AUTO DE NATAL CIGANO OU A CIGANINHA E NOSSA SENHORA
por Asséde Paiva -
11/09/2014 |
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Autores:
Acir Reis / Asséde Paiva
/ Roberto Sanches
Revisão: Nilce S. Martins
Registro no
405.547
Livro 756, f.207
Volta Redonda, 19 de março de 2007
Revisado em 23 de setembro de 2008
PRÓLOGO
Há numerosas
lendas focando a natividade de Cristo. Sem dúvida, a mais famosa e
mais adorável é a Balada de
Nossa Senhora, quando ela fugiu para o Egito com o menino Jesus
e São José. Uma ciganinha tomando-os por peregrinos, ofereceu-lhes
sua tenda para descansarem. Reconhecendo a divindade de Jesus e
Maria, recebeu-os com muito respeito, devoção e humildade.
Elogiou-os pela grande beleza e se ofereceu para dizer a sorte de
Maria. Disse-lhe, com tristeza, que ela passaria por grandes
sofrimentos e dores a vida inteira, por causa das ações de seu
filho. Depois, leu o destino do Menino. A balada aborda trechos da
vida da Madona e, sistematicamente, repassa cada um dos maiores
eventos da vida de Jesus: Anunciação de Maria, concepção, nascimento
na manjedoura, fuga para o Egito, Jesus no Templo, batismo, tentação
de Jesus no deserto, última ceia, traição de Judas, negação de
Pedro, crucificação e ressurreição. A palmista, após ler a sorte de
Maria e de Jesus, em vez de pedir recompensa material, implorou
somente que Nossa Senhora intercedesse para que ela (cigana)
ganhasse a vida eterna (pudesse entrar no céu, o Portão Celestial).
Esta história, seguramente originada nos fins da Idade Média, foi
obtida de um palimpsesto descoberto na Itália. Lendo-o como está na
Internet, nos pareceu incompleto, algum fragmento estava faltando e
onde estava? Não tínhamos a menor ideia até que nos veio à mão (após
muita pesquisa e sorte) a parte que faltava. Fomos encontrá-la
no folclore pernambucano, in
Anais Pernambucanos, de
Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923). Lá vimos referências
a ciganos nos chamados pastoris (pequenas representações dramáticas
com dança e canto, realizadas diante de presépio entre o dia de
Natal e o de Reis, inspiradas nos autos da Natividade e nos
vilancicos portugueses), onde uma ou algumas ciganas fazem parte do
auto, declamando poeticamente as agruras por que passaria Maria e
seu filho Jesus. Como a poesia veio parar aqui, nos rincões
de Pernambuco? Que poeta fez a composição original (a da Idade
Média)? E quem escreveu o texto pernambucano? Mistério... A resposta
talvez esteja no inconsciente coletivo de Jung. A verdade é que os
versos se completam. Nosso valor está em uni-los em simbiose quase
perfeita, numa interpolação sem defeito maior. Nosso mérito,
repetimos, está em ter transformado tudo em uma peça teatral. Mas
não foi apenas isto; a transliteração poética para o português, a
dramatização, o enredo, a criação do grupo cigano, a apresentação de
seus costumes milenares etc., foram nossa criatividade. Também é de
nossa lavra a transformação das quadras em sextilhas, nas falas de
Maria e Sara. Fizemos, outrossim, as interpolações necessárias, sem
descaracterizar o texto e que por fim se revelaram muito boas. Claro
está que nos inspiramos na Ladainha de Nossa Senhora, que tornou o
texto de uma ternura sem igual.
Personagens:
Apresentador
Zindel — Barô
(Chefe do grupo de ciganos)
Phuri Daj —
Matriarca
Palal — Pai de
Flor
Zênfira — Esposa
de Palal, mãe de Flor
Flor — Filha de
Zênfira e Palal; esposa de Zaque, mãe de Sara
Rustum — Pai de
Zaque
Sâmara — Mãe de
Zaque
Zaque — Filho de
Rustum e de Sâmara; marido de Flor, pai de Sara
Sara — Filha de
Flor e Zaque
Shuri — Marido de
Sara
Jesus, Maria, José
— Sagrada Família
Anadir, Nara, Zina
e Nawar — Tias ou bibis
6 crianças — (3)
Irmãos de Sara e (3) irmãos Zaque
2 Violinistas
Folia de Reis
Figurantes — Moças
e rapazes
Cenário
É praticamente
único, representa o deserto, o oásis, algumas palmeiras e cactos.
Ponta de um rochedo se eleva das areias escaldantes, em sentido
inclinado, formando uma lapinha, uma espécie de gruta onde se passam
os principais eventos. Durante o desenrolar da peça, alguns
elementos serão adicionados e outros serão removidos ou modificados.
1o
Ato:
Ouve-se
inicialmente o som de música cigana, volume alto (música no
1), que vai baixar e servir de fundo para a fala do apresentador.
Apresentador, em off:
— Você conhece os ciganos?
Eles são o povo
mais excluído da terra. Podemos dizer que são excluídos entre os
excluídos.
Sabe que eles
tiveram grande influência na formação do nosso Brasil?
Uma das qualidades
invejáveis dos ciganos é não terem território delimitado: o mundo é
sua pátria. Que maravilha! Um povo que não se curva a governos, não
tem armas nacionais, nem selos ou símbolos de qualquer natureza. Sua
arma é a liberdade.
