Matéria Especial Benficanet - 01/03/2018

Um texto muito original

Eis o mago da palavra, original e senhor absoluto dos segredos da nossa língua, idioma que no dizer de Miguel de Cervantes es el español sin huesos, porém, cheio de armadilhas que somente um estudioso atento é capaz de dominá-lo com mestria invejável.

Os textos de Assede Paiva exigem sempre do leitor uma acurada sintonia, ou seja, olhos de ver e enxergar, capacidade de perceber os meandros da ironia (jamais o sarcasmo!), recorrência de causar inveja a um Erasmo de Rotterdam ou Anatole France.

Examinemos, agora, uma partida de futebol, inverossímil, engraçada, fantástica. Vejamos dois times irreais que vão à disputa de forma diferenciada: elementos físicos X químicos, como se diz: peleja em nível atômico. De um lado e, do outro, legião de físicos, químicos e em menor número, filósofos e matemáticos. Ei-los: Demócrito (filosofo antigo), Réaumur (físico e naturalista), Farad (físico-químico), o genial Gauss, polivalente: astrônomo, físico é matemático, Newton (físico, astrônomo, matemático e filósofo); Pascal (físico, matemático, filósofo), bem como uma robusta lista nominal de físicos: Henry, Hertz, Paul Maxwell, Richter, Ohm, Siemens, Tesla, Torricelli, Volt e Weber.

Como bem se percebe, times expressivos e que prontamente prenunciam prélios renhidos e emocionantes.

Texto muito criativo, que bem poderia ser enquadrado no setor literário do realismo fantástico em que a imaginação não tem quaisquer limites, com voos espetaculares, em que a verossimilhança não tenha vez, aliás, um dos princípios básicos dessa corrente literária.

Quanto ao nome do Estádio, fica por conta do leitor atento: Senhor Hipnotismo Avassalador, Dona Alienação Colorida ou, se quiser: Estádio do Circo mesmo sem pão! Enfim, qualquer outro que exprima a visível intenção de distrair uma população, a fim de que ela jamais sinta a necessidade de pensar, raciocinar, refletir ou questionar. Seu escopo é a alienação, baseada muito mais no divertimento do que no esporte bretão.

Somos obrigados a conviver para sempre com um fenômeno hipnótico que atinge a pirâmide social de maneira avassaladora!

Ático Vilas-Boas da Mota.

Um ponto num buraco negro

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Junho, 2016, revisado em fevereiro de 2018

 

Totus Atomus, o Absoluto, reinava no princípio de todas as coisas Como era o todo, estava em cima e embaixo, aqui e ali; flutuante em imensidão de matéria escura. Diz a lenda que o ponto brilhante era o ovo de um ganso mitológico.

Após a eclosão do ovo cósmico, nasce Orbe-caos que dilata e contrai continuamente, em face de forças centrífugas e centrípetas.

No Universo recém-criado, Caos, coexistem trevas, luz e silêncio assombroso. De repente, formidável sopro vivificador fiat. Atomus age... Lux e Lúmen, mestres de luz, em sistema espaçotemporal agrupam num campo gravitacional, partículas elementares a que chamam bola e a chutam em planisfério. Quando passa entre dois aglomerados de estrelas limitados por trave de plasma é gol.

Eles vão a Atomus ou Totus, o compositor das coisas visíveis e invisíveis.

— Aleluia! Heureca! Inventamos fiquibol, mestre!

— Genial ideia! Fiquibol é palavra feia sugiro balípodo ou pebol; hum-hum, estranhos verbetes, football é mais bonito, tem eufonia e inspirado em Álbion; nacionalizo o termo para futebol, conforme o gênio da língua. Vejo invejosos por aí conjurando para proclamar república, instalar regime presidencialista e sufrágio universal; porém, a monarquia é firme qual rocha, o gentio me ama e sou da sua grei. Chamem Cloro, Flúor, Carbono (CFCs) para jogar e cuidado, amálgama dos três, o diabo fez; eles interagem, fazem furos na camada de ozônio, acarretam efeito estufa. Vou criar no organograma da alta administração, uma Fundação Orientada a Módulos Esportivos (FOME), e pôr Argentino Argênteo Prata como diretor.

