O
que é que a baiana tem?
Responderei a esta pergunta no fim deste texto. Agora, vou descrever
ciganas. Desde o princípio dos tempos ou desde o ano
1000, para ser mais
exato, temos informações e vasta iconografia cigana. Os bons autores
descrevem suas roupas que, no geral, são constituídas de alegres
estampas, amplas saias, coloridos lenços, corpetes de veludo. Claro que
as descrições variam de autor para autor e segundo a geografia em que
vive o povo cigano. Concluirei, no fim, por uma hipótese inovadora,
extravagante para alguns, mas difícil de contestar. Informo que os
ciganos estão no Brasil desde 1568 (João Giciano, foi o primeiro) e em
todos os quadrantes da nossa pátria. Foram em tão grande número na Bahia
que tiveram um bairro especial designado para eles. O que diz a
história:
31 de julho, 1718
¾
No governo de dom Pedro Antônio de Noronha, Marquês de Angeja, 3o
vice-rei (1714-1718), chegavam os primeiros ciganos à cidade da Bahia.
“Eu, Dom João, pela graça de Deus etc. faço saber a V. Mercê que me
aprouve banir para essa cidade vários ciganos homens, mulheres e
crianças
¾
‘devido ao máo e escandaloso procedimento com que tem se portado neste
reino’. Tiveram ordem de seguir em diversos navios destinados a esse
porto, e tendo eu proibido, por lei recente, o uso de sua língua
habitual, ordeno a V. Mercê que cumpra essa lei sob ameaça de
penalidades, não permitindo que ensine a dita língua a seus filhos, de
maneira que daqui em diante o seu uso desapareça.” Propagaram-se por tal
forma os ciganos que se tornou a Mouraria pequena para contê-los pêlo
que a Câmara designou também para moradia dos ciganos outro bairro da
Freguezia de Santo Antônio d’Alem do Carmo. Apud José Carlos de Macedo
Soares, em Santo Antonio de
Lisboa, militar no Brasil. E In Resumo chronologico e noticioso da
província da Bahia desde seu descobrimento em 1500. De José Alves do
Amaral, apud José B. China “Os ciganos no Brasil”, p. 62.
Pois
bem, a cigana da Bahia e de outras plagas pode assim ser caracterizada:
Usa saias longas, rodadas, geralmente estampadas; coletes bordados, com
miçangas e lantejoulas coloridas; panos de fita de cores vivas, com
quatro ou cinco ordens de folhos (tiras de fazenda pregueada ou
franzida); a partir da cintura, o corpete é justo e afogado, a manga
curta, franzida ou lisa; superpõe até sete saias o que lhe realça as
ancas ou quadris, até parecem exagerados; sob a primeira saia traz um
bolso
kissi, que funciona como verdadeira caixa forte, pois lá põem moedas
de ouro, dinheiro, jóias, talismãs; pende-lhe de uma fita, em regra de
seda em torno do pescoço, uma cruz de ouro ou imitativa deste metal; da
cintura desce-lhe uma avental de chita com grandes enfeites e fitas; às
costas lança pequeno xale de cor variada, com larga franja; das orelhas
pendem-lhe brincos de ouro ou ouropel; a cabeça da casada é coberta com
lenço de seda de cores vivas; usa sapato, bota branca ou preta, mas
também anda descalça; gosta de usar flores: jasmim, cravo, rosa, nos
cabelos ou sobre as orelhas o que lhe dá um encanto especial. Os colares
de pérolas, pulseiras, talismãs e brincos são muito apelativos; a jovem
deve usar lenço de pescoço (écharpe, xale), para esconder sua formosura;
saias sempre, sempre longas, Calças compridas são proibidas (atualmente
desrespeitam esta norma); com freqüência, moedas de pouco valor
colocadas simetricamente formam um círculo, um coração ou uma tiara; os
cabelos longos, desnastrados ou em trança, também são enfeitados com
fitas e moedas; as jóias em geral são de fantasia, sobretudo em brincos
pulseiras e argolas; as blusas são decotadas, mostrando o colo sem
malícia, o decote grande é arrematado com babados e rendas, com mangas
recortadas em godê ou esvoaçantes. Os dentes são às vezes marchetados ou
folheados a ouro, formando estrela, quadrado, flor-de-lis etc. Seja de
maneira mais recatada ou extremamente enfeitada, a cigana chama a
atenção dos passantes.
Agora,
voltemos à inicial: O que é que a baiana tem? Muita pompa, andar dengoso
e cadenciado e... roupas de origem cigana. O que ela tem em comum com a
cigana é decote, atavios e saias. A cigana inspirou a baiana no tocante
ao uso de saias amplas, franjadas, bordadas. Ela, a baiana, não trouxe
este uso da mãe África. Lá vivia com simples tanga e nua da cintura para
cima [Os homens e as mulheres andam nus, com apenas um pequeno pedaço de
pano grosseiro em volta das ancas... Rugendas, in
Viagem pitoresca através do
Brasil
, p. 175].