Há pelo menos 12
milhões de ciganos espalhados no mundo e preferem ser chamados de
Rroma ou
rom, porque consideram o termo cigano preconceituoso.
Entre nós, estão
desde o descobrimento. Embora não haja recenseamento sobre ciganos
no Brasil, estima-se que eles são mais de um milhão. São totalmente
desinteressados de coisas como residências fixas, autoridades, reis,
eleições, enfim são livres como os pássaros no céu, vivem muito bem
sob tendas e se satisfazem com o mínimo para sobrevivência. Sim,
eles gostam de dinheiro, afinal precisam viver! O mundo é muito duro
para os ciganos. Entretanto, são alegres naturalmente, dedicam-se à
música, vivem de artesanatos, barganhas de bens de pequeno valor e
suas mulheres leem sorte.
Você sabe o
que é barganha?
Para os
ciganos a barganha ou
baldroca na língua deles é a troca de mercadorias; significa
que um perde e o outro ganha. Em linguagem mais simples: um
ganha e o outro arreganha.
Estão querendo
disciplinar os ciganos. Na Organização das Nações Unidas (ONU)
eles foram considerados oriundos da Índia. Criaram uma bandeira
e um hino para eles. Mas eles continuam na deles, isto é,
nômades, livres, viajando de um lugar para outro, não se detendo
em um lugar muito tempo. Os ciganos são um grupo étnico e
possuem uma ética própria, onde a família é tudo, a virgindade é
sagrada, o respeito aos mais velhos é irrestrito.
Você já viu um
cigano sequestrador?
Já viu um
cigano assaltante de banco?
Você conhece
cigano narcotraficante?
Já viu uma
criança cigana abandonada?
Já viu velhos
ciganos abandonados?
Não! Pois tudo
é parte do arquétipo do cigano. A sua cultura é assim. Eles têm
magia e mistérios, são os filhos mágicos da natureza. Entre os
mistérios dos ciganos encontramos a sua ligação com os mistérios
de Jesus. Jesus nos trouxe a boa-nova e os ciganos a exercem.
Querem um exemplo? Jesus disse: “Eu vos dou a minha paz” e os
ciganos são pacifistas. Na história da humanidade não há uma
guerra provocada por ciganos.
Temos fortes
indícios que Jesus foi o maior dos ciganos. Quando do nascimento
de Jesus, o menino foi visitado pelos magos Gaspar, Belchior e
Baltazar, adivinhos do oriente, que o presentearam com ouro,
incenso e mirra.
Os magos
seriam mascates? E nesse caso seriam ciganos? Nômades eram, pois
não se sabe de onde vinham! Assim sendo, os ciganos teriam
ligação com Jesus desde que veio à luz.
Ainda se pode
acreditar que, na verdade, eram reis: Maji = mágicos= a ciganos,
que reinavam no país dos Vaws. Há um belo poema de Natal
relativo a esta lenda; aí vai um trecho:
We are three
Bohemians
Who tell good
fortune.
We are three
Bohemians
Who rob
wherever we may be;
Child, lovely
and so sweet,
Place, place
here, the cross [coin],
And each [of
us] will tell thee
Everything
that will happen to thee:
Begin, Janan,
however,
Give him the
hand to see.
Nós somos três
boêmios (ciganos)
Que leem a
boa-sorte.
Nós somos três
boêmios
Que pegamos
tudo em volta.
Criança,
adorável e tão doce,
Dê-me, dê-me
sua mão.
E cada um de
nós dirá a ti
Tudo que a ti
acontecerá.
Comece, Janan,
contudo,
Dê-lhe a mão
para ler.
Temos por certo que Jesus foi o maior dos
ciganos. Afinal era um pobre galileu sem eira nem beira, andava
descalço, como os ciganos, não tinha casa, como os ciganos, não
tinha terra, como os ciganos, nem se agarrava aos valores materiais,
como os zíngaros não se agarram. O quê fez Jesus dos treze aos
trinta anos? Viajou à Índia para aprender com os budistas. E quê fez
dos trinta e um aos trinta e três? Perambulou pela Palestina,
pregando a boa-nova, fazendo milagres e dormindo ao relento. Foi Ele
quem disse: “As raposas têm covas e as aves ninhos, porém, o Filho
do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” (Mt 8,20). Foi o papa
Paulo VI que relembrou esta passagem bíblica citando-a perante 2.500
ciganos e complementando: “Vede como Jesus era semelhante a vós.
Como está próximo de vós!” E ainda na Bíblia lemos: “Eu tive fome e
me deste o que comer, eu tive sede e me deste de beber”. Eu gostaria
de saber quais dos não-ciganos que deram de ‘comer’ e ‘beber’ a um
cigano!? Que Jesus era nômade não padece dúvida, pois está em várias
passagens da Bíblia. Vejam esta: “Jesus percorria toda Galileia,
ensinando nas sinagogas o Evangelho do Reino, curando todas as
doenças e enfermidades entre o povo... Grande multidão o acompanhava
da Galileia, da Decápole, de Jerusalém, da Judeia e dos países do
outro lado do rio Jordão” (Mt 4,25). “E andava por todas as cidades
e aldeias” (Mt 9,35). Ele usava apenas uma túnica e que foi sorteada
entre os soldados no Gólgota. Tão pobre como a maioria dos ciganos
no mundo.
É exatamente a história de todos os
ciganos e Jesus que apresentaremos a seguir, como num Auto de Natal
Cigano:
A balada de Nossa Senhora.
Ao final da fala do locutor, sobe a música
(no 1) e, a seguir,
corta-se a música.