Futebol é sucesso no Planeta Azul, santo Graal do entretenimento; paixão... alheamento. Todos se encantam: crianças, moços, moças jogam na meninice e na mocidade; os talentosos idosos mantêm a forma no campinho dos seniores: — Mente sã em corpo são — tal é a lei. Futebol é o estopim da catarse coletiva: pátria de chuteiras, e outros lemas altissonantes. Brotam equipes em várzeas; nas cidades realizam-se torneios. São campeões em distantes plagas, menos no próprio berço, infelizmente.

Vige o ciclo da bola. Manuscritos registram, no espelho distante da história, a saga de outros ciclos que trouxeram riqueza, projeção e poder para poucos.

Como sempre, há controvérsias: Totus ordena, e agentes antioxidantes saem à caça dos detestáveis anarquistas (radicais livres) e os põem na cadeia; não adianta nada, eles oxidam as células, fogem e insuflam a plebe dizendo: monarquistas dão pão e circo. Estes retrucam: promovemos o bem comum, através do esporte solidário.

Totus decide realizar o clássico das multidões, nunca visto no país encantador; jogo relâmpago, padrão vapt-vupt, em arena (antes estádio) monumental do Valência, com atletas bons de bola e de técnica aprimorada; são craques advindos das Unidades de Medidas Físicas, contra Elementos da Tabela Periódica.

Falta verba para obras de mobilidade urbana e de estádios... quem se importa? Sem problemas: repassam-se $$$ (bilhões) a fundo perdido para os esportes. Cria-se na estrutura orgânica do reino o cargo de adjunto financeiro, e nomeia Prata, que adota a rubrica Ag (de Argentum), para assinar o papelório com mais rapidez.

Ti-ti-ti de Ti (Titânio), elemento durão que adora uma órtese.

–– Prata é alpaca, é ‘umseteum’ (número fatídico no inconsciente coletivo dos súditos).

Argos Panoptes, o que tudo vê, joga lama no ventilador redigindo panfletos apócrifos, acusando áulicos de desvio de conduta e malfeitos.

E a mídia pede providência.

Argentino, acusado, constitui o advogado Avogrado, que apresenta contratos, aditivos, faturas, duplicatas, enfim, todos os documentos, sem convencer ninguém... E há uma gravação comprometedora autorizada pela justiça.

“Prata é argentário”, ressoa o povo. “Superfaturamento, majestade”, sussurra o insidioso Césio. Será tunga de Tungstênio? Não, não! Ele é duro, sim, e do bem. A acusação é inconsistente. É muito fumo e pouco lume. O processo é arquivado por falta de provas.

–– Ai de quem pisar na bola! Malfeitos não serão tolerados. Palavra de monarca.

Do alto do trono sabe dos descaminhos e não está satisfeito. Cria Grupo de Trabalho (GT), formado por Protactínio, Sódio e Cálcio: os Pa-Na-Ca, que acusam Arsênio, elemento de péssima reputação, por compor água-tofana. Mas a polícia de Chumbo inocenta os três elementos e indigita Carbono “C” que, sob grande pressão, cristaliza-se em forma alotrópica de diamante; melhor pra ele, pois é engastado em diadema.

O time dos Químicos tem nome antiquado de Chimico Football Club. Graphia anachronica traz um quê de nobre.

Titulares: Ferro, Silício, Carbono, Tântalo, Ouro/Au, Germânio, Hidrogênio, o primeiro entre pares e capitão; Promécio, Polônio, Estrôncio e Térbio. Reservas: Césio, Cobalto, Germânio e Lutécio. Comissão técnica: treinador, Mercúrio; massagista é Mercurocromo. Sódio, o médico, sempre junto a Cloro.

Pensam afastar Ouro (Au), por se cobrir com película de ganga, mas ele toma um banho de solimão e volta auriluzir o esplendor de seus 24 quilates. Assim, tem a escalação confirmada.

O Time dos Físicos é este: Mho (capitão), Rad, Newton, Hertz, Gauss, Farad, Volt, Joule, Kelvin, Ohm e Watt. Reservas: Weber, Henry, Tesla e Siemens, no posto de Angström, contundido. Seleção estupenda, a melhor jamais formada. Treinador Pascal, doutor Maxwell substitui Dina, doente; Torr, massagista; e Sievert, roupeiro.

Ampere, descoberto espionando para os químicos é desligado e usa tornozeleira de amperômetro.

Erg é o juiz, Túlio e Tálio, bandeirinhas; gandulas do prélio, Nó e Mach.

