde. A criança é erguida acima da cabeça pela avó ou
tia que recita:
Lua, Lua, luar, /
Toma teu andar, / Leva esta criança ,/
E
me ajuda a criar, / Depois de criar / Torna a me dar!
O texto supra é encontrado no
Dicionário de folclore brasileiro
de Luís Câmara Cascudo, p.
431.
Ele nos informa que é herança de Portugal, mas temos indícios de que
foram os ciganos que nos legaram este costume. Os que vieram de Portugal
nô-lo trouxeram.
Alexandre José de Mello Morais Filho (citado)
faz extensa e minuciosa descrição de uma festa de ciganos (bródio/abieu),
no beco do Bem-bom, Rio de Janeiro, em seu livro
Os ciganos no Brasil, pp.
38-41.
Ele chama a dança de fandango. Apresenta-se esta dúvida: Foram, os
ciganos, criadores desta dança ou somente a divulgaram?
Está bem
provado no excelente livro de José Ramos Tinhorão[15]:
Fado dança do Brasil cantar de
Lisboa que houve simbiose entre o lundu e as umbigadas dos negros.
Daí o fado junta não só o castanholado do fandango às umbigadas do
lundu, mas também amplia o papel do canto, trocando estribilhos marcados
por palavra pelo intermezzo
(pequena peça musical intercalada noutras maiores)
cantado...
Encontrei no livro
500 anos da música popular
brasileira, editado pela FAPERJ, à página 34, poesia de Gregório de
Matos Guerra que bem poderia ter visto ciganas bailando.
Não usam de castanhetas,
Porque cos dedos gentis
Fazem tal estropeada,
Que de ouvi-las me estrugi:
Que bem bailam as mulatas,
Que bem bailam o Paturi.
Lembro que pela cor acobreada, os ciganos
poderiam facilmente confundir-se com mulatas. Informo ainda que é
antiquíssimo costume cigano estraladejar os dedos, sendo que castanholas
foram adotadas quando foram para a Espanha.
Registra-se a valiosa contribuição dos ciganos
para o circo no Brasil, tendo alguém dito que não se pode escrever a
história do circo sem falar nos ciganos. A história ensina que em
1727,
Dom Antônio de Guadalupe, bispo do Rio de Janeiro, com jurisdição nas
Minas, pediu providências contra ciganos que realizavam “com grande
aparato, comédias e óperas imorais”.
Viajantes, cientistas, aventureiros, comerciantes e militares
estrangeiros que vieram ao Brasil, indiciaram os ciganos como
comissários de escravos. E o
português, o brasileiro e outras etnias? Até que se compreende, afinal
aqueles senhores/viajantes precisavam da cooperação dos mandatários
locais, para alcançarem seus objetivos. Governadores-gerais e vice-reis
foram grandes traficantes. O rei de Portugal, vendo que era bom negócio,
avocou o privilégio do tráfico. Mas os viajantes não viram isto,
culparam os ciganos. Imaginem os ricaços da época, cheios de empáfia e
poderosos, eles jamais tolerariam a verdade. Se os portos do Brasil
foram abertos às nações amigas em
1808,
é lógico que os “tumbeiros” foram, em esmagadora maioria, de propriedade
de português ou brasileiro, cristãos-novos[16]
e/ou
judeus. A corrente da escravidão é esta: Na África:
®
pombeiros, tangosmanos / tangomaus ou lançados;
®
No mar: os tumbeiros;
®
No Brasil: comissários, comboieiros e tropeiros; e em todos os elos da
corrente estavam os portugueses, brasileiros, cristãos-novos[17]
e outros que não ciganos.
Um “artista” francês chegou ao Brasil em 1816
com a missão artística francesa e chamava-se Jean Baptiste Debret
(1768-1848).
Era um homem amargo, havia perdido o filho e separado da esposa. Ficou
famoso por ter “retratado” o Brasil em
145
estampas e por circunstanciadas descrições. Com respeito aos ciganos,
ele fez três desenhos (pranchas):
Mercado de escravos no Valongo;
Interior de uma casa cigana e
Cigano indo para a roça. Errou
em todas, não retratou: idealizou. Botou para fora toda amargura,
preconceito e recalque contra os ciganos. Demonstrou ter mínimos
conhecimentos sobre este povo. Foi, mais tarde, questionado ligeiramente
por Bento da Silva Lisboa e
J. D.
Moncorvo de Ataíde, especialistas que analisaram suas aquarelas e
concluíram que algumas eram verdadeiros deboches.
Felizmente, o excelente e erudito jornalista Haroldo Ceravolo Sereza, em
6/1/2002, no caderno 2,de O Estado
de São Paulo, levantou a
questão: Por que Debret não teve coragem de mostrar que brasileiros e
portugueses dominavam o comércio de escravos? E respondeu: “Debret
coloca em duas pranchas ciganos no comando do negócio de escravos, o que
é um pequeno delírio histórico — ou porque Debret não viu o óbvio, ou
seja, que a elite brasileira comandava o negócio, ou porque o óbvio não
podia ser visto”.
Aquele que quiser se aprofundar no tema escravos/ciganos deverá ler meu
manuscrito Brumas da história...
onde desmentimos todos aqueles que difamaram/vilipendiaram os ciganos.
Concluímos, sem sombra de dúvida, que a participação dos ciganos, no
comércio escravista, foi mínima, quase zero.
Francisca Roiz, cigana, em 1603 alimentou a comitiva do
governador-geral, Francisco de Souza. Ela fora contratada pela Câmara
para isso e saiu-se muito bem. Também montou a primeira loja em São Paulo. Na
petição, a cigana se comprometia a ganhar apenas 10%, o que foi motivo
de elogio, porque na terra paulistana imperava a idéia de lucros
exagerados a curto prazo[18].
Lemos em d’Oliveira China, apud
Mello Morais Filho, que descendem de João Costa Ramos, os conhecidos
Costas, notáveis cantadores e tocadores de viola, francos e generosos; o
velho tronco Luiz Rabelo de Aragão perpetuou-se nos Rabelos, poetas e
literatos, entrelaçou-se com a família Cabral, que nos tem dado oradores
parlamentares, oficiais do exército, homens conceituados no magistério,
no fórum e na tribuna sagrada (sacerdotes). A família dos Helena. Os
Cantanhede, homens vencedores em vários ramos de atividade (engenheiros,
médicos, professores, administradores).
Em 1944, em plena guerra mundial, os ciganos de São Paulo levaram ao
governo brasileiro sua solidariedade em face da agressão dos nazistas,
ofereceram-se como voluntários em defesa da pátria e também entregando
donativos em dinheiro e jóias de ouro para auxiliar no custeio da
defesa.
Como encerrar este
trabalho? Dizendo que o Brasil não é a soma de portugueses, índios e
negros. É muito mais! Existem milhares, quiçá milhões de outros
indivíduos de outras etnias e entre elas sobressai a etnia cigana.
“O cruzamento das três raças efetuou-se, sendo o cigano a solda
que uniu as três peças de fundição da mestiçagem atual do Brasil”.
(Mello Morais Filho, Os ciganos no
Brasil, p. 27).
|
|