A CIGANA
por Asséde Paiva
- 11/06/2014

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DIES IRAE [1]

 

Relata um trágico incidente ocorrido no Estado de Goiás há cinquenta anos atrás. Um fazendeiro acreditou que sua filha tinha sido morta ou raptada por ciganos. Daí, enlouquecido e sem considerar o mal que ia fazer pegou seu caminhão e se dirigiu ao acampamento dos ciganos. Passou por cima de tudo e matou velhos, mulheres crianças e animais. Depois se soube que houve um engano a filha não morrera. É uma trágica história onde sobreleva o preconceito milenar contra os caminhantes.

 

 

E tudo por quê? Por ser eu um cigano. Os ciganos não têm olhos?

Os ciganos não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões?

Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas,

não estão sujeitos às mesmas doenças,

não se curam com os mesmos remédios,

não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno

que aquecem e refrescam os não-ciganos?

(Aplicação de O Mercador de Veneza. Ato III, de Shakespeare)


Hora noa [2]

 

O calor era sufocante. O sol quase a pino só permitia nesgas de sombra. Tudo era quieto. Pelo chão poeirento da vila de Santa Maria Madalena não se via um ser movimentando-se. No recanto de uma casa, um cachorro deitado, imóvel, parecia estar morto; gatos podiam ser vistos nas soleiras das portas e peitoris das janelas; nos terreiros, as galinhas e o rei do terreiro espojavam na poeira e mantinham os bicos e asas abertas, procurando alguma ventilação; as árvores pareciam petrificadas, não caía uma folha, não se via um pássaro. Nem os habituais fregueses do armazém pareciam agitar-se ou conversar. O marasmo era a tônica.

 

De repente, como faíscas elétricas, gritos ecoaram pela rua principal: “Pega ele! pega ladrão! assassino! corram atrás dele... foi para o beco!” Sus! sus!

 

De cada porta saía uma pessoa, uma criança ou mulher para ver o que se passava. Um jovem maltrapilho, rosto inchado, possivelmente o perseguido, passou em desabalada carreira e, logo atrás, vinham furiosos caçadores.

 

“O que é comadre Maria! o que está acontecendo?”

 

“Não sei compadre, virgem Nossa Senhora...” A mulher segurou um dos mais furiosos pela manga da camisa e perguntou: “Que é isto Joaquim? Quem está fugindo?”

 

“É o cigano, dona, o cigano que estava preso a pão e água até confessar a morte da filha do coronel”.

 

“Como ele escapou?”

 

“Não sei, dona, parece que o guarda descuidou, e ele lhe bateu com uma cadeira e saiu correndo...”

 

“Ah!” exclamou comadre Maria, “ele não vai longe não, o coronel Ludovico não perdoa. Quem mandou matar a menina?”

 

O caso estava muito mal contado. E se dera o seguinte: Uma caravana de ciganos passara por Santa Maria Madalena há uns quinze dias. Logo depois, deram pelo sumiço da filha do grão-senhor, uma guapa mocinha de vinte e um anos, loura, alegre e namoradeira. O pai passava vexames sem fim com a vida desregrada da filha e brigava com ela quase todos os dias, sem sucesso.

 

“Marcela, toma cuidado, eu te meto o couro!” Vociferava papai Ludovico.

 

E ela: “Pai, cuide da sua vida e me deixe, o senhor não me causa medo! O senhor não é bicho papão. Só é para os covardes daqui...”

 

Aliás, ela era a única que encarava o coronel que, como se diz, era carne-de-pescoço. A mãe de Marcela morrera há dez anos e a menina fora criada pelo pai e empregados que deixavam ela fazer o que quisesse. Daí ficou muito voluntariosa, tornou-se uma endiabrada mocinha. Saía quando queria, ia a festas sozinha, namorava qualquer um e voltava de madrugada. O coronel mandava nos outros, ela infernizava a vida do pai. A avó, que morava na capital, cidade distante, chamava a moça para morar com ela. Não era atendida, porque Marcela amava a liberdade que tinha e temia perdê-la. Um dia, pai e filha tiveram forte discussão, pois Ludovico pegara a filha bebericando um cálice de cachaça.

