DIES IRAE
[1]
Relata um trágico incidente ocorrido no Estado de Goiás há cinquenta
anos atrás. Um fazendeiro acreditou que sua filha tinha sido morta ou
raptada por ciganos. Daí, enlouquecido e sem considerar o mal que ia
fazer pegou seu caminhão e se dirigiu ao acampamento dos ciganos. Passou
por cima de tudo e matou velhos, mulheres crianças e animais. Depois se
soube que houve um engano a filha não morrera. É uma trágica história
onde sobreleva o preconceito milenar contra os caminhantes.
E tudo por quê? Por ser eu um cigano. Os
ciganos não têm olhos?
Os ciganos não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações,
paixões?
Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem
com as armas,
não estão sujeitos às mesmas doenças,
não se curam com os mesmos remédios,
não se aquecem e refrescam com o mesmo verão
e o mesmo inverno
que aquecem e refrescam os não-ciganos?
(Aplicação de O Mercador de Veneza.
Ato
III, de Shakespeare)
Hora noa
[2]
O calor era
sufocante. O sol quase a pino só permitia nesgas de sombra. Tudo era
quieto. Pelo chão poeirento da vila de Santa Maria Madalena não se via
um ser movimentando-se. No recanto de uma casa, um cachorro deitado,
imóvel, parecia estar morto; gatos podiam ser vistos nas soleiras das
portas e peitoris das janelas; nos terreiros, as galinhas e o rei do
terreiro espojavam na poeira e mantinham os bicos e asas abertas,
procurando alguma ventilação; as árvores pareciam petrificadas, não caía
uma folha, não se via um pássaro. Nem os habituais fregueses do armazém
pareciam agitar-se ou conversar. O marasmo era a tônica.
De repente, como faíscas elétricas, gritos ecoaram pela rua principal:
“Pega ele! pega ladrão! assassino! corram atrás dele... foi para o
beco!” Sus! sus!
De cada porta
saía uma pessoa, uma criança ou mulher para ver o que se passava. Um
jovem maltrapilho, rosto inchado, possivelmente o perseguido, passou em
desabalada carreira e, logo atrás, vinham furiosos caçadores.
“O que é comadre
Maria! o que está acontecendo?”
“Não sei
compadre, virgem Nossa Senhora...” A mulher segurou um dos mais furiosos
pela manga da camisa e perguntou: “Que é isto Joaquim? Quem está
fugindo?”
“É o cigano,
dona, o cigano que estava preso a pão e água até confessar a morte da
filha do coronel”.
“Como ele
escapou?”
“Não sei, dona,
parece que o guarda descuidou, e ele lhe bateu com uma cadeira e saiu
correndo...”
“Ah!” exclamou
comadre Maria, “ele não vai longe não, o coronel Ludovico não perdoa.
Quem mandou matar a menina?”
O caso estava
muito mal contado. E se dera o seguinte: Uma caravana de ciganos passara
por Santa Maria Madalena há uns quinze dias. Logo depois, deram pelo
sumiço da filha do grão-senhor, uma guapa mocinha de vinte e um anos,
loura, alegre e namoradeira. O pai passava vexames sem fim com a vida
desregrada da filha e brigava com ela quase todos os dias, sem sucesso.
“Marcela, toma
cuidado, eu te meto o couro!” Vociferava papai Ludovico.
E ela: “Pai,
cuide da sua vida e me deixe, o senhor não me causa medo! O senhor não é
bicho papão. Só é para os covardes daqui...”
Aliás, ela era a única que encarava o coronel que, como se diz, era
carne-de-pescoço. A mãe de Marcela morrera há dez anos e a menina fora
criada pelo pai e empregados que deixavam ela fazer o que quisesse. Daí
ficou muito voluntariosa, tornou-se uma endiabrada mocinha. Saía quando
queria, ia a festas sozinha, namorava qualquer um e voltava de
madrugada. O coronel mandava nos outros, ela infernizava a vida do pai.
A avó, que morava na capital, cidade distante, chamava a moça para morar
com ela. Não era atendida, porque Marcela amava a liberdade que tinha e
temia perdê-la. Um dia, pai e filha tiveram forte discussão, pois
Ludovico pegara a filha bebericando um cálice de cachaça.
“Até isto você
está fazendo! que absurdo, será que minha filha é cachaceira?"
“Vai a merda”
respondeu desabridamente Marcela, “eu sou de maior, faço o que me dá na
cabeça!”
O coronel, que
nunca tinha sido xingado com tal baixaria, perdeu o controle, deu um
tapa na cara de Marcela. Ela saiu correndo e se fechou no quarto por
dois dias. Não aceitou alimentos, somente água.