Cena no
1
Abrem-se as cortinas, ao som (alto) da
música (no 2), que
vai baixar e servir de fundo para esta cena.
Aproxima-se uma caravana cigana composta
de Zindel (40 anos), o barô, o líder, trazendo em uma das mãos dois
bastões, às costas um alforje com ferramentas, lona e cordas e na
mão direita a insígnia do chefe (uma pequena vareta com insígnias de
cobras, meias-luas, estrelas e quadrados). Seguem as filhas do barô:
Anadir, Nara, Zina e Nawar, adultas ainda moças, mas já são bibis
(tias), carregam trouxas de roupas, tapetes e lençóis. Atrás delas
vêm Palal (32 anos) carregando um cesto grande, ele é casado com
Zênfira (28) e é pai de Flor. Palal e Zênfira têm seis filhos: um
filho no colo, três pequenos ao lado e Flor; o mais velho (16 anos)
carrega um tacho às costas, um martelo na cinta e nos ombros um saco
com almofadas. Logo atrás vem Flor (13 anos). Mais atrás ainda
segue-lhes Rustum (38 anos), pai de Zaque (17), um cigano corpulento
e está carregando vários sacos de tralhas. Rustum e Sâmara (32),
além de Zaque, têm mais três crianças: dois meninos (11 e 9) e uma
menina (7). Zaque carrega uma sela de um cavalo que morreu.
Os ciganos vieram do deserto e estão num
oásis; vão instalar um acampamento onde acontecerão eventos
marcantes para o grupo. Todos os objetos trazidos são colocados no
chão, no centro. As crianças ficam brincando em um canto. O barô
monta a tenda. Após a montagem do acampamento, corta-se a música.
Cena no
2
É dia. Mulheres tagarelam e sacodem panos
coloridos. Meninas procuram gravetos e arbustos secos. O barô (Chefe
do grupo) reforça alguns tirantes e diz :
Barô
— Cá estamos novamente. Este oásis é uma
bênção de Deus! Devel protege este lugar e todos os ciganos!
Um
cigano trança um cesto, outro martela um tacho. Mulheres montam o
tripé para cozerem a refeição. Elas cantam:
Se souberes
compensar
sagrados extremos
meus,
tu verás meus
caprichos
se confundirem com
os teus.
Não é a mágoa que
tenho
que me há de
devorar,
é o tormento que
sofro,
de querer
dissimular.
Ouve-se a música no
3, para dançar.
A fogueira
está acesa e suas chamas evoluem para o alto como que dançando,
dando estalidos; as ciganas dançam em volta dela, enquanto os
rapazes apenas apreciam. Depois delas é a vez dos rapazes. A
seguir todos os jovens assistem a cigana Flor, de 12 anos,
voltear a fogueira, com requebros feminis e braços serpenteantes.
Ao final da dança, corta-se a música e os jovens se voltam para
a tenda, permanecendo de fora apenas dois ciganos: um é pai de
Zaque, moço enamorado; o outro é pai de Flor, a cigana catita.
Eles estão de cócoras e conversam gesticulando.
Rustum, o pai de Zaque:
— Irmão, meu filho está pronto
para ter sua própria tenda...
Palal, o pai de Flor:
— Oh! E minha filha, Flor, fez uma
trouxinha de terra e mandou pôr debaixo do tapete dele...
Pisca os olhos
maliciosamente.
Rustum:
— Se eles se gostam, melhor para
nossas famílias, e terão muitos
chavis (meninos).
Palal:
— minha filha está entre as mais
formosas da tribo, é ótima dançarina,
também é chovihani (feiticeira). Vale alguma coisa, não? um dote...
Rustum:
— Sim, dou esta sacola de ouro
como dote.
Põe na frente
do pai de Flor.
Palal exclama sopesando a sacola:
— Só! É pouco, você não valoriza
minha filha. Todos a querem para esposa...
Rustum se dá por vencido e aumenta o lance:
— Pois é! fique então com meu
cavalo arriado...
Palal cede:
— Feito!
Apertam as
mãos selando o acordo.
Palal chama Zaque, que está no interior da tenda:
— Aproxima-te,
chega pra cá, meu filho! Olha que teu tio aceita o pedido e
concorda que faças parte da família...
Zaque, o rapaz, tenso atende o chamado do futuro sogro:
— Agradeço,
meu tio, a honra que me dá, certo de que farei de sua filha uma
romi (mulher) feliz.
Zênfira, a
futura sogra, aparece com os filhos pequenos, endireitando o
xale, pulando, alegre, rindo, gritando em comemoração ao ajuste.
Palal, o pai da noiva, também chama pela filha:
— Flor!
Ela sai de
outra tenda, e está vestida de lilás. Uma tiara prende-lhe leve
véu.
O noivo beija
respeitosamente a mão direita do futuro sogro e, inclinando-se
em cumprimento diante da noiva, põe-se ao seu lado.
Rustum, pai do noivo, para Palal, pai de Flor:
— Posso lhe
garantir meu primo, que sua filha nunca se arrependerá; meu
filho é um lutador, é rápido nas barganhas, não tem vícios, é
pobre, mas todos somos pobres. Ia me esquecendo, é excelente
músico e cavalga muito bem.
Ele faz um ar
de riso, dando duplo sentido à frase.
Palal:
— Sei, meu
primo, quanto ele é bom, quanto ao mais ele ganhará muito
dinheiro, tem sorte. É rápido para montar.