 

“Até isto você está fazendo! que absurdo, será que minha filha é cachaceira?"

“Vai a merda” respondeu desabridamente Marcela, “eu sou de maior, faço o que me dá na cabeça!”

 

O coronel, que nunca tinha sido xingado com tal baixaria, perdeu o controle, deu um tapa na cara de Marcela. Ela saiu correndo e se fechou no quarto por dois dias. Não aceitou alimentos, somente água.

 

Então os ciganos passaram por Santa Maria Madalena. A moça arquitetou um plano: Os ciganos tinham fama de ladrões de crianças, embora ela não fosse propriamente uma criança, achou que era oportuno dar um susto no pai. À noite, pôs umas roupas em uma bolsa e escapuliu pela janela. Na descida arranhou-se nos arames que enlaçavam as flores trepadeiras e deixou marcas de sangue no peitoril da janela, na parede e nos arbustos. Por infelicidade, no mesmo dia, um jovem cigano foi ao povoado comprar alguns gêneros para a caravana, que estava acampada bem distante dali. O que aconteceu foi muito azar dele e do seu povo. Ao se aproximar das primeiras casas, caiu do cavalo sobre cascalhos e derriçou por eles, esfolando-se no joelho, pernas e pés; ao se limpar, ficou com marcas de sangue na roupa e nas mãos.

 

Aí, o coronel deu pela falta da filha, procura aqui, procura ali, descobriram manchas de sangue na parede da casa e lucubraram: se tem sangue, foi raptada à força e pode estar morta. Daí a pouco a onda é que a moça estava definitivamente morta. Também descobriram um estranho, o cigano que saía do armazém e trazia manchas de sangue nas roupas, logo podia ser o assassino, segundo o populacho.

 

“Alto lá!” disse um investigador. O cigano parou muito assustado, olhos interrogadores. e nada disse. Foi circundado por moradores do lugar.

 

“E então!... Por que está manchado de sangue?” perguntou alguém da turbamulta.

 

O cigano sacudiu a cabeça, não entendendo o que se passava, grunhiu alguma coisa em romani[3], que os presentes também não conheciam e era uma babel. Todos falavam e se desentendiam.

 

“Vamos, fale aonde arranjou estas manchas?!”

 

O cigano sentindo-se acuado, temeroso pela vida, quis furar o círculo que se formara, se deu mal, foi amarrado, subjugado e levado para a prisão. E lá, ninguém, na verdade, queria ouvi-lo. Foi julgado e condenado num minuto: Era um assassino.

 

“Que fizeste com o corpo?” interrogavam, e não tendo resposta, lhe aplicavam bofetões e chutes. O pobre cigano, com os olhos inchados, lábios rachados, roupas em frangalhos, foi jogado na cela para esperar o interrogatório do dia seguinte. Não faltou boca malvada que lembrasse do trânsito dos ciganos e trataram de culpá-los, todos. À boca pequena, diziam que a moça havia fugido de casa, mas era uma hipótese que ninguém aventava perante o coronel.

 

É bom saber que este homem era extremamente violento e ninguém o encarava, seja para falar verdade ou mentir. O bom viver recomendava os ‘sim senhor’, ‘pois não, senhor’ ‘tá bem, seu coronel’, subserviência total. Também em Santa Maria Madalena ele dava as cartas e jogava de mão. Tudo era dele: os pastos, as casas, o mercadinho, o bar, o time de futebol, o rio e o ar que respiravam. Por isso, era muito saudável todos o servirem, e assim perseguiam o infeliz, que fora indigitado como assassino.

 

“Pega! pega!”