Então os ciganos
passaram por Santa Maria Madalena. A moça arquitetou um plano: Os
ciganos tinham fama de ladrões de crianças, embora ela não fosse
propriamente uma criança, achou que era oportuno dar um susto no pai. À
noite, pôs umas roupas em uma bolsa e escapuliu pela janela. Na descida
arranhou-se nos arames que enlaçavam as flores trepadeiras e deixou
marcas de sangue no peitoril da janela, na parede e nos arbustos. Por
infelicidade, no mesmo dia, um jovem cigano foi ao povoado comprar
alguns gêneros para a caravana, que estava acampada bem distante dali. O
que aconteceu foi muito azar dele e do seu povo. Ao se aproximar das
primeiras casas, caiu do cavalo sobre cascalhos e derriçou por eles,
esfolando-se no joelho, pernas e pés; ao se limpar, ficou com marcas de
sangue na roupa e nas mãos.
Aí, o coronel deu
pela falta da filha, procura aqui, procura ali, descobriram manchas de
sangue na parede da casa e lucubraram: se tem sangue, foi raptada à
força e pode estar morta. Daí a pouco a onda é que a moça estava
definitivamente morta. Também descobriram um estranho, o cigano que saía
do armazém e trazia manchas de sangue nas roupas, logo podia ser o
assassino, segundo o populacho.
“Alto lá!” disse
um investigador. O cigano parou muito assustado, olhos interrogadores. e
nada disse. Foi circundado por moradores do lugar.
“E então!... Por
que está manchado de sangue?” perguntou alguém da turbamulta.
O cigano sacudiu a cabeça, não entendendo o que se passava, grunhiu
alguma coisa em romani[3],
que os presentes também não conheciam e era uma
babel. Todos falavam e se desentendiam.
“Vamos, fale
aonde arranjou estas manchas?!”
O cigano
sentindo-se acuado, temeroso pela vida, quis furar o círculo que se
formara, se deu mal, foi amarrado, subjugado e levado para a prisão. E
lá, ninguém, na verdade, queria ouvi-lo. Foi julgado e condenado num
minuto: Era um assassino.
“Que fizeste com
o corpo?” interrogavam, e não tendo resposta, lhe aplicavam bofetões e
chutes. O pobre cigano, com os olhos inchados, lábios rachados, roupas
em frangalhos, foi jogado na cela para esperar o interrogatório do dia
seguinte. Não faltou boca malvada que lembrasse do trânsito dos ciganos
e trataram de culpá-los, todos. À boca pequena, diziam que a moça havia
fugido de casa, mas era uma hipótese que ninguém aventava perante o
coronel.
É bom saber que este homem era extremamente violento e ninguém o
encarava, seja para falar verdade ou mentir. O bom viver recomendava os
‘sim senhor’, ‘pois não, senhor’ ‘tá bem, seu coronel’, subserviência
total. Também em Santa Maria Madalena
ele dava as cartas e jogava de mão. Tudo era dele: os pastos, as casas,
o mercadinho, o bar, o time de futebol, o rio e o ar que respiravam. Por
isso, era muito saudável todos o servirem, e assim perseguiam o infeliz,
que fora indigitado como assassino.
“Pega! pega!”
A caçada
continuava após o beco, após a última casa, pelo cemitério adentro e
pela vargem afora. O pobre cigano tentava por todos os meios fugir. Ele
sabia que não teria oportunidade de se explicar, se fosse preso
novamente, estava morto. E, assim a necessidade faz o sapo pular e ele
pulava, corria, esfalfava. Já estava com a língua de fora, mas pôs uma
distância segura entre ele e os perseguidores. Julgou-se salvo. Vã
esperança, o coronel que tudo assistia da varanda do sobrado, desde a
fuga da cadeia até onde podia ver, isto é, próximo ao cemitério, achava
que o grupo perseguidor daria conta do recado e traria o homem de volta.
Foi com muita raiva e decepção que viu os primeiros voltarem sem a
presa.
“Como assim!? quedê o cigano? não me digam que ele escapou!”
“Escapou sô
Ludovico, ele tem asas nos pés, acho que perdemos o tal...”
O coronel punha
fogo pelas ventas. O ódio obscureceu qualquer indício de sensatez.
“Vocês são uns
molengas, não podem com um homem... Todos vocês são uns bostas! Mas eu
vou atrás dele”.
“Não dá, coronel
ele está muito longe esta hora... Ta um calor doido!”
“Vou cuidar do
caso a meu modo!” O coronel desceu do alpendre foi à garagem, ao lado e
entrou no seu caminhão...