A
baiana se veste assim: uma saia muito rodada, de várias cores
combinadas, medindo geralmente cerca de
2 a
4 metros de roda na bainha, usada bufante
e armada por muitas anáguas, ou saias de baixo, muito engomadas [....]
muitos colares de coral, búzios ou contas de vidro, às vezes tendo
corrente de metal, usualmente prata; brincos de turquesa, coral, prata
ou ouro e muitos braceletes de ferro, cobre ou outro metal. (Adaptado de
Donald Pierson, apud Câmara
Cascudo, in Dic. de
Folclore, p.
84). As negras/escravas
que foram para Salvador, viram as ciganas, copiaram sua moda. Esta é uma
hipótese, apenas. Deixo que a tese seja desenvolvida pelos etnologistas
de plantão. Certo?! Mas em minha opinião, as baianas têm roupas e
atavios similares aos das ciganas. Uma diferença notável: Cigana usa
lenço diklô, enquanto baiana
usa torço ou turbante, na cabeça.
O
brazilianista Stanley J. Stein, professor da Universidade de
Princeton, estudou profundamente o município de Vassouras no Vale do
Paraíba, enfocando a economia cafeeira e abordou com muita propriedade
os usos e costumes dos barões do café e seus escravos, em todos os
sentidos: ética, modos, costumes, economia, grandeza e decadência da
lavoura cafeeira e muito mais. Neste caso, nos interessa tão-só
transcrever o que ele viu sobre os escravos e suas roupas. Assim, às
páginas179, 216-220 lermos:
P.
179, Maria José fugiu do seu senhor, Bernardino Alves da Cruz. Traz as
seguintes marcas: cor clara, idade de 26 anos, altura mediana, cabelo
curto, rosto redondo, fala bem, é costureira, usava vestido de chita
clara e um xale de algodão colorido...
P.
217, ... Não era comum os fazendeiros prestarem atenção no que os
escravos vestiam, especialmente na década de 1830 e 1840, quando havia
afluência de mão de obra africana suficiente e relativamente barata....
“o clima brasileiro, mais frio e mais úmido que o da África, não faria
bem aos africanos, caso mantivessem o hábito de andar sem roupas”... um
cronista local ridicularizou um fazendeiro avarento de Vassouras por sua
atitude negligente em relação a seus escravos.
P. 219
As crianças pequenas usavam apenas camisas compridas até à coxa.... Os
sapatos não faziam parte do vestuário dos escravos.
Jaime
Rodrigues, em seu livro
De costa a costa (companhia
das Letras, 2005), insere uma estampa à p. 129, mostrando um negro, em
algum lugar da África, levando pai e mãe, pobremente vestidos, jungidos
pelos pescoços, para vendê-los como escravos. Daqueles pontos
longínquos, os negros nos trouxeram comida típica, folclore, misticismo,
danças e alegria. Vestes não.
Ciganas de fato ou pessoas fantasiadas de ciganas saracoteavam nos
ranchos carnavalescos.
Só a partir de
1920,
as baianas substituíram as ciganas, nas escolas de samba.
É
ponto pacífico a influência cigana no folclore e no carnaval. E não
estou sozinho, tenho boa companhia, pois o historiador, etnógrafo e
escritor, Ático Vilas-boas da Mota cuida deste tema, em
Vozes, ano
81, vol.
LXXXI, n.5, p
528.
Enquanto a questão está pendente, vamos cantar com Dorival Caymi:
O Que é que a baiana tem?
O Que é que a baiana tem?
Tem torço de seda, tem!
Tem brincos de ouro tem!
Corrente de ouro tem!
Tem pano-da-costa, tem!
Sandália enfeitada, tem!
Tem graça como ninguém.
Como ela requebra bem!
Quando você se requebrar
Caia por cima de mim
Caia por cima de mim
Caia por cima de mim
O Que é que a baiana tem?
O Que é que a baiana tem?
O Que é que a baiana tem?
O Que é que a baiana tem?
Tem torço de seda, tem!
Tem brincos de ouro tem!
Corrente de ouro tem!
Tem pano-da-costa, tem!
Sandália enfeitada, tem!
Só vai no Bonfim quem tem
(O Que é que a baiana tem?)
Só vai no Bonfim quem tem
Só vai no Bonfim quem tem.
Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim
(Oi, não vai no Bonfim)
(Oi, não vai no Bonfim).
Na primeira e na penúltima estrofes, Caymi descreve, na verdade, roupas
de ciganas que foram copiadas pelos negros. Eles vinham nus ou quase nus
da mãe África.
|