 

A caçada continuava após o beco, após a última casa, pelo cemitério adentro e pela vargem afora. O pobre cigano tentava por todos os meios fugir. Ele sabia que não teria oportunidade de se explicar, se fosse preso novamente, estava morto. E, assim a necessidade faz o sapo pular e ele pulava, corria, esfalfava. Já estava com a língua de fora, mas pôs uma distância segura entre ele e os perseguidores. Julgou-se salvo. Vã esperança, o coronel que tudo assistia da varanda do sobrado, desde a fuga da cadeia até onde podia ver, isto é, próximo ao cemitério, achava que o grupo perseguidor daria conta do recado e traria o homem de volta. Foi com muita raiva e decepção que viu os primeiros voltarem sem a presa.

 

“Como assim!? quedê o cigano? não me digam que ele escapou!”

 

“Escapou sô Ludovico, ele tem asas nos pés, acho que perdemos o tal...”

 

O coronel punha fogo pelas ventas. O ódio obscureceu qualquer indício de sensatez.

 

“Vocês são uns molengas, não podem com um homem... Todos vocês são uns bostas! Mas eu vou atrás dele”.

 

“Não dá, coronel ele está muito longe esta hora... Ta um calor doido!”

 

“Vou cuidar do caso a meu modo!” O coronel desceu do alpendre foi à garagem, ao lado e entrou no seu caminhão...

 

Vésperas estamos no outono, o céu brilhante com os últimos raios de sol, dando um colorido especial à abóbada celeste. Flocos de cirros parecem pedaços de algodão colados na semi-esfera. Por um sistema combinado de reflexão, distorção, parece que os feixes de luz são gigantescos holofotes voltados para o céu. O tempo é de seca brava no planalto central. As plantas estão ressequidas e um vento quente varre as pétalas dos últimos girassóis que dobram as hastes ao sabor da aragem. No altiplano, sobre uma pedra e próxima à cachoeira, a matriarca da tribo, que fora colher ervas medicinais, observa. Onde estava, o pequeno bosque se apresentava luxuriante, graças à umidade trazida pela queda d’água. Ao encontro do céu e da terra, na linha do horizonte, ela divisou a mancha. Continuou olhando atenta, pondo a mão em concha sobre os olhos, para melhor enxergar. Era poeira amarelada contrastando terrivelmente com o ambiente e que parecia se enrolar e desenrolar como gigantesca serpente, à medida que chegava mais e mais perto. Evidente que era levantada por um veículo que corria alucinadamente.

 

A mulher, graças aos instintos milenares obtidos pela luta por sobrevivência, teve um sobressalto e a sensação de perigo iminente. Alguém corria adiante do veículo e foi atropelado. “Seria um homem?” O coração confrangeu, apertou e disparou; a respiração tornou-se rápida e sibilante. Ela abaixou-se, temendo ser vista por alguém que ainda vinha muito longe. Esperou, esperou... E a coluna de pó brotava cada vez mais perto e depois se diluía no ar, manchando o azul do firmamento. Notava-se que o caminhão estava vazio e as tábuas da carroçaria batiam loucamente, pelo choque dos pneus na rota esburacada de carro de bois.

 

A phuri daj, isto é, a matriarca da tribo cigana, sabia que algo aconteceria ao seu povo. Angústia, pressentimento de tragédia. Aí, ela gritou desesperada, estridentemente, sua voz sumiu engolida pelo estrondo das águas da cachoeira.

 

As barracas estavam dispostas em semicírculo, e as carroças em fila indiana. Havia uma modorra no ar, ninguém estava preocupado, ninguém estava devendo. Apenas viviam o dia-a-dia. Dois cães, macilentos, que acompanhavam aquele povo errante, latiram, avisando a aproximação, homens saíram das tendas e nada viram de suspeito. Era apenas um caminhão que se aproximava. Uma criança chamou outras e correram em direção ao córrego para brincarem com as irmãs, na areia fina formada pelo remanso das águas. De repente, o caminhão deu uma guinada e saiu em direção às tendas. Ainda assim ninguém acreditava ou sabia que o perigo vinha veloz, mortal, assassino.