Mais risos dos
presentes.
Zênfira, a mãe de Flor:
— É verdade, a
sorte é tudo.
Palal, o pai da menina muito orgulhoso da filha, num gesto largo
diz:
— Minha filha
é a mais linda da tribo, ela é muito tímida. Levanta a cabeça,
filha!
Flor levanta a
cabeça, tem brilho nos olhos. Está feliz.
Palal admirando a filha:
— Como seus
olhos são lindos! Acho que ela tem o brilho das estrelas e
poderes especiais, ela vê além de nós. Ela será uma grande
buena-dicheira, uma
chovehani.
Flor abaixa a
cabeça timidamente, ela respeita o pai e fará o que ele decidir.
Zindel entra em cena e diz para Flor:
— Seguirás
estritamente as leis ciganas:
Não vos
separeis do seu homem;
e sede fiel ao
seu homem.
E dirigindo-se
a Zaque:
— Pagai suas
dívidas.
Dirigindo-se
aos dois:
— Com estas três simples leis, os
ciganos sobrevivem há mil anos e se
mantêm unidos como povo.
E, a seguir,
ordena a um dos rapazes:
— Traga um vaso de barro!
O rapaz busca
um jarro e o entrega ao barô, que o atira ao chão, quebrando-o
em mil pedaços.
O barô ajudado
por todos, junta os incontáveis estilhaços e olha firme para os
noivos, dizendo-lhes:
— Somente quando este vaso se
recompuser, a felicidade de vocês acabará!
A noiva então
é levada para a tenda, onde o casamento se consumará.
Zênfira diz enquanto os noivos desaparecem:
— E amanhã nós vamos examinar os
lençóis desse esponsal.
Sobe a música.
Escurece-se a cena.
Cena 3 (à
noite)
Flor entra em
trabalho de parto; dentro da tenda é assistida pela mãe e pela
matriarca. O pai da criança aguarda distante. Outros parentes,
principalmente as tias, aguardam do lado de fora; uma das bibis
recita:
Anadir:
Ovo, pequeno
ovinho
tudo é redondo
criancinha,
venha com saúde
Deus, Deus,
está chamando você!...
Ouve-se o
vagido do bebê, as tias correm para o interior da tenda do
parto.
Zina uma das tias pega a criancinha, levantando-a em direção à Lua,
cantando:
Lua, luar,
toma teu andar
leva esta
criança
e me ajuda a
criar.
Depois dela
criada
torna a me
dar.
Lua, Lua,
luar,
toma teu
andar...
Acende-se uma
fogueira à entrada da tenda, para afugentar os maus espíritos. Zina
devolve a criança à mãe, que sai da tenda e a coloca em uma bacia de
prata, pra banhá-la. Os ciganos jogam dentro e fora da bacia, moedas
e cordões para a recém-nascida.
Flor, dirigindo-se à filha:
— Tu terás três
nomes; um, para usar entre os gadjo (não-ciganos). Chamarás Nazira;
o outro, usarás entre os da nossa tribo, te chamarei Sara, e o
terceiro vou soprá-lo no teu ouvido, e com ele livrarás das
maldições e traquinagens do
beng (diabo).
Aí, ela chega os
lábios ao ouvido da filha e sussurra baixinho.
Sobe a música,
fecham-se as cortinas.
Final do 1o ato
2oato
Cena 1
Cenário:
Igual ao do 1o ato. Ouve-se música (no
4), baixo volume. Abrem-se as cortinas. Sara está na
lapinha, conversando com duendes, gênios e djins, tendo visões.
Nota-se, pelos gestos, pelo movimento dos lábios e sorriso, que está
feliz.
Zaque está próximo e observa a cena por algum tempo e fala:
— Conforme diz
nosso barô, cá estamos novamente. Este oásis é uma bênção de Deus!
Devel protege este lugar e todos os ciganos!
Entre orgulhoso e
preocupado, olhando para Sara:
— Ela é a mãe outra vez. Tem olhos que
leem nossa alma, o mesmo brilho e beleza sem igual. Minha filha até
hoje não teve muito interesse por
rapazes. Está sempre na gruta conversando com entes que só ela vê.
Sacode os ombros:
— Por isso, já conversei com Zacarias
e acertamos que seu filho Shuriserá o escolhido à mão de Sara. E
pretendo que este casamento se realize o mais breve possível.
Zaque, o pai de
Sara sai de cena. Corta-se a música.
Aparecem (ou seria mais uma visão de Sara?) três personagens (Jesus,
Maria e José) que estão em fuga para o Egito. Jesus está no colo de
Maria. José, com ar cansado, se apóia no bordão. Sara, com os braços
levantados e mãos em prece saúda o grupo.
|
Sara
Deus vos proteja, Senhora,
e vos dê muita ventura.
Bem-vindo seja, velhinho,
com tão bela criatura.
Com a face tão rosada,
a pele é uma brancura.
Maria
Que bom te ver irmãzinha!
Que Deus com sua bondade,
perdoe os teus pecados
se esta é sua vontade.
Nos seus olhos eu vejo
a paz e serenidade.
Sara
Pelo que me
pareceis,
estais a
peregrinar
em busca de
alojamento.
Senhora,
podeis apear.
Descansar e se
quiserdes
ficai aqui a
morar.
|
Maria
Tu que és minha irmãzinha,
tão cheia de caridade,
Deus te pague a cortesia
com sua grande bondade.
Ele é senhor deste mundo
e tem toda piedade.