Vésperas
estamos no outono, o céu brilhante com os últimos raios de sol, dando um
colorido especial à abóbada celeste. Flocos de cirros parecem pedaços de
algodão colados na semi-esfera. Por um sistema combinado de reflexão,
distorção, parece que os feixes de luz são gigantescos holofotes
voltados para o céu. O tempo é de seca brava no planalto central. As
plantas estão ressequidas e um vento quente varre as pétalas dos últimos
girassóis que dobram as hastes ao sabor da aragem. No altiplano, sobre
uma pedra e próxima à cachoeira, a matriarca da tribo, que fora colher
ervas medicinais, observa. Onde estava, o pequeno bosque se apresentava
luxuriante, graças à umidade trazida pela queda d’água. Ao encontro do
céu e da terra, na linha do horizonte, ela divisou a mancha. Continuou
olhando atenta, pondo a mão em concha sobre os olhos, para melhor
enxergar. Era poeira amarelada contrastando terrivelmente com o ambiente
e que parecia se enrolar e desenrolar como gigantesca serpente, à medida
que chegava mais e mais perto. Evidente que era levantada por um veículo
que corria alucinadamente.
A mulher, graças
aos instintos milenares obtidos pela luta por sobrevivência, teve um
sobressalto e a sensação de perigo iminente. Alguém corria adiante do
veículo e foi atropelado. “Seria um homem?” O coração confrangeu,
apertou e disparou; a respiração tornou-se rápida e sibilante. Ela
abaixou-se, temendo ser vista por alguém que ainda vinha muito longe.
Esperou, esperou... E a coluna de pó brotava cada vez mais perto e
depois se diluía no ar, manchando o azul do firmamento. Notava-se que o
caminhão estava vazio e as tábuas da carroçaria batiam loucamente, pelo
choque dos pneus na rota esburacada de carro de bois.
A phuri daj, isto é, a
matriarca da tribo cigana, sabia que algo aconteceria ao seu povo.
Angústia, pressentimento de tragédia. Aí, ela gritou desesperada,
estridentemente, sua voz sumiu engolida pelo estrondo das águas da
cachoeira.
As barracas
estavam dispostas em semicírculo, e as carroças em fila indiana. Havia
uma modorra no ar, ninguém estava preocupado, ninguém estava devendo.
Apenas viviam o dia-a-dia. Dois cães, macilentos, que acompanhavam
aquele povo errante, latiram, avisando a aproximação, homens saíram das
tendas e nada viram de suspeito. Era apenas um caminhão que se
aproximava. Uma criança chamou outras e correram em direção ao córrego
para brincarem com as irmãs, na areia fina formada pelo remanso das
águas. De repente, o caminhão deu uma guinada e saiu em direção às
tendas. Ainda assim ninguém acreditava ou sabia que o perigo vinha
veloz, mortal, assassino.
O motorista,
parecendo ensandecido, jogou o veículo contra uma, depois outra e outra
tenda e carroças, numa fúria incontrolável e premeditada. Houve
gritaria, correria, choros e muita gente esmigalhada pelas rodas ou
jogada longe, pelos choques sucessivos. Até os cachorros foram
atropelados.
Os nômades,
desesperados, corriam para todos os lados. O dono do veículo, o louco,
dava marcha à ré e repassava sobre o entulho das tendas caídas,
revolvidas, e voltava a atropelar homens, mulheres, crianças e animais,
sem escolher a vítima. Havia uma loucura sinistra no ar.
O sanguinário e
cruel magarefe desligou o motor, sacou o revolver, olhou à roda
procurando sobreviventes. Foi aonde se ouvia gemidos e atirou friamente
naqueles que ousavam pedir socorro, levantar uma mão ou pedir piedade.
Sobraram aqueles que se fingiram mortos.
Depois que o
feroz assassino fez o que achou que devia ter feito, olhou satisfeito em
sua volta e retornou ao veículo e voltou para o lugar de onde veio
(devia ser no inferno), levantando outra coluna de poeira na disparada
do retorno. O pó e o sangue misturados elevaram-se e, juntos com
tristeza e dor, levaram a agonia de um povo para Deus.
Muitos zíngaros
escaparam do maluco, fugindo às pressas para dentro do regato; nele,
felizmente, estava a maior parte de seus filhos que, pouco antes daquele
momento de pavor, haviam se decidido tomar banho.
Feitas as contas, descobriram que vinte dos seus eram mortos e outros,
muitos quase todos estavam gravemente feridos. Os sobreviventes válidos
não reclamaram, não soluçaram, nem fizeram gestos de vingança. Estavam
atônitos, abúlicos, traumatizados, em total torpor. Pegaram pás e
enxadas e foram cavar a vala comum. Enterraram os mortos sob uma árvore
frondosa, marcaram o local de uma forma que só eles saberiam encontrar e
partiram ao alvorecer. Decidiram que não haveria a
pomana,[4]
pois temiam a continuação do massacre.
Foi desta forma
que o latifundiário cruel, manda-chuva do lugar, vingou-se da “morte” da
filha pelos nômades. O coronel Ludovico, saciado da sede de vingança,
retornou ao solar. As rodas de seu veículo, pára-choque e lataria ainda
ostentavam marcas de pó e sangue.
Quando chegou a casa recebeu um telegrama que
dizia: “Pai,
perdoe-me, cheguei bem, vovó manda lembranças...”
Completas:
E Santa Maria Madalena novamente quedou-se e em paz...
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