Será
que aconteceu? Foi em
dezembro de 19...
O
menino de dez anos ou
pouco mais, morava na
roça, era filho de
sitiantes, quase pobres,
mas tinham o suficiente
para sobrevivência. Dava
para comer carne duas
vezes por mês, ovos uma
vez, por semana e nos
mais só legume, arroz
angu e feijão. Isto dava
para matar a fome não
mais do que isto. Ainda
assim o menino já
trabalhava: capinava em
volta do terreiro,
aguava as hortaliças,
pastoreava as vacas,
cortava capim pros
bezerros, em suma, era o
moleque do terreiro,
pois por ser franzino
não trabalhava no
pesado: Capina de
plantações de milho e
arroz; roçado de pasto,
fazer valeta e aração de
terra. De qualquer
maneira, trabalhava
sempre todo o dia, e até
depois do sol quando
então descascava milho e
debulhava s espigas para
levar o milho ao moinho,
em outro arraial, a três
quilômetros de sua
morada. O verbo
trabalhar, sempre no
presente do indicativo:
eu trabalho; o verbo
brincar, de vez em
quando, nos dias santos
de guarda. Vida dura, né?
Divertir, para quê? Nada
disso, nem aos domingos
e feriados: seja,
mourejava os trezentos e
sessenta e cinco dias do
ano, sendo que na parte
da tarde frequentava a
escola municipal por
três horas. E não tinha
merenda escolar não, só
água de mina muito boa,
por sinal. Amiguinhos,
sim, eram três:
Chiquinho, o bezerrinho,
cria de Figurona; o
cavalo, Pretinho e o
cachorro, Capim. Na
escola, por ser retraído
era quase invisível.
Seus brinquedos: dois
sabugos de milho,
jungidos, formavam a
junta de bois; caixa de
fósforos vazia, sobre
duas tampinhas de
garrafa, o caminhão, e a
bola feita de meia,
murcha, mole e sem
repique. Pois bem, esse
menino tinha um sonho,
tal e qual os meninos
têm... sonhava com uma
pequenina bola de
borracha, para brincar
nas mínimas horas de
folga. E ele, o
pobrezinho, certa feita
criou coragem, pediu uma
bola ao Papai Noel.
Que inocência!
Ele acreditava em Papai
Noel que, até à data,
vinha apenas para os
meninos e meninas de
melhores posses no
arraial.
No primeiro ano anterior
ao anterior que contamos
a estória, ele vira
caminhãozinho, carrinho,
bolas de tamanhos
vários, aparelhos de
soltar papagaios etc., e
não ganhou nada. Ficou
decepcionado e perguntou
à mãe o porquê da
exclusão. A reposta foi
o atoleiro... que Noel
não conseguira
ultrapassar. Ficou a
dúvida de como Noel
passara o mesmo atoleiro
para entregar brinquedos
aos outros meninos.
Resposta: eles moravam
dentro do arraial onde a
rua era ensaibrada. A
desculpa foi um tanto
desacreditada, porque a
chuva era para todos.
Ele engoliu o engano ou
fingiu engolir, era
preciso continuar a
sonhar. No ano seguinte,
nova decepção, desta
feita, esquecera-se de
deixar um pé de meia na
janela. Assim, no ano
desta estória, o
terceiro sucessivo no
calendário dos homens, o
menino cumpriu rigoroso
o ritual do pé de meia;
só não pode parar com a
chuva. Era dia e noite:
pling-pling-pling...
plic-plic-plic.
Mas lhe garantiram que
Papai Noel não falharia
desta vez. Palavra de
seus pais, se bem que
tinham sorriso maroto
quando lhe disseram que
Noel viria, sem falta.
Ele tinha sido um menino
obediente e estudioso. O
que ninguém sabia ou se
importava é que o menino
estava doente, muito
doente. Magro sempre
fora e ninguém viu que
estava mais magro. Ele
sofria de uma inflamação
nos genitais, um tumor e
por vergonha, escondia o
fato de todos. Aguentava
dores, andava curvado,
com mão na virilha;
deitava quando possível
(aí era chamado
preguiçoso), arrastava
os pés como se fosse um
velho. Naquele dezembro,
isto foi há muito tempo,
leitores, ele teve
calafrios e se soubesse,
talvez contasse que
estava com febre, muita
febre. Tinha medo de
confessar, medo ou
vergonha ou os dois.
Mesmo doente e febril
deitou-se cheio de
esperança, afinal Papai
Noel estava pra chegar;
promessa é promessa. O
menino tinha de estar
dormindo ou o bom
velhinho não viria. E
chuva miúda caía sem
cessar. "Será
que Noel atolaria outra
vez"?
Dormiu cheio de fantasia
e expectativa. A bola
chegaria de manhã,
cedinho. Certo? Papai
Noel tem palavra... Pois
é, de manhãzinha, ele
acordou,
molhado de
suor, abriu suavemente
as pálpebras. No
cantinho, semicoberta
pela colcha de retalhos
estava algo redondo,
amarronzado... "A
bola, com certeza",
levou a mãozinha para
apanhá-la; curiosamente,
achou-a áspera e dura,
sei lá, parecia felpuda.
Logo soube: não era a
bola, não; era
coco-da-bahia. Suspirou,
demonstrando imensa
tristeza. Pior veio, a
seguir: ele pousou a mão
em um boneco de louça,
com nariz de mentiroso,
de Pinóquio; seja,
imenso narigão.
Simbolicamente
representava a mentira
dos outros para ele.
Humilhação suprema...
Era demais para seu
coração. Chorou em
silêncio, as lágrimas
escorreram para a alma,
os olhos ficaram secos.
E veio a crise: dor
excruciante fê-lo
dobrar-se e empapar-se
de suor. Depois um
soluço... e acabou.
Sua face
refletia paz. Nada mais
tinha importância, nada
mais... o coco
transformou-se em bela e
macia bola de borracha,
a bola dos sonhos; o
boneco abriu os braços,
que se tornaram asas.
Asas servem para voar. O
anjo e o menino
segurando a bola,
sorridentes foram para o
céu; um presente de
Deus, Pai.
Bem-aventurados
os que choram e sofrem,
porque serão consolados.
(Jesus)
Asséde Paiva
Dez./2013
Conheça outros trabalhos
de Asséde Paiva em
Recordar é Viver!