Sara
Descei, Senhora minha,
cuidarei do seu menino.
Em meus braços, com carinho,
vou ninar vosso filhinho.
Pareceis uma rainha
com o seu principezinho.
Maria
Viemos de Nazaré,
procurando por abrigo.
Chegamos em terra estranha
e estamos aqui contigo.
Se ficarmos por aqui
estaremos em perigo.
|
Sara
Sou uma jovem cigana
tão pobre sou, vinde a mim!
Ofereço-vos a minha casa
que é tão pouco ainda assim.
Mas de todo coração
sua jornada teve fim.
Maria
Dou graças a Deus por tudo,
assim é minha oração.
Minha irmã, tuas palavras
consolam meu coração.
Estava angustiada
agora não estou não!
Sara
Se não é como mereceis,
peço perdão, ó mãezinha.
Como posso eu, nesta casa,
hospedar uma rainha?
No meu colchão de palha
podeis deitar ó mãe minha!
|
Sara aponta
para o interior da gruta onde está localizada uma tenda
imaginária. E continua:
|
Sara:
Eu tenho aqui
um estábulo
pro jumento
descansar,
palha e feno
dá-se um jeito,
todos vão se
acomodar.
O bom velhinho
também
precisa de
repousar.
Pai, por
terdes vindo a pé,
estáis cansado
demais,
andastes o
país inteiro,
trezentas
milhas ou mais.
Areia deste
deserto,
por aqui não a
temais.
Que bela é
esta criança,
até parece
pintura.
Nada há que se
compare
a tão bela
criatura.
Os anjos do
céu celebram
esta linda
formosura.
Por chegardes
de Belém,
ainda temeis,
Senhora?
Não tenhais
mais nenhum medo,
pois chegastes
em boa hora.
A comida não é
pouca
dá pra quem
chega de fora.
Se vos apraz,
Divina Graça,
posso ler a
vossa sorte.
Assim fazemos,
Senhora,
espero que não
vos importe.
Deus permite
aos ciganos
ler a sina sem
recorte.
|
Mas o que vos
direi eu,
Em vossa bela
presença?
Bem sabeis
mais do que eu,
demonstrais
mais sapiência.
Pois sois a santa das santasPor
vossa clarividência.
É tão grande
esta alegria
que quase não
cabe em mim.
Acho até que
compreende,
Sois eleita de
Deus, sim!
Ele é
onisciente
sabe qual será
o fim.
De Deus fostes
sempre amada,
Sois a mãe do
Redentor;
pura, santa,
imaculada,
mãe de Deus,
Nosso Senhor.
Sois espelho
da justiça
refúgio do
pecador.
Joaquim vosso
pai seria,
Ana vos
conceberia,
portanto,
Senhora minha,
chamar-vos-ei
de MARIA.
Meu povo diz
Majari
e vos
glorificaria.
Ainda quando
criança
Fostes no
Templo estudar.
Lá comíeis, lá
dormíeis,
lá ficáveis a
ensinar.
Vosso destino
era outro
estava para
mudar.
|
Prometeram-vos
José,
puro, santo,
um ancião,
e por milagre
de Deus,
floresceu o
seu bordão.
Do florão
nasceu a vara
da vara nasceu
o botão.
Concebestes,
então, por graça
do Divino
Espírito Santo.
Vosso filho
verdadeiro.
Não do esposo,
portanto.
Eis o mistério
da fé
Jesus nasceu
do encanto.
Que Deus se
faria homem,
soubestes na
Anunciação.
Fostes muito
agraciada
na vossa
concepção.
Por
intervenção divina
entrastes em
gestação.
Deus mandou o
embaixador
Gabriel, com
tal mensagem.
Estáveis só em
vosso quarto
quando vistes
aquela imagem.
E de joelhos
em prantos
perdestes toda
coragem.
|
Em um canto
aparece a figura do anjo Gabriel, flutuando no espaço (projeção
de slide).
Entra a folia
de reis cantando baixinho o Calix Bento.
Sara continua muito emocionada:
|
Disse-vos “Oh! cheia de graça!
Sede da
sabedoria.
O Senhor
está convosco!
Deus vos
saúda, Maria!”
Sereis mãe
puríssima
para nossa
alegria.
Ao serdes
assim saudada,
ficastes plena
de espanto.
“Maria, nada
de choro:
foi obra do
Espírito Santo!”
o Eterno se
fez homem
nos cobrirá
com seu manto.
“Vós sereis
virgem e mãe,
de Deus é esta
a vontade.
Bendito é
vosso fruto,
redentor da
humanidade.”
Os séculos
passarão
mas não a sua
verdade.
E prontamente
aceitastes
a missão com
humildade:
“Sou escrava
do Senhor,
seja feita a
Sua vontade!”
Eu sou o vaso
sagrado
a arca da
maternidade.
|
Após a cena da
Anunciação, a folia de reis adianta-se para frente do palco e
canta:
Folia de Reis:
Ó Deus salve
casa santa (bis)
onde Deus fez
a morada oi, ai, meu Deus! (bis) [não repete meu Deus nos bis]
Onde mora o
Calix Bento (bis)
e a hóstia
consagrada, oi, ai, meu Deus! (bis)
Do varão
nasceu a vara (bis)
da vara nasceu
a luz oi ai, meu Deus! (bis)
E da luz
nasceu Maria (bis)
de Maria o bom
Jesus oi, ai, meu Deus! (bis)
Da cepa nasceu
a rama (bis)
da rama nasceu
a flor, oi, ai, meu Deus! (bis)
E da flor
nasceu Maria (bis)
mãe de nosso
redentor, oi, ai, meu Deus! (bis).