O equilíbrio físico-químico é notável, e prenúncio de disputa empolgante.

Quiloton, cartola arrogante, sinistro, ameaça todo mundo com o cogumelo-mor, se os físicos perderem. Ademais, exige mordomias inerentes à cartolagem.

O locutor esportivo inicia a transmissão. Ele é o famoso radialista Rádio, a irradiar de norte a sul, de leste a oeste, na crista das ondas hertzianas.

— Serei olhos e ouvidos dos radiouvintes. Nas engrenagens da fantasia, infinitas emoções nos aguardam no horizonte de eventos; físicos são alviverdes e trazem ao peito a letra “F” sobre raio. Químicos são rubro-negros e têm monograma “CH”, dourado sobre retorta, na lista preta da camisa. A dupla Ósmio/Irídio avaliará se o juiz tem norte ou se está perdido no campo. Há eletricidade no ar. O estádio Valência dois ondula com a ola, sem perigo estrutural, segundo Richter, meu consultor. Galera dos químicos agita braços em histeria realmente hipnótica: Ahá, uhu, tererê! Hip-hip-hip, hurra! As saltitantes meninas Caloria, Frigoria e Termia são animadoras; abanam pompons, dão gritos estridentes: “Eia-eia-eia”! Na equalização atômica, mantêm a temperatura amena.

O juiz Erg, com estilo altaneiro, dá panorâmica no campo e ajusta o cronômetro. Priirriim!

O amistoso começa a megavelocidade: jogadores “Fi” atacam em rolo compressor; bola de pé em pé. Ohm, elétrico a Kelvin, que atrasa a Hertz; este, mais ainda a Watt, em diagonal a Joule, de trivela a Ohm, que dá o sensacional drible da vaca no venenoso Polônio e avança, sendo contido no instante fatal por Hidrogênio, que tem gênio explosivo e manda bola e jogador para fora do campo. Rad toma cartão amarelo, bem feito! Carbono, o diamante negro, recebe por cobertura; dá meia bicicleta... por pouco, pouco, muito pouco mesmo, a bola está na rede de Mho. Ferro, fora de forma dá chutão para fora, pixotada. Reposição pelo gandula Nó. Tesla bate escanteio é gol! Olímpico... anulado. Empurraram o goleiro. Siemens joga muito e desloca Ferro e Estrôncio; dribla Newton e Hertz, faz fila, manda na trave; no rebote, Germânio estoura o véu da noiva de Mho, é gol! Um a zero para químicos.

O treinador dos físicos, na base dos gestos e no grito ordena: Lance na linha de fundo! Cai pra direita, pra esquerda, aperta no meio, inimigo aí! Vai que é tua! Ah, lambança de Farad.

Na intermediária, Kelvin cai; o juiz pede socorro, é défice de potássio, câimbra. Maqueiros, Fahrenheit e Réaumur levam Kelvin para fora do campo. O caso é mais grave, Kelvin quebrou o rádio, é substituído por Weber.

As saltitantes meninas Caloria, Frigoria e Termia, animadas abanam pompons, dão gritos estridentes: “Eia-eia-eia!” Na equalização atômica (o jogo é neste nível) a temperatura é elevada.

Lances maravilhosos: bicicleta, canetada, lençol, chapéu, bate-pronto, chicote, voleio, cavadinha, embaixada. E também antijogo: carrinho, tesoura-voadora, calça-pé, solada; enfim, futebol arte & manha. Desespero de Mercúrio incitando Promécio servir ao Au: ao Au, ao Au, idiota! Mas Ouro foge do sarrafo e os físicos não perdoam: “ouropel!” Mho encaixa bomba de Hidrogênio e manda a Newton; ele é um artista, entorta Tântalo com drible de corpo. Mão na bola na pequena área; ouve-se o apito acusando a infração. O pênalti é batido e perdido por Tesla. Na intermediária, Germânio sola Joule; é falta. Autorizado a cobrar, Gauss dá folha-seca perfeita, incrível curva de Gauss. Ferro fundido ao chão só vê a bola no fundo da rede. Gol! Um a um.

Os químicos incentivam: “Com’é, com’é, que é? É big, é big, é big-big-big! É hora, é hora, é hora-hora-hora; rá, tchibum! Qui-qui-qui!”

