Marceneiro, 14 anos, órfão de pai e mãe, Samuel
despede-se de seus colegas de escola e de seus vizinhos, Saul, Rebeca e
da menina Sara, de dez anos, na casa de quem ficara abrigado após a
morte repentina dos pais num acidente
de carro
em sua terra natal no Sul de Minas. Samuel viajaria em seguida para o
Norte do Paraná em companhia do tio paterno Josué, viúvo, sem filhos,
empresário nos ramos de marcenaria e materiais de construção. O tio
assumira a guarda de Samuel.
O tempo passou; Samuel formou-se em administração de
empresas ao mesmo tempo em que gerenciava as empresas do tio, assumindo
todo seu patrimônio após seu falecimento.
Com experiência adquirida na convivência do tio, Samuel
tornou-se um empresário competente, sólido, dedicado e filantropo,
doando um terreno para a construção do aeroporto da cidade, além de ser
o provedor do hospital. A essa altura dos fatos, Samuel já estava casado
e pai de um casal de filhos: ele médico, ela engenheira metalúrgica.
Novamente o tempo correu. Samuel está viúvo, aposentado
e bem de vida aos 60 anos de idade. Benquisto e admirado em toda a
cidade. Um vereador apresentou projeto aprovado por unanimidade a fim de
homenageá-lo com o título de cidadão honorário.
Os filhos notaram que Samuel não se entusiasmou com a
idéia, mas juntamente com eles, foi receber a homenagem na Câmara
Municipal iluminada e repleta de convidados para a solenidade. Após
receber o diploma e ser aplaudido de pé, Samuel emocionou-se,
limitando-se com a voz embargada, a um "muito obrigado". Após os
cumprimentos, retirou-se com seus filhos.
Em casa, foi dormir. Ao se deitar, murmurou: "eles não
se esqueceram de que eu não nasci aqui; e nem me lembrava mais disso".
De manhã, durante o café em família, avisou: vou viajar. E os filhos,
surpresos: para onde, pai?
- Vou aonde eu deveria ter ido antes e diversas vezes:
vou à minha terra natal.
Chegando lá, Samuel hospedou-se no modesto e
aconchegante hotel. Ao se identificar, não se surpreendeu por não ser
reconhecido. Procurou pessoas mais antigas e localizou alguns de seus
colegas de escola. Bem recebido, se entrosou e perguntou pelos pais de
Sara e por ela. Os pais dela foram embora depois que Sara se casou e
separou-se do marido, que casou com outra. Sara - professora aposentada
- estava lá, morando na mesma casa dos pais. Samuel foi ao seu encontro,
namoraram e se casaram, residindo em sua terra natal.
A lua de mel, em Jerusalém. Sara perguntou por que num
lugar tão longe e Samuel respondeu:
Lá é que vamos saber por que meu pai se chamava Enoque,
minha mãe, Berta, meu tio, Josué, eu, Samuel, seus pais, Saul e Rebeca e
você, Sara...
Na rua passava um carro de som com a voz de Raul
Seixas: "...eu nasci... há dez mil anos..."
Um "conto" nosso, que não é do meu feitio. Em
todo caso... um dia a gente acaba sendo mentiroso. Porque os jornalistas
é que são verdadeiros. Todo escritor é mentiroso (ficcionista para ser
educado, etc). Acontece que muitos jornalistas que defendem essa
premissa, acabam pagando com a língua...
M.R.Gomide – jornalista – 39/DRT-MG-16.132/70
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