A folia de
reis sai de cena e o foco permanece na trama principal.
Aparecem José
e Maria procurando vaga numa estalagem (slide).
José, em off :
Em nome do céu,
Te peço um
quarto.
Minha esposa
amada
Ta em trabalho
de parto.
Estalajadeiro, em off:
Aqui não é
pensão,
Siga em
frente, adiante.
Não lhes vou
acolher,
Tu pareces um
tunante.
José, em off:
Viemos fugindo
De longe, de
Nazaré.
Eu sou
carpinteiro,
Meu nome é
José.
Estalajadeiro, em off:
Teu nome não
me importa,
Deixe-me, for
favor, dormir!
Pois já lhe
digo e repito:
Cai fora,
tratem de partir!
Maria, em off:
— Já procuramos por toda cidade,
sinto dores.
Voz, em off:
— Vai ser difícil encontrar
hospedagem hoje, pois amanhã será feito o recenseamento geral
determinado por César.
|
Sara continua sua
fala com Maria:
No tempo
determinado,
com vosso
esposo partistes,
em direção a
Belém,
e muita pena
sentistes!
Deixastes pra
trás os vossos
e ficastes
muito triste.
Abrigo não
encontrastes
Que vos
pudesse alojar,
a não ser
aquela gruta...
lá tivestes
que ficar.
Então vieram
as dores
e cólicas sem
parar.
Como era pobre
o recanto,
sem calor, sem
luz, sem leito.
Acho até que
esta tal gruta
era tão fria e
sem jeito.
Deitada sobre
umas palhas
cruzastes as
mãos no peito.
À meia-noite,
sem dor,
paristes o
filho adorado,
que seria o
redentor,
pelo mundo
desejado.
Mas o mundo é
cruel
Ele seria
rejeitado.
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Com amor e
reverência
com panos o
enfaixastes,
e entre o boi
e o asno,
Senhora, O
colocastes.
Então Ele
sorriu para ti
Vossa face
alumiastes.
Uma simples
manjedoura...
que noite de
encantamento,
como foi belo,
Senhora!
Que grande
contentamento!
Pois uma
estrela cadente
mostrou-se no
firmamento.
Na noite
resplandecente,
nasceu Cristo,
e sobre a terra,
alegrou-se
todo povo,
veio a paz e
foi-se a guerra.
Glória a Deus
nas alturas!
Que no bem se
encerra.
Pastores o
procuraram,
Com simples
prendas de couro.
Nas estradas
convidaram
A todos pro
nascedouro.
E vieram três
reis magos
com mirra,
incenso e ouro.
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Nesse
instante, projeta-se um slide mostrando um presépio. Sara aponta
para o presépio. Voz entoa Noite Feliz.
Sara:
E agora,
Senhora minha,
me apresentai,
por favor,
para a minha
cortesia,
Vosso filho,
Redentor.
Ele sorri
muito bonito
transmite
muito amor.
Maria hesita
em mostrar o Menino à cigana, que faz cara muito triste.
Sara com as
mãos em prece diz:
— Senhora, não tenha medo. Nós,
ciganos, adoramos crianças. Vede os
meus irmãos!
Sara grita em direção ao acampamento:
— Prali! prali! (irmãos).
— Meninos, venham cá!
Diversas
crianças atendem ao chamado em grande algazarra, como fazem
todas crianças do mundo.
— São meus
irmãos. Nossas famílias têm muitos filhos, não precisamos
maltratar, nem
roubar crianças dos outros.
Crianças rodeiam Maria, dão-se as mãos cantando em romani, a língua dos
ciganos:
Crianças:
— Majari! Majari! Majari!
(Senhora).
E curvam-se em
sinal de reverência.
Maria:
Dá-me,
caríssimo esposo,
o meu filho
que seguro,
pra que a
linda cigana
possa ler o
seu futuro.
Está nas
linhas da mão
assim nos diz
o auguro.
José entrega o
Menino a Maria, que se vira para a cigana e diz com doçura:
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Irmãzinha é
teu Deus,
vida do meu
coração.
Guarda bem,
com alegria,
esta tão bela
visão.
E nunca verá
jamais
esta bela
criação.
É filho do Pai
Eterno,
da divina
majestade.
Como homem,
ele é meu filho,
por sua imensa
bondade.
Sou sua
criatura e mãe
benção da
maternidade.
Eis, irmã, eis
o Messias!
Redentor das
nossas dores.
Em nome Deus e Pai
livrai-o
desses horrores.
Irá sofrer
tantas penas
Em nome dos pecadores |
Já que
Deus, em seus desígnios,
me fez da
sorte leitora,
dai-me a mão,
meu senhorzinho,
vou adivinhar
agora.
O que já disse
é pouco
agonia não
demora.
Eterno rei desses céus,
que dando ao mundo alegria,
por prodígios só nascestes
Da Santa Virgem Maria.
Que de vós cuida e conforta
e das dores alivia.
Redentor da humanidade
nascido p'ra nosso guia,
mudou o céu em presépio
transformou a noite em dia.
E será bem maltratado
Mas não fugirá à porfia.
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Sara:
Dai-me licença senhora,
guiai o meu pensamento,
para dizer o que sinto,
para ler com acento.
Dizer apenas a verdade
Ainda que em tormento.