 

O motorista, parecendo ensandecido, jogou o veículo contra uma, depois outra e outra tenda e carroças, numa fúria incontrolável e premeditada. Houve gritaria, correria, choros e muita gente esmigalhada pelas rodas ou jogada longe, pelos choques sucessivos. Até os cachorros foram atropelados.

 

Os nômades, desesperados, corriam para todos os lados. O dono do veículo, o louco, dava marcha à ré e repassava sobre o entulho das tendas caídas, revolvidas, e voltava a atropelar homens, mulheres, crianças e animais, sem escolher a vítima. Havia uma loucura sinistra no ar.

 

O sanguinário e cruel magarefe desligou o motor, sacou o revolver, olhou à roda procurando sobreviventes. Foi aonde se ouvia gemidos e atirou friamente naqueles que ousavam pedir socorro, levantar uma mão ou pedir piedade. Sobraram aqueles que se fingiram mortos.

 

Depois que o feroz assassino fez o que achou que devia ter feito, olhou satisfeito em sua volta e retornou ao veículo e voltou para o lugar de onde veio (devia ser no inferno), levantando outra coluna de poeira na disparada do retorno. O pó e o sangue misturados elevaram-se e, juntos com tristeza e dor, levaram a agonia de um povo para Deus.

 

Muitos zíngaros escaparam do maluco, fugindo às pressas para dentro do regato; nele, felizmente, estava a maior parte de seus filhos que, pouco antes daquele momento de pavor, haviam se decidido tomar banho.

 

Feitas as contas, descobriram que vinte dos seus eram mortos e outros, muitos quase todos estavam gravemente feridos. Os sobreviventes válidos não reclamaram, não soluçaram, nem fizeram gestos de vingança. Estavam atônitos, abúlicos, traumatizados, em total torpor. Pegaram pás e enxadas e foram cavar a vala comum. Enterraram os mortos sob uma árvore frondosa, marcaram o local de uma forma que só eles saberiam encontrar e partiram ao alvorecer. Decidiram que não haveria a pomana,[4] pois temiam a continuação do massacre.

 

Foi desta forma que o latifundiário cruel, manda-chuva do lugar, vingou-se da “morte” da filha pelos nômades. O coronel Ludovico, saciado da sede de vingança, retornou ao solar. As rodas de seu veículo, pára-choque e lataria ainda ostentavam marcas de pó e sangue.

 

Quando chegou a casa recebeu um telegrama que dizia: Pai, perdoe-me, cheguei bem, vovó manda lembranças...”

 

Completas: E Santa Maria Madalena novamente quedou-se e em paz...

 



[1] Dia da cólera. Título de um famoso hino medieval que tem como motivo o Julgamento Final, quando o Filho do Homem virá para julgar toda a humanidade, punindo com fogo eterno do inferno aqueles que tiverem morrido em estado de pecado e premiando com a eterna bem-aventurança aqueles que tiverem morrido contritos (Bíblia Sagrada).

[2] Partes do Ofício Divino: Matinas ou Vigiliae, subdividida em Noturnos = meia-noite e Laudes = aurora, 5/6 horas da manhã; Prima, às 6/7 horas; Tércia, às 9 horas; Sexta, às 12 horas; Noa, às 14/15 horas; Vésperas, entre as 16 e 18 horas; Completas, antes de se recolher.

[3] Língua dos ciganos

[4] “Ritual para os mortos. Realizado aos três (tretiná), nove e quarenta dias, após a morte, onde o espírito do morto é suposto comparecer. Preparam todas as comidas que o morto mais apreciava e arruma-se tudo numa grande mesa onde os que comparecem (o que se dará dependendo da vontade de cada um) irão se sentar. A família do morto, de luto, então acenderá as velas e é importante destacar a cadeira e o prato vazios. Sobre a cadeira ficarão os pertences do morto que não foram retirados com ele. Ao término do jantar, os pertences e a comida serão jogados num rio.” Cristina C. Pereira, in Povo cigano, p. 64.

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