Torcedores dos físicos rebatem: “O Rad e o Newton, olelé, olalá! Resolveram combinar, olelé, olalá! Não deixar bola passar, olelé, olalá! Para os físicos ganharem!”

Newton dá carretilha em Silício, a galera vem abaixo óóóó. Volt faz partida eletrizante, de repente, entra em curto, há estrondo e fogo; ei-lo jogando contra o patrimônio. Pascal incita: Volte Volt! Volte! Ah, Volt, estúpido! O clarão do arco voltaico ofusca a arquibancada. Aplausos, pois pensam que o iluminamento é parte do espetáculo. Pane geral: “arquibaldos” e “geraldinos” abandonam a arena.

Erg ergue os braços e aponta para o centro do campo, encerrando o jogo valendo pelos dois tempos.

Zi/Gálio, ex-jogador e ex-treinador famoso, prolata que o empate é bom resultado para os times.

Os neutrinos, mais velozes que a luz, passaram antes do jogo. Apressados comem quente.

O histórico jogo, cravado a ferro e fogo, jamais será esquecido. Súditos mais antigos baterão no peito: meninos, eu vi! Tudo registrado nos pergaminhos, folhetins e cordéis, lidos e cantados em prosa e verso, de pai para filho, ao escoar dos séculos.

Pascal afirma aos repórteres que combateu o bom combate.

À noite, festa apoteótica: Lux e Lúmen iluminam a cena ao derredor com cem velas; Caloria, Bária, Atmosfera, Candela, Dioptria e outras meninas brincam de roda parafraseando cirandas:

Dizei bela Candela, com quem vós quereis casar; / se é com o filho de Mho, ou com o filho de Bar, Bar, Bar. / Não quero nenhum dos dois, pois eles não são para mim, / meço fonte luminosa, querendo brilhar sem fim, / ai de mim! // Sou de fóton, fóton, fóton / de marré, marré, marré, / e de quanta, quanta, quanta, de marré deci.

Gadolínio da família Terrarrara, na sanfona, anima o bródio. Magnésio fotografa tudo: clique, flash; clique, flash; daí cisma ser roda, se liga a Alumínio, seguem estrada afora, cumprindo o destino das rodas...

Argentino puxa a quadrilha: anarrié.

O rei aborrece-se com os desviantes do reino e reflete:

“Há iniquidades ao meu derredor, vejo corrupção e crimes aborreço-me, meu desencanto exige correção de rota”.

Muitos pressentindo o drama fogem da festa: Enxofre tresanda ovo choco e desperta os primitivos terrores do inferno. Aristocratas da confraria dos gases nobres: Hélio, Argônio, Xenônio sobem às nuvens e desaparecem em céu plúmbeo, tragados por buraco negro. Mercúrio trinca o bulbo, volatiliza e envenena indiscriminadamente. Ouro chape-chape, chapinha na poça de água-régia e se dissolve. HoHoHo! Gozação de Hólmio a Au liquefeito. Fósforo ama Platina, mas não rola química. “Oh, dor! sou fósforo riscado no bar de Bar”. KKK! É Potássio escarnecendo da desgraça alheia. Os quatro cavaleiros do apocalipse: Cobre, Chumbo, Cádmio e Níquel, do clã dos metais pesados efluem, refluem, poluem terra, mar e ar. Drama ecológico a vista.

Bário parodia guarânia famosa, Meu primeiro amor:

–– Meu primeiro Raio-X / tão veloz passou, / só chapa tirou / deste gastro meu.

Imbróglio siderúrgico em convertedor: Ferro, Carbono, Manganês, Cromo e Oxigênio a 13000C, a clarões de estrelas liquefazem-se em estrondeante metalurgir. Da sopa flogística nasce o aço inoxidável.

Há sinergia entre Sódio e Cloro. Eles se abraçam e transmutam-se em coluna de sal.

Plutônio, espoleta, com Urânio enriquecido (U-235) sopra ruindades no ouvido do rei Atomus:

“Exploda, já! Exploda! É hora da rosa das rosas.”

Totus Atomus expande e expande, revoluteia. No limite do espaço-tempo, o grande colapso, big-crunch acontece em contrações; em vez de explodir, implode e volta ser um ponto brilhante na energia escura em eterno devir.

 

Memento quia pulvis es et in pulverem reverteris

(És pó e ao pó voltarás)

 
  
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