Deste menino formoso
De origem divinal
em sua mão pequenina
eu vou ler o bem e o mal.
Ele veio da eternidade
tem aura celestial.
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Dai-me soberano infante,
Dai-me esta linda mãozinha,
E vereis que uma cigana
a vossa sorte advinha.
A vossa linha da vidaé curta e bem
fininha.
Ó que filho
desejado!
Óh! Senhora
Imperatriz,
Ele é por mim
amado,
se bem que sou
pecatriz.
Posso lhe
beijar os pés
Imaculada
matriz?
Quem não O
ama, não sabe
que ele é
Jesus amado.
E quem clamar
por perdão,
por Ele será
perdoado.
Eu o vejo num
madeiro
ao lado Dimas,
danado.
Encontrá-LO em caminho,
Para mim
foi boa sorte.
O meu
coração dispara,
e meu
peito eleva forte.
Menino
santo ouvi-me
que vos
espera a morte.
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Se é boa ou má nossa dita,
Quereis meu bem, que vos diga,
é a mesma que bem sabes,
mas permiti que prossiga.
Vou começar do começo
não quero que me maldiga.
Primeiramente a meus olhos
vejo com suma alegria,
que sois com um grande extremo
querido de uma Maria.
Aquela que deu a luz
a vós Jesus meu guia.
E prevenida ela um dia
pelo supremo juiz,
fugirá cedo convosco
p’ra o mais remoto país.
E aqui me encontrou
Vou dobrar minha cerviz.
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É projetado um
slide com a cena da matança das crianças, ordenada por Herodes.
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E decorridos doze anos
de tão doce companhia,
tereis milhares de penas
sem lhe escapar um só dia.
Fareis prodígios de cura,
punireis a soberbia.
Enquanto andardes no mundo
sereis sempre perseguido,
mas, pelos prodígios divinos,
jamais vós sereis vencido.
Discutireis com doutores
sendo por eles arguido.
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Após passar
alguns anos,
Procurareis
São João:
“Batizado
quero ser
aqui, no rio
Jordão.”
João obedecerá
mergulhando-o
num poção.
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Um slide mostra Jesus sendo batizado por
João Batista no Rio Jordão.
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E após isto, mais uns dias
no deserto ficará,
sem comer nem pão nem vinho,
no jejum que Ele fará.
Estando fraco, cansado
o diabo o tentará.
Satã tentará fazê-lo
transformar pedras em pão,
mas será posto a correr,
em completa confusão.
Vade retro satana!
Comigo não pode não! |
E Cristo, em
Jerusalém,
entrará
triunfalmente;
com ramos,
hinos e salmos,
louvado por
toda gente.
Montado em
asno humilde
o perigo é
iminente.
Mais tarde irá
o Senhor
doze apóstolos
chamar,
pra repartir
pão e vinho
em seu último
jantar.
Era o
princípio do fim
nem adiantava
clamar.
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Um slide exibe a Santa Ceia. |
E enquanto eles aguardam,
Ele, o pão consagrará.
“Isto”, dirá, “é meu corpo,
que vos alimentará”.
O vinho, em sangue divino,
o Senhor transformará. |
Seu último ato
na terra:
ao final do
sacramento,
dará sua
própria vida
pra que vivam
o momento.
E foi pras
oliveiras
sangrar o seu
tormento.
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Sara encarando Maria:
É meu coração que fala,
eu não invento palavra.
Preparai-vos mãe amorosa,
ouvireis história amara.
Pois eu só falo o que vejo
Minha visão está clara. |
E falando pra Jesus:
Se um amigo no rosto
certo dia vos beijar,
às mãos cruéis da justiça,
ele vos há de entregar.
E um juiz injusto
Vai lavar mãos sem julgar.
Empurrado até Anás
E por ele despachado.
Pra casa de Caifás
Onde foi manietado.
E salvarão Barrabás
Pelo Senhor é trocado.
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Pedro vos há de negar,
Em perguntas à porfia,
respondendo que não sabe
quem sois vós, minha alegria.
Só e sem mãos amigas
Sem saída, sem outra via.
Não tereis vida mui larga
pois, com as mãos estendidas,
Vos atirarão numa cruz
uns ingratos homicidas.
E na cruz perecereis
pra salvar todas as vidas.
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Um slide mostra Jesus crucificado tendo ao lado
dois ladrões.
Jesus em off:
Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem!
Em verdade te digo: hoje estarás comigo no Paraíso!
Mulher, eis aí teu filho. Filho, eis aí tua Mãe!
Tenho sede!
Eli, Eli, lamma sabactáni? Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste?
Tudo está consumado!
Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito!
Um slide mostra a figura da Mater Dolorosa, com Jesus, morto, no
colo. |
Sara:
E depois de redimirdes
A humanidade querida,
vencereis a própria morte,
lograreis a eterna vida.
Como dissestes “irei à frente
vos preparar a guarida.” |
Com pranto e com amargura,
Então sereis sepultado.
Findarão seus sofrimentos
em um túmulo emprestado.
Por José de Arimateia
seguidor e respeitado. |
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Sara
voltando-se para Maria, implora:
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Ouvi, mãe do Criador,
rogai por nós! Ó amada!
Deus foi o Pai do vosso filho,
Sois Maria imaculada
Eleita do meu Senhor,
Sois por Deus glorificada.
Vós sois consolo e auxílio,
sois a nossa advogada,
sois estrela da manhã,
E sois mãe abençoada.
Vou encerrar a leitura,
pra que continue a jornada.
Vou pedir-vos uma esmola,
se me deixardes pedir.
Pois, vós sois tão poderosa
Me dareis antes de ir
O mimo da vida eterna
Na morte que há de vir. |
É porque digo a verdade
Mereço u’a esmolinha.
Pedi dar-se-a-vos-á,
Pois é esperança minha
Fico ansiosa então
nesta gruta, na lapinha.
Não quero ouro, nem prata,
e nada que alimenta.
Quero repousar apenas
num colo que acalenta,
e num quarto estrelado
onde não chove nem venta.
Concedei à pobre cigana
graça na ocasião.
Pro perdão dos meus pecados,
peço vossa intercessão.
Pra que possa entrar um dia,
no Celestial Portão. |
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Sobe a música
(no 4), as luzes
se apagam lentamente até escuridão total. Corta-se a música.
Cena 2
Ouve-se música
(no5), (alta).
Acende o foco de luz na tenda. Abaixa-se o volume da música, que
será o fundo musical de toda esta cena.
A noite é estrelada, a lua enorme como
moeda de prata, é cheia. Sara agonizante, é colocada sob uma
palmeira, ao lado da sua tenda, onde é assistida em seus últimos
momentos. Há tristeza no ar. Sara dá o último suspiro.
Acendem-se archotes. As bibis (tias) untam o corpo da morta com
óleos e ervas aromáticas e vestem nela suas melhores roupas. No
mesmo momento queimam-se todos seus pertences.
Shuri,
marido de Sara diz:
— Cá estamos
novamente neste oásis abençoado, que te viu nascer, casar, ser
mãe e agora será teu berço eterno.
Curvando-se sobre
a morta, põe duas moedas sobre suas pálpebras e diz emocionado:
Shuri:
— Ó minha amada romi (mulher), foste a
mais bela de todas as romis, tinhas muita força, vias além dos
nossos olhos, sabias das coisas, eras uma escolhida, curavas
nossas doenças, dizias nossas sinas. E fizeste minha comida,
cuidaste de nossos filhos, mantiveste minhas roupas limpas,
alimentaste meu cavalo com o melhor capim. Minha amada! serás
mais uma estrela no céu, e guiarás meus passos em tempos tão
dolorosos. À luz da lua virei aqui, após longas caminhadas, te
ver e derramarei minhas lágrimas na terra em que estás. Pede a
Majari que cuide mim e de meus filhos, proteja nossa vida e que
não nos falte alimento. —
Tavelertô! (vai com Deus!)
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Flor declamando:
De tanta terra enfeitada,
a terra que menos brilha,
é a porção que hoje cobre
os restos da minha filha. |
Morreste silenciosa,
de ninguém te despediste,
do mundo nada quiseste,
ao mundo nada pediste.
Da terra voaste ao céu
pra gozar a claridade;
pede ao nosso criador
tenha de nós piedade. |
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Zênfira,
declamando:
Teu ventre
está frio, Sara,
Dele saíram pequenos sóis.
Tua vida decorre, Sara,
No calor dos sóis
Que teu ventre colocou na terra.
A terra abre o seu ventre
Para te receber, Sara;
Foste um desses pequenos sóis
Que ela deu à luz.
Todos devem voltar para a sua mãe, Sara.
A seguir, o corpo é envolvido numa
mortalha branca. Todos os ciganos estão chorando e se lamentando
da perda, mulheres puxam os cabelos. O enterro é realizado
(simbolicamente) sob um montículo de areia. Ouve-se música
cigana, triste. Apagam-se quase todas as luzes para que o
cenário fique em penumbra. Todos os
personagens em cena ficam estáticos.
Acende-se o foco no Portão Celestial,
que está todo enfeitado de flores e brilhos e luzes. Um foco é
dirigido ao túmulo de Sara, cujo espírito se desprende
lentamente até ficar de pé e se encaminha para o Portão
Celestial e bate: Toc! Toc! Toc! Corta-se a música.
Maria aparece no
meio do portão.
Maria,
compadecida:
— Entra, minha filha! O céu te
recebe com alegria e meu filho te espera...
Música (no1)
alta, abaixando-se a seguir. Desce o pano. Uma voz no fundo,
enquanto as cortinas são fechadas, pronuncia melancolicamente:
Apresentador,
em off:
— “O mundo gira
e, no giro do mundo, civilizações se perderam e até se tornaram
lendas. Os ciganos continuam girando no mundo, com o mundo. E
longe de se tornarem lenda, contam as lendas do mundo”.
Fim do segundo e último ato
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La
Zingarella de Ferruzzi |
La
Zingarella de Correggio |
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PARA SABER MAIS:
Francisco Augusto Pereira da Costa, in
Anais pernambucanos, v. 5.
Recife: Secretaria de Turismo, Cultura e Esportes
(FUNDARPE)
1983, pp. 65-7 e 299-301.
Giannozzo
Pucci, from Francesca Alexander's illustrated collection:
La madonna e la zingarella; the madonna and the gipsy.
http://www.umilta.net/zita.html
Mello Morais
Filho in Os ciganos no
Brasil e cancioneiro dos ciganos, Itatiaia, 1981.
Murialdo
Gasparet in O rosto de
Deus na cultura milenar dos ciganos , Paulus, 1999.
Pierre Derlon
in Tradições ocultas dos
ciganos, Bertrand, 1977.
Seronia
Vishnesvsky, apud S. R. de Souza.
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